01 Junho 2017
“Se alguém me perguntar: diga-me em uma única palavra o que é o cristianismo, eu sou obrigado a responder: o cristianismo é graça. Não há conhecimento de Deus se não houver conhecimento da sua graça.” Assim o teólogo e pastor valdense Paolo Ricca introduziu o discurso que fechava o 8º Congresso Ecumênico Internacional de Espiritualidade da Reforma, organizado e sediado, de 26 a 28 de maio, pela Comunidade Monástica de Bose.
A reportagem é de Gianni Valente, publicada por Vatican Insider, 29-05-2017. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
No congresso, realizaram densas conferências, dentre outros, o cardeal Walter Kasper, o professor Fulvio Ferrario (Faculdade Valdense de Teologia de Roma), o padre Angelo Maffeis (Faculdade Teológica Setentrional), o jesuíta Bernard Sesboüé e o professor Jean-François Chiron, copresidente católico do “Grupo de Dombes”.
Os congressistas, nas pegadas de Martinho Lutero, e compartilhando os momentos de oração do mosteiro, assumiram “o evangelho da graça” e a “boa notícia da justificação pela fé somente” como fonte de um olhar renovado sobre o anúncio cristão no tempo presente e sobre os caminhos do ecumenismo entre a Igreja Católica e as Igrejas nascidas da Reforma luterana, a mais de 18 anos da assinatura da declaração conjunta entre católicos e luteranos sobre a doutrina da justificação.
Três dias de trabalho intenso, marcado por perguntas reais e reflexões nada adocicadas até mesmo sobre o esquecimento que marca as instituições e os aparatos eclesiais no que diz respeito à justificação pela graça somente: aquilo que, para Lutero, era o articulus stantis seu cadentis Ecclesiae, nos últimos tempos – como observou, dentre outros, o professor Dirk Lange, professor de liturgia no Luther Seminary, em St. Paul, Minnesota –, não acende mais os corações e não configura a práxis eclesial nem mesmo entre tantos filhos espirituais do iniciador da Reforma protestante.
O Evangelho da graça, salientou no seu discurso o professor Ricca, é “o coração da revelação e da fé cristã. Podemos dizer que é o próprio coração de Deus”. No entanto, a graça, “essa palavra é a mais doce, consoladora e bela de toda a vida, que liberta os prisioneiros e amansa os violentos, que redime o pecador e ressuscita os mortos”, e em torno da qual, há 500 anos, dilacerou-se a cristandade do Ocidente, parece agora “tornar-se estrangeira. Muda. Não fala”.
Ricca propôs uma explicação para esse “desaparecimento da graça” do horizonte eclesial contemporâneo: “Eu acho”, disse o teólogo valdense, “que a razão é simples: a palavra graça diz algo a quem considera que deve ser agraciado. Ao condenado à prisão perpétua, trancado na prisão por toda a vida, que recebe a graça do presidente, eis, esse homem sabe o que é a graça... Para entender a graça, é preciso saber que você está perdido. Se não souber o que significa perdição, pecado, estar fora de toda esperança, a palavra graça não significa nada”.
O paradoxo – acrescentou Ricca – “é que, no nosso mundo, o pecado é galopante em todas as formas possíveis, mas não há mais um pecador sobre a terra, todos somos inocentes”. Essa situação – acrescentou Ricca – não leva a pensar que devemos “pregar o pecado” para depois “pregar a graça”: “Jesus nunca pregou o pecado. Ele pregou o perdão. Mas nos encontramos em um beco sem saída. Essa é a nossa condição”.
Nesta condição, de acordo com o irmão Enzo Bianchi, fundador da Comunidade de Bose, justamente a gratuidade da salvação, que na época da Reforma dividiu os cristãos, agora os une ao confessar a salvação de Cristo em um mundo habitado por “homens e mulheres sedentos de misericórdia”.
Lutero, no seu tempo, repropôs que toda a autêntica tradição – de São Paulo a Agostinho, de Tomás de Aquino a Bernardo de Claraval – tinha confessado a justificação pela fé somente, antes que ganhassem corpo as concepções espalhadas pela corrente franciscana ockhamista.
“O amor de Deus”, disse Bianchi no seu discurso de abertura, “nunca deve ser merecido. No coração do homem religioso, abriga-se uma falsa imagem segundo a qual Deus ama apenas os justos”. Trata-se de uma “mentalidade retributiva do homem religioso que perverte a liturgia, a vida eclesial e monástica”, e esconde o dinamismo mais íntimo da salvação anunciada pelo Evangelho: “A justificação não deve ser merecida. O amor preveniente de Deus é imerecido. Deus torna justo o pecador gratuitamente”. Enquanto isso, a tentativa humana de ganhar o favor de Deus é pecaminoso, porque a graça imerecida “não depende de modo algum de nós”.
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Primeiro a Graça, depois a Lei: o congresso em Bose sobre a “justificação pela fé somente” - Instituto Humanitas Unisinos - IHU