04 Abril 2017
Para o cardeal arcebispo de Milão, Angelo Scola, “diante de um clima cultural confuso, que eu definiria como ‘babelismo’, o papa nos indica o caminho da pluriformidade na unidade, aceitando o debate com todos”. Segundo ele, “a Igreja deve voltar a ser um lugar apaixonado de atração, não um lugar que gera tédio”.
A reportagem é de Aldo Cazzullo, publicada por Corriere della Sera, 02-04-2017. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis a entrevista.
Cardeal Scola, o senhor e Bergoglio foram os protagonistas do conclave. O papa nunca tinha ido a Milão. É inevitável que se falasse de um dualismo. Era tudo falso?
Além dos muitos lugares-comuns jornalísticos, a minha relação com Bergoglio sempre foi muito boa e muito cordial, tanto nas reuniões de cardeais, quanto nos Sínodos dos bispos.
Quando vocês se conheceram?
Como reitor da Lateranense, eu ia a Buenos Aires e passava para cumprimentá-lo. Desde que é papa, todas as vezes em que eu pedi para encontrá-lo, ele me respondeu imediatamente e me deu todo o tempo necessário para abordar questões delicadas também. Entre nós, nunca houve incompreensão ou má vontade. Foram construídas imagens falseadas do conclave.
Então por que não tornar tudo público?
Talvez, mas a confidencialidade sobre o conclave está a serviço da comunhão na Igreja: portanto, do conclave não se fala.
Que “questões delicadas” o senhor abordou com Bergoglio?
Por exemplo, os delicta graviora.
Pedofilia?
Sim. E o papa foi muito claro sobre esse ponto. A partir de fora, muitas vezes, não se capta o compromisso da Igreja para com as vítimas e também para com aqueles que erraram gravemente. Os procedimentos, além disso, são muito complexos.
A visita do papa a Milão será lembrada como histórica.
Extraordinária. Um milhão de pessoas em Monza, talvez meio milhão ao longo do trajeto. Muitos saíram de casa às 7 horas e voltaram à meia-noite, depois de fazerem 10 quilômetros a pé. E o papa mostrou o seu estilo de família: em San Siro, falou diante de 80 mil jovens como se estivesse na frente de oito sobrinhos, explicando-lhes a importância dos avós, dos riscos do bullying, da responsabilidade dos pais. É a demonstração de que ainda há um cristianismo do povo entre nós. Mas a Igreja de Milão também tem na Europa a posição mais difícil que existe.
Por quê?
Em toda oportunidade de encontro, fico surpreso com a persistência de um sentimento espontâneo de fé: as pessoas falam das próprias necessidades, pedem uma oração pelo filho que se desviou ou pela esposa ou pelo marido que foi embora. Mas – como Montini já notava – quando se sai da Igreja os critérios de avaliação da vida cotidiana são aqueles dominantes fornecidos pelas agências culturais de hoje. O fosso entre a fé e a vida se ampliou. Retomei esse tema na visita pastoral: insistindo na necessidade de ter a mesma mentalidade de Jesus, os mesmos sentimentos de Jesus. Em Milão, devemos passar com mais decisão da convenção à convicção.
O seu novo livro intitula-se Postcristianesimo? [Pós-cristianismo?]. Mas com o ponto de interrogação.
Certos intelectuais, e não só, consideram o cristianismo como um fato superado e fazem isso acreditando que interpretam os comportamentos do povo. Não é assim: o Evangelho de Jesus continua sendo pertinente e atual. Diante de um clima cultural confuso, que eu definiria como “babelismo”, o papa nos indica o caminho da pluriformidade na unidade, aceitando o debate com todos. A Igreja deve voltar a ser um lugar apaixonado de atração, não um lugar que gera tédio.
O abraço de Milão a Bergoglio foi impressionante.
É isso mesmo. Uma palavra que eu sentia muito fortemente: consolação. Os cidadãos de Milão e das terras ambrosianas precisavam de um abraço comunitário que os arrancasse do “cinza” da solidão e fizesse florescer neles novamente o gosto pela vida. O papa disse isso na catedral, criticando o risco da resignação da qual deriva a preguiça. As pessoas responderam com um autêntico entusiasmo, também em San Vittore. Por toda a parte, pediram-lhe orações, agradeceram-lhe pela visita. Estavam todos lá por causa dele. De noite, na escuridão, a praça da catedral ainda estava lotada para vê-lo passar.
Até quando o senhor permanecerá como arcebispo de Milão?
Eu não sei. Eu apresentei a minha renúncia em novembro, quando completei 75 anos. Estou esperando para falar com o Santo Padre: cabe a ele decidir. É claro que não vou ficar por muito tempo.
O senhor voltará para a sua Malgrate, para aquele ramo do Lago Como?
Perto dali. Encontrei uma casa paroquial vazia em um pequeno povoado, Imberido. Veem-se os pequenos lagos de Brianza: Oggiono, Annone, Pusiano. As pontas de Canzo, o mosteiro de San Pietro al Monte. E, depois, o Resegone e as duas Grigne. Vou voltar para casa.
O que vai fazer?
Ser padre. Celebrar missa, confessar, encontrar as pessoas, rezar mais regularmente do que agora. Ler e escrever, se tiver força.
A casa canônica está vazia porque ser padre é uma das atividades que os italianos não querem mais fazer.
Ser padre é muito bonito. É claro, o problema das vocações é complexo. Muitos subestimam a crise demográfica: a escolha era mais fácil quando se tinham mais filhos e a proposta da Igreja era mais incidente. Como diz o papa, se não retomarmos a proposta do Evangelho como realidade atrativa, por que um rapaz de hoje deveria assumir uma tarefa de grande sacrifício, que perdeu prestígio social? Aqui também, a passagem da convenção à convicção ainda não se realizou. Mas a mesma coisa pode ser dita sobre o ser família.
