27 Abril 2017
“A especificidade da mensagem evangélica sublinhada pela Reforma é justamente esta: a intervenção da graça divina é decisiva; o ser humano, com as suas capacidades, a sua racionalidade e os seus conhecimentos, sozinho, não pode nada.”
Publicamos aqui a reflexão do Círculo “Riforma”, da Igreja Valdense de Milão. O texto foi publicado na revista Riforma, publicação semanal das Igrejas Evangélicas batista, metodista e valdense italianas, 28-04-2017. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Conjugar hoje o Sola gratia encontra uma dupla criticidade. A primeira é que, nas controvérsias teológicas em vigor pelo menos até o século passado, o tema da graça foi muitas vezes mal entendido, abusado e até mesmo mistificado em função da sua interpretação e da sua apropriação como categoria distintiva de pertencimento.
A segunda é que o advérbio “só” tem um caráter de exclusividade e de absoluto que dificulta a sua combinação com qualquer processo ou evento em um contexto, como o atual, em que quase todo conceito é plural, senão por definição, pelo menos na ótica ecumênica que exige que se compartilhem tradições diferentes e abordagens interpretativas às vezes divergentes.
No entanto, a interpretação revolucionária do conceito de graça proposta por Lutero impõe uma tentativa da sua atualização também em uma época na qual, pelo menos na percepção comum, o tema da salvação parece ter perdido grande parte da sua relevância objetiva.
No Primeiro Testamento, o termo hebraico hén (graça) identifica a benevolência que Deus mostra para com o ser humano, e as Escrituras judaicas relatam que muitos personagens centrais da narrativa encontram graça diante do Senhor: de Noé, no Gênesis 6, 8, a Moisés, no Êxodo 33, 12.17, a Davi, em II Samuel 15, 25.
Mas o ato de graça mais importante realizado por Deus é o fato de ter estabelecido um pacto com Israel, mantendo-o, apesar das suas inúmeras transgressões. Em todo o Primeiro Testamento, aflora a ideia de que o Senhor é um Deus que quer salvar o Seu povo e não destruí-lo: a graça representa, justamente, a Sua vontade de salvação, e o pecador arrependido pode invocar com confiança a Sua misericórdia (Sl 51, 1).
Também no Novo Testamento, o termo manteve os significados de favor e benevolência de Deus para com o ser humano, e a graça expressada com o pacto do Sinai é confirmada pela aliança entre Deus e o ser humano, que se realiza com a vida terrena de Cristo, isto é, do Deus que se fez homem, uma aliança que não substitui o antigo pacto com o povo de Israel, mas o renova e se une a ele.
A graça se manifesta na intervenção gratuita de Deus na vida do ser humano e gera a sua resposta na fé (At 18, 27). A fé, por sua vez, introduz o ser humano na graça, isto é, em uma relação de benevolência e comunhão com Deus (Rm 5, 2), uma relação em que o pecado é perdoado.
A graça coincide com um perdão total que regenera: por isso, é possível afirmar que o contrário do pecado não é a virtude, mas sim a graça. A graça e a fé não são realidades coincidentes, mas sim complementares, pois a graça reside exclusivamente no âmbito de Deus, explicitando um agir do próprio Deus, que dirige ao ser humano a Sua palavra de salvação, enquanto a fé é sobretudo uma questão antropológica, isto é, uma resposta do ser humano ou, pelo menos, uma interrogação consciente sobre esse dom de Deus.
O Sola gratia da Reforma quer enfatizar que o pecador não pode se justificar por si só, nem auxiliar Deus de algum modo na obra da justificação, negando, decisivamente, qualquer possibilidade de coparticipação do ser humano no processo da salvação, que continua sendo iniciativa e cumprimento exclusivos de Deus, em Jesus Cristo: antes de toda resposta humana, há a recepção da graça, que é acolhida na fé; antes das obras humanas, há o amor de Deus, que as precede; no evento da salvação, a resposta humana é consequência da iniciativa de Deus e se traduz em uma ética evangelicamente inspirada.
A especificidade da mensagem evangélica sublinhada pela Reforma é justamente esta: a intervenção da graça divina é decisiva; o ser humano, com as suas capacidades, a sua racionalidade e os seus conhecimentos, sozinho, não pode nada. Mas, em uma sociedade na qual são cotidianamente enfatizados o desempenho e a afirmação pessoais, em que o ser humano vale mais por aquilo que parece ser do que por aquilo que é, o problema da salvação ainda interessa ou o seu anúncio perdeu grande parte do seu significado?
Embora hoje ainda permaneça a angústia da morte, ela se une, e até é superada, pelas angústias da vida, das nossas inseguranças, fragilidades, medos e misérias cotidianas.
O anúncio da salvação também não pode deixar de considerar esses aspectos, uma salvação, antes de tudo, de nós mesmos como produtores das nossas obsessões, dos nossos vícios e dos nossos ídolos, uma salvação que dê um sentido àquilo que somos e àquilo que fazemos, uma salvação gratuita, que não se reduz ao perdão das culpas, mas que dê esperança à nossa vida.
A graça que nos salva representa uma mensagem contra a corrente em relação aos padrões performativos que, a cada dia, nos são propostas midiaticamente, conferindo dignidade a todos, incluindo aqueles que se encontram às margens de uma sociedade seletiva, os últimos, com os quais, há mais de dois mil anos, Jesus Cristo se identificava.
“Em verdade, eu lhes digo: todas as vezes que vocês fizeram isso a um dos menores de meus irmãos, foi a mim que o fizeram” (Mt 25, 40).
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Sola gratia: a especificidade da Reforma - Instituto Humanitas Unisinos - IHU