31 Outubro 2017
Bispos católicos em toda a Europa têm se posicionado em defesa da unidade continental, posição apoiada pelo Papa Francisco. No entanto, num importante discurso sobre a Europa, no sábado, Francisco deixou claro que também não é favorável ao status quo europeu e, na verdade, parece considerar sua extinção. Nesse contexto, ele lançou sua própria versão da "Opção Beneditina" do papel da Igreja.
O comentário é de Austen Ivereigh, jornalista, publicado por Crux, 30-10-2017. A tradução é de Luísa Flores Somavilla.
É clara a posição da Igreja Católica no que, sem dúvida, é o maior desafio à ordem europeia desde a Segunda Guerra Mundial: a erupção do nacionalismo.
Do Brexit à Catalunha, passando pela ascensão dos partidos de extrema-direita na Europa central, a reação Católica foi quase sempre soar o alarme, mesmo se os bispos - como é o caso das Igrejas de Gales e da Inglaterra a respeito da votação do Reino Unido para sair da União Europeia - tivessem sido cautelosos ao figurar de algum lado.
Tal reticência não se observa na Espanha. Num fim de semana dramático, em que o governo Catalão declarou independência e o governo nacional encaminhou-se para a restauração do governo direto, os arcebispos de Barcelona e Madri, assim como o Presidente da Conferência Episcopal Espanhola, expressaram tristeza frente à possibilidade de independência.
Assim como os bispos ao redor da Europa Ocidental, os bispos espanhóis consideram o regionalismo e o nacionalismo muros que ameaçam destruir uma coexistência pacífica conquistada com muito esforço e protegida pela lei e pela Constituição.
O Papa Francisco apoiou a mensagem no sábado, numa longa fala para uma conferência em Roma sobre a contribuição da Igreja para o futuro da Europa. O encontro foi organizado pela COMECE, que representa as conferências dos Episcopados das instituições da União Europeia.
À luz da Catalunha et al, era natural que as manchetes focassem no aviso do Papa sobre a construção de trincheiras, seu chamado para retomar o sonho europeu de unidade e sua advertência contra "agendas particulares e nacionalistas" que ameaçam "os sonhos corajosos dos fundadores da Europa".
Historiadores, ao lê-las, concluirão - como muitas pessoas já estão concluindo – que, na expansão europeia contemporânea, o Papa Francisco e os bispos estão firmemente a favor das forças de ordem e de conservação, posicionando-se a favor do status quo. Porém, essa é uma leitura muito simplificada - pelo menos no caso de Francisco.
No longo discurso do Papa, havia tanto uma forte crítica ao estado atual das coisas como inclinações de que já se foi o tempo do status quo. Grande parte do discurso, na verdade, delineou o que Francisco vê como tarefa da Igreja hoje, que é a construção de uma contracultura a partir das ruínas de uma ordem política e econômica em colapso.
A referência ao seu patrono, São Bento de Núrsia, não é novidade em discursos papais na Europa. Mas o que foi incomum na referência de Francisco ao fundador do monasticismo ocidental foi o paralelo estabelecido entre a queda do Império Romano e a Europa atual.
Para São Bento, segundo Francisco, "o importante não eram as funções, mas as pessoas". Ele apontou para uma visão de homem radicalmente diferente da cultura clássica grega e romana, que transcendeu o papel e o estatuto, enraizado no homem como imagem de Deus. Devido a este novo conceito, originou-se – por meio dos mosteiros - a fonte do renascimento cultural e econômico da Europa.
Francisco vê, nesta história, tanto uma lição sobre o momento atual da Europa como uma orientação para o futuro papel da Igreja. A maior contribuição que os cristãos podem dar, argumentou, é resgatar a importância da pessoa diante da “tecnificação” desalmada da política e da economia.
"Não há cidadãos, apenas votos", protestou. "Não há migrantes, apenas cotas. Não há trabalhadores, apenas marcadores econômicos. Não há pobres, apenas limiares de pobreza."
Francisco vê, nesta redução da pessoa a algo abstrato, o triunfo do paradigma tecnocrático, previsto por Romano Guardini no livro O Fim da Idade Moderna, texto chave para Francisco, cujo nome apareceu mais de uma vez em sua encíclica social Laudato Si'.
Curiosamente, a palavra em espanhol usada por Francisco no discurso de sábado para designar a "queda" do Império Romano - el ocaso - designa também o "fim" do mundo moderno, na tradução ao espanhol do livro de Guardini, El Ocaso del Mundo Moderno.
Em sua profecia de 1950, ele previu a dissolução contínua de conexões pessoais e sociais da tecnologia e a disseminação de uma mentalidade de Estado e de mercado que reduziria as pessoas a coisas e o mundo criado a matéria-prima para exploração.
