28 Outubro 2016
“O Supremo adotou definitivamente a tese do marco temporal da ocupação enquanto precedente e demonstrou seu total distanciamento da questão indígena brasileira e dos conflitos fundiários que se arrastam a mais de um século pelo centro-oeste brasileiro. Impor um marco temporal simbólico à garantia de um direito originário, além de contraditório em termos jurídicos, significa fechar os olhos para crescente onda de suicídios, homicídios e marginalização de indígenas destituídos de suas terras na região”, escreve Bruno Pegorari, pesquisador do Núcleo de Direito Global (FGV); coordenador do Grupo de Tribunais de Direitos Humanos (NETI-USP); mestrando em Direito Internacional (USP); visitante Profissional na Comissão Interamericana de Direitos Humanos (2016); advogado consultor, em artigo publicado por Justificando, 26-10-2016.
Eis o artigo.
“Aqui, é preciso ver que a nossa Lei Maior trabalhou com data certa: a data da promulgação dela própria (5 de outubro de 1988) como insubstituível referencial para o reconhecimento, aos índios, ‘dos direitos sobre as terras que tradicionalmente ocupam’. Terras que tradicionalmente ocupam, atente-se, e não aquelas que venham a ocupar. Tampouco as terras já ocupadas em outras épocas, mas sem continuidade suficiente para alcançar o marco objetivo do dia 5 de outubro de 1988. Marco objetivo que reflete o decidido propósito constitucional de colocar uma pá de cal nas intermináveis discussões sobre qualquer outra referência temporal de ocupação de área indígena. Mesmo que essa referência estivesse grafada em Constituição anterior. É exprimir: a data de verificação do fato em si da ocupação fundiária é o dia 5 de outubro de 1988, e nenhum outro.”
(Trecho do voto do relator Min. Carlos Ayres Britto no julgamento do Caso Raposa Serra do Sol, em 19-3-2009).
“No caso de Mato Grosso do Sul é exatamente essa conflagração que existe, em função de se estar fazendo demarcação de áreas altamente produtivas. Então, por isso que a questão se coloca.”
(Trecho da fala do Min. Gilmar Mendes registrada no acórdão do Caso Guyrároka RMS 29.087, em 16-09-2014).
“Nós sabemos que o que está havendo, hoje, em todo o Brasil, lamentavelmente, é um novo genocídio de indígenas em várias partes do pais, em que os fazendeiros, criminosamente, ocupam terras que eram dos índios, e posse dos índios, os expulsam manu militari, e depois e depois os expedientes jurídicos, os mais diversos – depois de esgotados os expedientes, evidentemente, ilegais e até criminosos- acabam postergando o cumprimento desse importante dispositivo constitucional. ”
(Trecho da fala do Min. Lewandowisk registrada no acórdão do Caso Guyrároka RMS 29.087, em 16-09-2014).
“Isso aqui é minha vida, minha alma. Se você me levar para longe dessa terra, você leva a minha vida.”
(Marcos Veron, liderança Guarani-Kaiowá morta em 2003, aos 70 anos).
Na última segunda-feira (17), a Relatora Especial das Nações Unidas (ONU) para os Direitos dos Povos Indígenas expôs à Assembleia Geral daquela organização a situação dos povos indígenas em alguns países, com destaque para o Brasil, onde esteve em março deste ano e emitiu um relatório com recomendações. A Relatora Victoria Tauli-Corpuz, afirmou que estava desgostosa em saber que, desde sua última visita ao Brasil, as mortes e os despejos violentos contra os Kaiowa e Guarani no Mato Grosso do Sul – local onde visitou algumas aldeias – continuaram acontecendo. Para ela, as mudanças na recente conjuntura política do país “consolidaram ainda mais os interesses e o poder da elite econômica e política, em detrimento dos direitos dos povos indígenas”. Ainda que tal afirmativa seja verdade – inclusive pelo recente desmonte orçamentário da FUNAI – o tratamento dado aos direitos humanos dos povos indígenas pelo judiciário brasileiro vem se deteriorando progressivamente, culminando, hoje, em seu momento jurídico de maior fragilidade no curto período do novo constitucionalismo brasileiro (pós 1988).
O Supremo Tribunal Federal estabeleceu um precedente-bomba[1] que, com o perdão do trocadilho, concretizou – com brita, areia, ferro, cimento e muito cal – um esdrúxulo e desconexo critério jurídico para a aferição do direito indígena à terra: o marco temporal da ocupação. O Caso Raposa Serra do Sol, julgado pelo órgão pleno do STF no ano de 2009, foi um leading case em matéria de terras indígenas e estabeleceu 04 critérios para a aferição do direito de determinada comunidade indígena à sua terra originária. Destes critérios, dois merecem destaque: (i) o marco da tradicionalidade da ocupação e o (ii) marco temporal da ocupação[2].
