04 Mai 2017
O livro Contro Lutero e il falso evangelo [Contra Lutero e o falso evangelho], escrito por Marco Vannini é uma antologia de lugares-comuns que se acumularam ao longo de 500 anos, temperados com um ódio visceral em relação ao reformador.
A opinião é do teólogo e pastor valdense italiano Fulvio Ferrario, decano da Faculdade Valdense de Teologia de Roma, em artigo publicado por Confronti, de maio de 2017. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
O título parece nos reportar aos libelos do século XVI, e esperaríamos ver como autor Johannes Eck ou Ambrogio Catarino. Em vez disso, Contro Lutero e il falso evangelo (Lorenzo de’ Medici Press, 2017, 174 páginas) foi lançado em 2017, enquanto Lutero é lembrado “não só pelas Igrejas chamados reformadas, mas também pela católica” (p. 7). E o autor é Marco Vannini, o mais credenciado estudioso italiano dos grandes místicos: uma voz importante no panorama cultural da Itália, tanto pelo número e qualidade dos textos que disponibilizou, traduzindo-os e editando a edição italiana, quanto pelas suas sugestivas interpretações.
O fato de Lutero não ser exatamente o seu forte, na verdade, era conhecido desde 1987, quando Vannini tinha publicado uma introdução aos “Prefácios à Bíblia” do reformador (documentos, em todo o caso, ainda hoje acessíveis em italiano apenas naquele volume): essencialmente, um atestado da radical estranheza, incompreensão e antipatia do estudioso em relação à sintonia espiritual na qual vibram aquelas páginas.
Este livro, no entanto, constitui, se assim se pode dizer, um salto de qualidade. Vannini está irritado porque Lutero parece ter se tornado “um exemplo da fé. Da fé como mentira, que declara um livro ‘palavra de Deus’ e, sobre isso, apoia a própria egoidade” (p. 7). Seríamos imediatamente tentados a observar que, para dar um exemplo, Lutero distingue a Bíblia (mais adiante, na página 69, Vannini a qualifica como “longa série de palavras”) da palavra de Deus “como a criatura do Criador”: abordar Contro Lutero e il falso evangelo no plano da discussão histórico-teológica faria pouco sentido. Trata-se de uma espécie de antologia dos lugares-comuns que se acumularam em 500 anos, temperados por um ódio visceral contra o personagem.
Alguns exemplos, ao menos para dar uma ideia do nível do tratamento. A chave hermenêutica para compreender a parábola de Lutero é apresentada assim: com base nos retratos de Cranach relatados por Denifle (cujo célebre estudo, de 1904, inspira Vannini), em 1520, Lutero é “magro, com os olhos claros e ardentes de luz interior”; em 1526, “já está mais gordo e de aspecto comprazido”; em 1532, “a obesidade e a sensualidade [são] o traço estético da evolução religiosa e moral do Reformador” (p. 39).
Além dos retratos de Cranach, temos “a imagem que Lucas Fortnagel nos deixou do seu corpo composto na morte, tão obeso a ponto de não entrar no caixão”; “só o respeito devido aos defuntos impede de expressar a repugnante impressão que aquela imagem comunica: precisamente o oposto da espiritualidade” (ibid.).
Depois desse curioso ensaio de teologia somática, passa-se para a relação fé-razão, citando Maritain (a lista das fontes do autor mereceria um discurso à parte), que afirma que Lutero “libertou o homem da inteligência, da fatigante constrição ao pensamento” (p. 40).
Mas vamos direto ao assunto: “Lutero fez com que o cristianismo passasse de existência concreta à doutrina” (p. 99): a acusação é de Kierkegaard, mas a autoridade do grande pensador, por si só, não basta para justificar uma tese tão comprometedora. E de que doutrina se trata? É desnecessário dizer: “Somos livres para fazer o que quisermos, já que Cristo ‘cobre’ os nossos pecados, com a única condição de que se ‘creia’. Acreditando ser justificados sola fide, vai-se embora toda virtude, todo valor, rotulado como presunção, vaidade etc., mas, acima de tudo, vai-se embora a verdade” (p. 35).