Quando isso acontecesse, o Cristianismo neste mundo "pós-moderno" seria cada vez mais independente do direito e da cultura, e livre para se distinguir mais claramente do ethos circundante.
O discurso de Francisco sugeriu que este momento já surgiu na Europa há muito tempo. Ele se refere ao continente como "uma pluralidade de culturas e religiões, enquanto para muitas pessoas o cristianismo é visto como algo do passado, estranho e irrelevante". Descreveu, ainda, o "pensamento de grupo" do secularismo radical.
Também observou - em linguagem tipicamente associada com uma visão conservadora - que a revolução cultural da década de 60, descrita por ele como um período de "esterilidade dramática", não apenas no sentido de haver famílias menores e de "muitas [crianças] terem tido negado o direito de nascer", mas em relação a "uma falha na transmissão do material e das ferramentas culturais de que os jovens precisam para enfrentar o futuro".
Além disso, em seu discurso no prêmio Carlos Magno, Francisco descreveu o papel da Igreja na Europa como um papel de serviço, e não de poder, molhando as raízes da cultura do continente por meio do serviço humilde em vez de ir atrás de ganhos perdidos.
No sábado, reiterou essa mensagem, lembrando aos presentes que "os cristãos são chamados a restaurar a dignidade à política e considerá-la um nobre serviço ao bem comum, não uma plataforma de poder".
O discurso trouxe exemplos semelhantes do papel humilde da Igreja de molhar as raízes do futuro na Europa: construindo o sentido de comunidade como um antídoto ao individualismo, reforçando a família como lugar de unidade que origina a vida na diversidade e, em geral, promovendo o diálogo, a inclusão, a solidariedade e a paz.
Será necessário que haja cristãos, disse, para criar empregos e condições de trabalho dignas diante da "globalização desalmada", para "promover o diálogo político" diante da política que se torna mero "fórum de confrontos entre forças opostas" e para trabalhar pela unidade e pela harmonia perante aqueles que querem "cavar trincheiras".
Francisco resume esta visão ao final, dizendo que os cristãos são chamados "a revitalizar a Europa e reavivar sua consciência, não ocupando espaços, mas gerando processos capazes de suscitar novas energias na sociedade" - assim como fez São Bento ao originar "um movimento empolgante e fascinante que mudou a cara da Europa".
Ainda que nenhuma dessas mensagens sobre o papel da Igreja seja nova ou surpreendente, o que desacomoda no discurso é o pressuposto de que a Europa está vivendo uma queda semelhante à da época de São Bento, em que as estruturas que uniam os povos díspares do Império Romano estavam irreparavelmente desgastadas.
Sabendo que a manchete "Fim do projeto europeu, declara Papa" iria longe, Francisco nunca diz isso a respeito do cenário contemporâneo. Mas algumas de suas declarações sugerem, de forma apocalíptica, que essa é sua direção.
Quando ele diz que "muitas vezes tem a sensação que o objetivo principal não é mais o bem comum, e que essa percepção é compartilhada por cada vez mais cidadãos", Francisco parece estar do lado dos catalães e dos defensores do Brexit que rejeitam as estruturas da União Europeia ou o Estado-nação por não trabalharem por seus próprios interesses.
No final do discurso, adverte que a UE somente atingirá sua vocação para a paz se "conseguir se renovar a fim de responder às necessidades e expectativas dos cidadãos", pressupondo que já não está respondendo.
Caso o argumento se perdesse, avisou, ainda, de forma sombria, sobre o que acontece quando as posições se entrincheiram, citando o 100º aniversário da Batalha de Caporetto, na Primeira Guerra Mundial, na qual 10.000 italianos foram massacrados devido a uma combinação diabólica de liderança cruel e incompetente e ataques de gás dos alemães.
Claro, Francisco não endossa as atuais revoltas nacionalistas e populistas na Europa. Ele as critica por usarem protestos, em vez de uma alternativa política construtiva, o núcleo de sua mensagem, e diz que bloquear a entrada de imigrantes por meio de "muros de indiferença e medo" - como os nacionalistas querem fazer - é trair a própria personalidade da Europa.
No entanto, nada no discurso sugere que Francisco seja "conservador" no sentido de querer preservar a ordem europeia existente. Pelo contrário, ele sugere que o caminho da Europa é sombrio e que, em vez de tentar se agarrar ao que mostra sinais de abrir caminhos, a Igreja deve se concentrar em acender lanternas no fim do túnel.
Podemos considerar essa a "Opção Beneditina do Papa Francisco". Ele ainda não vai desistir da União Europeia, mas está preparando a Igreja para seu provável colapso.
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Em discurso sobre a Europa, Papa Francisco estabelece sua própria 'Opção Beneditina' - Instituto Humanitas Unisinos - IHU