De acordo com o primeiro (marco da tradicionalidade da ocupação), para que uma terra indígena possa ser considerada tradicional, as comunidades indígenas devem demonstrar o caráter de perdurabilidade de sua relação com a terra, em sentido anímico e psíquico de continuidade etnográfica, com o uso da terra para o exercício das tradições, costumes e subsistência. O critério do marco tradicional da ocupação estabelece que os indígenas devem preencher, basicamente dois elementos: um imaterial (espiritual, ancestral, psicológico) e outro material (da relação direta com a terra, e.g. pesca, caça, etc.). Esse critério está em plena consonância com a interpretação gramatical do artigo 231 da Constituição da República que estabelece em seu parágrafo 1º que:
“Art. 231 – São reconhecidos aos índios (…) os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, (…): 1º – São terras tradicionalmente ocupadas pelos índios as por eles habitadas em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias à sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições .”
O segundo critério cria o marco temporal da ocupação que estabelece que as terras indígenas serão aquelas nas quais houvesse efetiva ocupação pelas populações indígenas na data da promulgação da Constituição (05 de outubro de 1988). Este parâmetro chama a atenção, em primeiro lugar, por restringir o direito à terra para aquém do trazido, gramaticalmente, no próprio texto constitucional. A Constituição diz que são terras indígenas aquelas habitadas pelos índios em caráter permanente, mas não exige que eles a estivessem ocupando, necessariamente, na data da promulgação da Constituição, justamente pela possibilidade do chamado esbulho renitente, é dizer: as recorrentes situações em que os indígenas foram expulsos de suas terras por não-índios, e a elas impedidos de regressar, ainda que com ela guardassem as condições necessárias – materiais e imateriais – para a configuração daquelas terras como terras indígenas.
Contraditoriamente à ideia do marco temporal, o próprio STF estabeleceu na mesma decisão que os direitos[3] das populações indígenas a suas terras são de natureza declaratória, não cabendo ao ordenamento jurídico positivo outorgá-los, ou seja, constitui-los, mas, tão somente, reconhecê-los. O professor José Afonso da Silva colocou de forma clara em parecer (2016) sobre o tema que o direito à terra é um direito natural que preexiste ao próprio reconhecimento constitucional, dada sua natureza comunitária e anterior (originária). Ainda, destaca que esses direitos de natureza especial foram acolhidos de forma inédita pela Constituição de 1934[4] na forma de direitos fundamentais. O mesmo ocorreu em 1988, só que de forma mais sofisticada por meio do artigo 231.
O erro central da decisão, portanto, foi buscar restringir o direito à terra por meio de um marco temporal irrefletido que não guarda qualquer vínculo racional com a situação jurídica analisada, se não um mero simbolismo esvaziado e o discreto alívio de se pôr um ponto final no já tão prolongado debate. A verdade é que o estabelecimento arbitrário da referida data carrega o vício da anti-historicidade, ignorando o passado indigenista brasileiro e o caráter originário de seus direitos, assim como o histórico compartilhado das graves violações dos direitos originários por parte de particulares e do próprio Estado.
Não é errado dizer que a “condição de ocupantes” na data da promulgação da Constituição de 1988 não prejudicou as comunidades indígenas envolvidas no caso Raposa Serra do Sol. Nele, os indígenas permaneceram na ocupação da área, o que lhes garantiu o enquadramento no critério temporal, senão estiveram em intensa resistência aos não-índios, o que caracteriza a tentativa de esbulho renitente. O próprio relator do caso, Min. Carlos Ayres Brito, pode não ter imaginado as consequências de seu voto para além daquele caso concreto. Isso porque, tecnicamente, o caso Raposa Serra do Sol não produzira efeito erga omnes. A virada se deu no Caso Guyrároka, julgado pela segunda-turma do STF no ano de 2014. Nele o relator para acórdão Min. Gilmar Mendes, (vencido Min. Lewandowisk relator sorteado) retomou o critério do marco temporal como se vinculante fosse embora, em verdade, a decisão fosse tecnicamente inapta a exercer efeito vinculante sobre outros casos. Segundo a Min. Carmem Lucia, atual presidenta do STF, em voto que acompanhou o Min. Relator Gilmar Mendes:
“(…) embora não tenha efeitos vinculantes em sentido formal, o acórdão do caso Raposa Serra do Sol ostenta a força moral e persuasiva de uma decisão da mais alta Corte do País, do que decorre um elevado ônus argumentativo nos casos em se cogite de superação das suas razões”.
Nesse caso cristalizou-se o marco temporal como critério oficial do STF para a aferição do direito à terra. Nem a tese do renitente esbulho escapou! No Caso Limão Verde, o Min. Relator Teori Zavascki condicionou a existência do renitente esbulho ao critério do marco temporal, afirmando que:
“(…) há de haver, para configuração de esbulho, situação de efetivo conflito possessório que, mesmo iniciado no passado, ainda persista até o marco demarcatório temporal atual (vale dizer, na data da promulgação da Constituição de 1988), conflito que se materializa por circunstâncias de fato ou, pelo menos, por uma controvérsia possessória judicializada”.