Atenção, porém. Vannini não condena Lutero a partir, por exemplo, de uma tradicional ortodoxia contrarreformista, mas sim com base na sua ideia de mística. Uma visão bastante pessoal do cristianismo, fortemente antipaulínica (Lutero e o Apóstolo teriam em comum “o ódio pelo classicismo, ou seja, pela honestidade da razão e, ao mesmo tempo, a presunção de estar na verdade, de ser voz e instrumento de Deus”, p. 56), que afirma se referir especialmente a João e a Plotino.
A interpretação da Escritura viaja mais ou menos em trilhos análogos à de Lutero. O Jesus joanino “rejeita Moisés e a sua Lei, distancia-se dos judeus, mentirosos e filhos do demônio, pai da mentira”, com referência, naturalmente, a João 8.
Parece que a problemática ligada a esse tipo de leitura daquele capítulo e do Novo Testamento em geral foge completamente ao autor. Nos termos compassivos de Sergio Massironi, que resenhou o livro para o L’Osservatore Romano, “o livro expressa um antijudaísmo não mais comum depois das tragédias do século XX”.
Deve ser por isso que a única acusação contra Lutero que não aparece no livro é aquela relacionada com os seus escritos sobre os judeus. Plotino (citado até mais do que o grande profeta protagonista do livro, ou seja, o próprio Vannini: a propósito de “egoidade”), Porfirio e “a filosofia clássica” (p. 114: toda ela, ao que parece) apresentam uma antropologia que coincide com a de Eckhart e, portanto, com a verdade. Etc.
Por uma vez, confesso que um pouco de “conspiração” intriga mais do que a luterologia vanniniana. Como é que um estudioso desse quilate publica um livro francamente não apresentável, a partir de todos os pontos de vista? Uma vocação pessoal e direta a se opor àquilo que é percebido como um desenfreado conformismo pró-luterano?
É de sorrir, naturalmente, mas o volume, com efeito, é percorrido por uma inspiração “missionária”. Ou o texto deve ser entendido no quadro do debate intracatólico sobre esse ponto, no qual, como se sabe, debatem-se partes diferentes? Mas atirar contra Paulo para atacar Lutero parece estranho; o arsenal utilizado, em geral, é diferente. O catálogo da Lorenzo de’ Medici Press, além disso, não ajuda a colocar o livro em um projeto cultural. Ele parece ser uma espécie de meteorito.
O L’Osservatore Romano, no entanto, reconhece alguns méritos ao panfleto. “Embora com discutíveis intenções, Vannini nos devolve uma história em que vulgaridade, miséria e calúnias dilaceraram a Igreja e desencadearam repressão e barbárie”. Dito em outras palavras: o livro é um pouco embaraçoso, mas, no mínimo, nos reporta aos tranquilizadores territórios da saudável polêmica antiluterana de antigamente. Aos tempos de Denifle (que escolhe para si o nome religioso de Heinrich Suso, um místico, justamente, do século XIV), em suma, que, em 1904, inseriu no mercado o estereótipo do monge luxurioso: com a diferença de que Denifle também desempenhou um trabalho histórico, na época, de vanguarda. Utilizá-lo hoje, na versão vanniniana (Massironi: Vannini “documenta um uso instrumental, delirante do texto sacro”, por parte de Lutero) e em uma sede como o L’Osservatore é uma operação que levanta algumas perguntas e estimula, também, algumas afirmações.
Quanto àquilo que importa, eu formulo uma: enquanto a ideia (esta, sim, “vulgar”) de uma Reforma que “dilacera” uma mitológica unidade pré-existente da Igreja não for explicitamente rejeitada, nenhuma reavaliação católica das “intenções” de Lutero poderá nos ajudar. O ponto não é um julgamento moral sobre a pessoa, mas uma avaliação teológica da Reforma do século XVI.
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Nem todos os católicos "perdoaram" Lutero. Artigo de Fulvio Ferrario - Instituto Humanitas Unisinos - IHU