O senhor não acredita que também seria útil permitir que os padres se casem? Parece que Bergoglio está pensando nisso.
Eu não acho. É justo que sempre aprofundemos as razões da escolha do celibato. Mas, na Igreja, existe um magistério, e o magistério dá indicações. Paulo VI e os seus sucessores refletiram profundamente sobre essa questão.
Qual é a sua opinião?
O celibato não é uma regra extrínseca. Ela afunda as suas raízes no estilo de vida de Jesus, na opção da virgindade, que, com a obediência, a pobreza e a castidade, sempre foi sentida pela Igreja latina como um alimento-fonte e poderoso do sacerdócio. Não é só o “coração indiviso” de que fala Paulo. É a escolha de oferecer a renúncia à dimensão “genital” da sexualidade para não antepor nada ao amor de Cristo, que o celibatário pretende imitar “sine glossa”, “sem acréscimos”.
Não é uma renúncia cruel?
Para além das fragilidades, eu encontro nos sacerdotes muita alegria e muita serenidade diante dessa vocação que se deixa levar a serviço da demanda de sentido dos homens. Em particular, os esposos sentem os padres como acompanhadores espirituais de uma vida. Homens capazes de respeitar uma coisa que eu vejo pouco respeitada: a autêntica dimensão sexual do eu. Todos devemos fazer as contas, do nascimento até a morte, com essa dimensão da nossa personalidade. Um acompanhamento espiritual personalizado é um grande dom oferecido à sociedade. Muitas pessoas que dizem não acreditar também se dirigem aos sacerdotes para buscar uma ajuda.
O que o senhor acha das diaconisas?
Sob essa palavra, passam experiências muito diferentes. No último Sínodo, um arcebispo ucraniano disse que a “diaconisa”, entre eles, era uma devota que limpava o altar. O cardeal de Ouagadougou defendeu que nós, ocidentais, fomos colonialistas, não percebemos que existem problemas muito mais urgentes como a poligamia na África...
O que o senhor pensa a respeito?
Acho que não se deve buscar a valorização da mulher ao longo da linha de uma participação na potestas de Cristo: o poder de administrar os sacramentos. Balthasar subordinava a dimensão petrina da Igreja à dimensão mariana: a Igreja como esposa de Cristo. Na psicologia do profundo de Lacan, a mulher tem o lugar de Deus. A vocação feminina é a salvaguarda do lugar do outro. Isso não significa que a mulher não pode ter posições de responsabilidade também na Cúria, nas universidades, nos tribunais, no estudo da teologia, na educação ao belo amor, até mesmo na formação dos seminaristas.
Quem o senhor gostaria de ter como seu sucessor?
Um homem de fé e livre. Tendencialmente pacífico, mas capaz de fazer com que a unidade vença no conflito, sem fugir do conflito.
Que conselho lhe daria?
Aquele que João Paulo II me deu quando me mandou para Veneza: seja você mesmo.
Que Milão o senhor deixa?
Estou contente com a Milão que eu deixo. Não porque não haja contradições, mas porque vejo muitos sinais de renascimento.
Que contradições?
O próprio papa no-las indicou: marginalização, injustiças, muito sofrimento ainda. Muitos jovens estrangeiros há meses na prisão à espera de julgamento. Muitos bolsões de pobreza. Muitas dificuldades para enfrentar o trágico problema da imigração. Finanças e economia desvinculadas da realidade.
O senhor sempre exaltou a “mestiçagem”. Os migrantes são demais agora?
A imigração dá medo porque põe em discussão o nosso estilo de vida. Não é uma emergência; é um fenômeno que vai durar décadas. A Europa devia fazer uma espécie de Plano Marshall e não o fez. A Igreja não pode fechar os olhos. Ela oferece o primeiro abraço. A força generosa de Milão pode identificar caminhos paradigmáticos para a Itália e para a Europa.
Por exemplo?
Vários jovens muçulmanos já frequentam os oratórios. Lá, são ajudados a praticar a sua religião, a fazer as suas orações, a comer os seus alimentos, ficando junto com os jovens cristãos.
O patriarca de Veneza não é cardeal, como o arcebispo de Turim e o de Bolonha. É um dos muitos sinais de que, com Bergoglio, a Igreja italiana importa menos do que antes?
As coisas estão em forte evolução em toda a Europa. Este papa representou para nós, europeus, uma pro-vocação, no sentido etimológico: colocou-nos diante da nossa vocação, sem descontos. A Itália sente um pouco mais a repercussão disso do que outras Igrejas. O problema é não cair na tentação do choque ideológico. É preciso assumir o magistério do papa na sua articulada complexidade: “unidade de poliedro”, como ele diz. No Papa Francisco, eu vejo quatro elementos: o testemunho em primeira pessoa; o uso dos exemplos; a cultura do povo; o ensinamento verdadeiro. Todos os quatro devem ser mantidos juntos. Se separarmos um e o colocarmos contra o outro, se tentarmos capturar o papa inclinando-o para o próprio lado, entra-se ideologia. E a ideologia pesou muito, demais, entre os anos 1970 e 1990. Agora, somos chamados a sair dessa lógica estagnante para abrir espaço ao diferente, a nos escutarmos em profundidade, colocando em primeiro lugar aquilo que vem primeiro: o pertencimento comum à Igreja.
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Da convenção à convicção: Francisco e o pós-cristianismo. Entrevista com Angelo Scola - Instituto Humanitas Unisinos - IHU