Com essa decisão, o Supremo adotou definitivamente a tese do marco temporal da ocupação enquanto precedente e demonstrou seu total distanciamento da questão indígena brasileira e dos conflitos fundiários que se arrastam a mais de um século pelo centro-oeste brasileiro. Impor um marco temporal simbólico à garantia de um direito originário, além de contraditório em termos jurídicos, significa fechar os olhos para crescente onda de suicídios, homicídios e marginalização de indígenas destituídos de suas terras na região. Segundo o Relatório do CIMI (2016), quase 50% dos assassinatos de indígenas no Brasil, em 2015, ocorreram no Mato Grosso do Sul. Além disso, entre 2000 e 2015, 752 ocorrências de suicídio foram registradas só em Mato Grosso do Sul. O risco é de agravamento desta situação com decisões de primeira e segunda instância em conformidade com a interpretação da suprema corte brasileira.
Desde então, muitas decisões já foram emitidas em prejuízo dos povos originários, derrubando processos e atos demarcatório em curso ou finalizados Brasil a fora. Os Terena tiveram seu direito à terra atropelados pela decisão no Caso Limão Verde (acesso aos memoriais), no final de 2014. O mesmo ocorreu com os Canela Apãnjekra, no Caso da Terra Indígena Porquinhos, todos julgados pelo STF. No começo deste mês de outubro, a tese do marco temporal atingiu novamente os Guarani Kaiowá que vivem na Terra Indígena Panambi-Lagoa Rica, MS. O mesmo aconteceu com os Pataxós do Sul da Bahia, habitantes da Aldeia de Aratikum enquanto há um mês antes uma decisão da Comarca Estadual de Matinha (MA) destinou-se desfavoravelmente aos Gamela.
O que não ficou claro nos votos do Caso Guyrároka – a exceção do Min. Lewandowisk – foi que ao jogar uma pá de cal nas “disputas infindáveis sobre terras, entre índios e fazendeiros, ”, junto, soterrou-se o direito [indígena] à terra em si, e todos aqueles dele decorrentes: vida, dignidade, liberdade e igualdade. O Supremo Tribunal Federal, liderado pelo voto do Min. Gilmar Mendes, escolheu perpetuar o saque da terra, a aniquilação da cultura e o ceifo da vida daqueles que nunca escreverão a história. Não se pode olvidar que, do outro lado favoreceu-se o direito à propriedade privada do agronegócio, da soja transgênica e do gado para exportação. Daqueles que governam o Brasil há 500 anos e são representados no Congresso Nacional pela chamada Bancada do Boi, que contava, na primeira metade de 2016, com 207 deputados.
Entretanto, podemos dizer que ainda há esperanças e ela se encontra para além das fronteiras do Estado brasileiro, mas a ele vinculada por compromissos internacionais. Afinal, a Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH), tribunal cuja jurisdição foi expressamente aceita pelo Brasil, construiu ampla jurisprudência na matéria de direito à propriedade e contribuiu enormemente com a proposição de parâmetros interpretativos para a proteção destes direitos na região. Mas a contribuição da jurisprudência interamericana em matéria de propriedade coletiva e as formas pelas quais ela pode surtir efeito na ordem jurídica brasileira serão abordadas no próximo artigo.
Notas:
[1] A referência feita à uma bomba-relógio sugere que o precedente não “explodiu” instantaneamente, mas, como se verá, resultou na consolidação de critérios jurídicos catastróficos para a matéria em precedentes posteriores.
[2] São eles: (iii) o marco da concreta abrangência fundiária e da finalidade prática da ocupação tradicional, que descreve a utilidade prática a que deve servir a terra tradicionalmente ocupada, reforçando o critério da ancestralidade e (iv) o marco do conceito fundiariamente extensivo do chamado “princípio da proporcionalidade”, a partir do qual a aplicação do princípio da proporcionalidade em matéria indígena ganha um conteúdo extensivo.
[3] “Os direitos à terra” são assim colocados, no plural, pois constituem não só o direito (i) de posse, mas (ii) à posse, além do (iii) direito ao usufruto exclusivo, configurando assim uma pluralidade de direitos à terra. Todavia, ao longo do texto poderemos usar tanto a forma singular como a plural como sinônimos desta pluralidade de direitos à terra.
[4] Estes direitos já haviam sido tratados por outras normas anteriormente, mas, só em 1934, compuseram o rol de direitos fundamentais de uma Constituição brasileira. Cf. “Art. 129 – Será respeitada a posse de terras de silvícolas que nelas se achem permanentemente localizados, sendo-lhes, no entanto, vedado aliená-las.”
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
O genocídio dos povos indígenas publicado em diário oficial - Instituto Humanitas Unisinos - IHU