19 Junho 2013
O processo de secularização nasceu e até agora se desenvolveu inteiramente em âmbito cristão; por isso, não há nenhuma garantia de que, investindo contra outras religiões, ele leve aos mesmos resultados. Ao contrário, é preciso afinar o olhar para se acostumar a captá-lo em ação em formas inusitadas e paradoxais.
A opinião é do cardeal Angelo Scola, arcebispo de Milão, na Itália. O artigo foi publicado no jornal La Repubblica, 17-06-2013. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
Em um trecho corânico, o jovem Abraão, em busca de Deus, se volta à noite a adorar as estrelas. Mas quando elas desaparecem no raiar do dia, ele exclama: "Eu não amo aquilo que declina". E, a partir dessa consideração, ele é conduzido, através da lua e do sol, ao culto do Criador único. "Eu não amo aquilo que declina": pode-se imaginar uma provocação mais radical para as nossas sociedades norte-ocidentais?
Convocando o Ano da Fé, Bento XVI observava como grandes setores da sociedade eram afetados por "uma profunda crise de fé", que investiria também contra os próprios cristãos, mais preocupados com as consequências de sua fé do que com a sua essência. Por isso, a presença de muçulmanos que muitas vezes vivem uma dedicação radical ao Absoluto é uma provocação a ser acolhida.
Essa provocação, que brota do encontro entre religiões e culturas, não deve, no entanto, levar a um teísmo indistinto, uma improvável "aliança do transcendente", mas sim a uma consciência mais consciente da própria identidade dinâmica e da própria tradição. É aqui que se desencadeia a questão decisiva do testemunho e da liberdade religiosa, necessária para dar substância a esse encontro.
A posição de quem deseja para os muçulmanos, particularmente para aqueles que vivem na Europa, um "banho purificador" no secularismo, contudo, parece ingênua e objetivamente equivocada, principalmente no momento em que lamentamos os efeitos do secularismo sobre a vida das comunidades cristãs e da sociedade como um todo.
Com relação à experiência religiosa, mal comum não é meia alegria. O que é necessário, ao invés, é um aprofundamento mais decidido em todos da experiência religiosa e das suas autênticas exigências, que Jesus Cristo anunciou ter vindo cumprir em plenitude. Exigências que também implicam uma constante purificação.
Portanto, seria errado representar o processo em um sentido único, como se tudo se resolvesse na necessidade de uma "recuperação do transcendente" para uma Europa achatada no horizonte imediato. Urge também o movimento oposto, na forma de uma decisiva denúncia de uma teologia política e de uma religião ideologizada que afeta cada vez mais a vida no Oriente Médio, acima de tudo das comunidades minoritárias hoje tão duramente testadas (pensemos apenas nos coptas no Egito, na Igreja nigeriana e paquistanesa, e na tragédia síria).
Liquidar a questão como uma utilização imprópria da religião para fins políticos corre o risco facilmente de se tornar autoabsolutório. Ao invés, é preciso falar de um comprometimento em que os homens das religiões assumem não raramente um papel ativo, tornando-se instigadores de atos de violência. Trata-se de um fato ainda mais grave porque tal comprometimento representa uma radical traição da experiência religiosa, que beira a idolatria: os homens que tomam tais iniciativas "em nome de Deus" muitas vezes acabam agindo, de fato, "no lugar de Deus".
Também nesse caso, porém, o tema da secularização assume formas e conteúdos novos se o olharmos à luz da transição árabe, iniciada com as revoltas de 2011. Retratar a mudança em curso no mundo islâmico como uma luta entre um "antigo" religioso e um "novo" secular é simplista, quer se prognostique uma vitória do "novo", talvez depois de alguns contratempos, quer se espere a prevalência do antigo, com concessões formais mínimas à modernidade.
Na realidade, o "antigo" assumiu, parodiando-os, muitos traços do novo, e o novo continua muito enraizado na tradição. Há outros temas que entram em jogo (o caso turco é emblemático nesse sentido), como a legitimidade do pluralismo dentro do Islã, a luta pela democracia, a liberdade de expressão e a crítica a uma forma de religiosidade que faz do sucesso material e econômico o único critério de valor.
A partir desse quadro tão fragmentado, eu acredito que ainda se possa obter um dado significativo. O processo de secularização nasceu e até agora se desenvolveu inteiramente em âmbito cristão; por isso, não há nenhuma garantia de que, investindo contra outras religiões, ele leve aos mesmos resultados. Ao contrário, é preciso afinar o olhar para se acostumar a captá-lo em ação em formas inusitadas e, no limite, paradoxais: a religião imanente do Islã político poderia ser uma delas.
Uma coisa, contudo, é certa: não faz muito sentido opor o Ocidente ateu ao Oriente da espiritualidade: o dado novo daquele processo que chamamos de mestiçagem é que os dois polos, se alguma vez existiram, já se entrecruzaram reciprocamente, inclusive fisicamente. Se as fronteiras vão se reconfigurando, a nossa hipótese de trabalho, como Fundação Oasis, deve ser a de atravessar os vários territórios e saberes, alavancando a experiência religiosa comum. Ou, parafraseando Italo Calvino: "Olhar e saber reconhecer quem e o que, em meio ao deserto, não é deserto, e fazê-lo durar e dar-lhe espaço". Porque aquilo que, em meio ao deserto, não é deserto é justamente o oásis.
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Quando o Islã também se seculariza. Artigo de Angelo Scola - Instituto Humanitas Unisinos - IHU