15 Dezembro 2016
"Aviso aos dignitários da Santa Sé: 'A Corte pontifícia mantém uma tradição um tanto atávica, e isso tem que mudar'."
O comentário é do historiador italiano Alberto Melloni, professor da Universidade de Modena-Reggio Emilia e diretor da Fundação de Ciências Religiosas João XXIII, de Bolonha, em artigo publicado por La Repubblica, 11-12-2016. A tradução é de Ramiro Mincato.
Eis o artigo.
"Como Deus manda" não é um documentário sobre o que o papa diz ou o sobre o que você gostaria de fazê-lo dizer. É um grande esforço para entender quem é Francisco: um padre libertado entre mornos beatos, um líder mundial entre os gnomos globais, um macho resolvido entre inseguros arrogantes, um homem feito pai por um celibato sem exaltações.
O documentário - que foi ao ar na noite de 11 de dezembro, às 23h15 na Sky Atlantic, e teve uma pré-visualização no sítio da La Repubblica – é narrado pela voz externa de Francisco: pequenos recortes de entrevistas em espanhol (aquela do Vanguardia e aquela concedida ao editor da Civiltà Cattolica, Antonio Spadaro, se reconhecem a olho nu), com a voz pousada sobre imagens tiradas de fontes da TV e do YouTube, serve como introdução aos recortes igualmente milimétricos de cenas de viagens pouco ou nunca vistas.
A escolha de Diana Ligorio, documentarista delicada, obriga a refletir sobre sua origem, ou seja, sobre o corpus das "entrevistas dos Papas", já numerosas, que constituem um gênero de variedades. Passaram-se eras desde a primeira, aquela de Leão XIII dada à Séverine (pseudônimo de Caroline Rémy), publicada no Le Figaro de 4 de agosto de 1892, que alarmou a imprensa intransigente que via na entrevista uma "sorrateira tentativa liberal" de repudiar o antissemitismo "tradicional" da Igreja, e que, atualmente, ao contrário, chama atenção por razões opostas.
Distante também a entrevista de Alberto Cavallari, um diálogo com Paulo VI, publicada em 03 de outubro de 1965 no Corriere della Sera, onde a solenidade das questões combinava com a solenidade das respostas. Veio, então, a conversa "polaca" de Jas Gawronski com João Paulo II, lançada dia 03 de novembro de 1993, em La Stampa. Bento XVI, que tinha a entrevista como instrumento autobiográfico, aceitara até mesmo uma entrevista televisiva em 2006, na qual a fixidez dos corpos e vozes prevalecia sobre o conjunto.
Em seguida vem, precisamente, a abundância de Francisco. Francisco que procura por telefone um entrevistador, do seu tamanho, com Eugenio Scalfari. Francisco que fala com Spadaro. Francisco, que se faz entrevistar em fluxo contínuo e enriquece – Francisco justamente fez uma exceção para a TV2000 que, como Primaz da Itália é o "sua" – uma biblioteca de transcrições e traduções, em que os leitores separam o que Francisco falou de "importante" e o confrontam com aquela imagem de Francisco que que Monsenhor Dario Viganò, regista finíssimo do corpo e da alma do Papa, fornece com a tele câmera na mão, que para fazer ver o cristianismo de Francisco, basta tirar e não adicionar açúcar ou ênfase sentimental celebrativa.
Diante deste corpus agora imenso, "Como Deus manda" muda a perspectiva: encena falta de ar e as pausas do espanhol bergogliano, reduz a estilhaços unificados pela intensidade pessoal e os transforma em introdução à imagens belíssimas e muitas vezes desconhecidas em que Francisco coloca seu silêncio e sua querida presença diante do irreparável e da injustiça. O conjunto dá ao filme um tipo de lentidão confidencial, íntima: o "modo" com que Francisco diz sentir-se exposto ao pudor machista diante das emoções, que reconhece no risco de desejar ser o pároco do mundo um delírio "imaturo", não conta menos que o "conteúdo" daquelas frases. Mas dá ao percurso um sentido quase testamentário: como se os registas desse filme tivessem absorvido a "sensação" de um pontificado breve. Ouve-se o próprio Francisco afirmar com sua palavras: "Um pontificado de 4-5 anos, porém, é uma sensação, por isso deixo sempre as possibilidades em aberto". Presságios e avisos. Como quando ele adverte: "A Corte pontifícia mantém uma tradição um tanto atávica, e isso tem que mudar".
Única falta - inofensiva, inútil e grave – no explicit: em 14 de janeiro de 2014 Francisco entregou uma mensagem ao amigo Tony Palmer, jovem bispo evangélico pentecostal do Convergent Moviment, que morreu poucos meses depois, em acidente de carro. Era uma mensagem gravada num telefone celular e dirigida à Charismatic Evangelical Leadership Conference, que ocorria no Texas. Uma mensagem de fraternidade para igrejas facilmente catalogadas como "seitas" pelo jargão católico. Esta mensagem foi inserida, sem avisar, numa bênção de despedida para o espectador; e não, como era, um daqueles atos que pode remodelar o ecumenismo da Igreja Católica e, por isso, a auto-compreensão da igreja.
Assista o trailer do documentário "Como Deus manda":
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Um Francisco nunca visto e as confidências de um breve pontificado - Instituto Humanitas Unisinos - IHU