25 Novembro 2016
“A opção pela PEC não é econômica, embora o argumento seja econômico. No fundo, a opção é política para garantir recursos desse orçamento decrescente para o rentismo” declara o economista e Instituto de Economia e do Centro de Estudos Sindicais e de Economia do Trabalho da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Márcio Pochmann.
A entrevista é de Lizely Borges, publicada por Página do MST, 23-11-2016
A Proposta de Emenda Constitucional 55/2016 (anterior PEC 241), de autoria do governo federal e que limita o aumento dos gastos públicos à variação da inflação anual, é tema das sessões em comissão desta semana no Senado Federal.
Em reunião conjunta das comissões de Assuntos Econômicos (CAE) e Direitos Humanos (CDH), a matéria deve ser analisada em sessões pelos senadores anteriormente de ser apreciada, em 1º turno, no dia 29 deste mês pela plenária. Central ao projeto empreendido pelo novo governo e alinhada ao documento apresentado pelo PMDB em outubro de 2015, nomeado de Ponte para o Futuro, a PEC vale-se do argumento de necessidade de novo ajuste fiscal para equilíbrio das contas públicas.
Em entrevista por telefone, o economista Márcio Pochmann analisa as justificativas econômicas para defesa da PEC 55/241, reflete sobre a ruptura do acordo político estabelecido pela Constituição Federal de 1988 e denuncia o favorecimento do capital rentista com a aprovação da emenda.
Eis a entrevista.
Na justificativa para aprovação da PEC 241/55 consta o argumento da necessidade de equilíbrio das contas públicas, com a acusação de que as gestões anteriores tiveram gasto superior à receita. A PEC servirá, como consta na Proposta de Emenda Constitucional em tramitação no Congresso, para estabilizar as contas públicas?
Nós vivemos uma sobreposição das decisões econômicas sob um acordo político que foi estabelecido na Constituição Federal de 1988. Foi ela que definiu as bases do complexo Estado de bem-estar social no Brasil. E a partir daquele ano, os governos, de uma maneira geral, buscaram cumprir, a sua moda, a Constituição, definindo as áreas e recursos condizentes com a orientação da Constituição. Isso implicou no crescimento do gasto público, em especial do gasto social.
No último ano do governo militar, em 1985, por exemplo, o gasto social agregado, de todas as esferas de governos municipal, estadual e federal equivalia a 13,5% do Produto Interno Bruto (PIB). Em 2014, o gasto social equivale a 23% do PIB. Então, tivemos quase 10 pontos percentuais de aumento de gasto social em relação ao PIB. Isso não se deve a nenhuma medida populista ou irresponsável dos governos no que concerne ao gasto público, em especial, os sociais, mas sim de uma determinação de um acordo político que encerrou a transição para a democracia. É claro que este acordo político, de certa forma majoritário, não foi unânime. Já após a aprovação desse acordo na Constituição de 1988, o próprio presidente Sarney (1985-1990) fez uma declaração de que o Brasil seria ingovernável com esta Constituição. Então, já temos ali uma reação, embora minoritária porque a Constituição, que teve a liderança de Ulysses Guimarães, foi declarada de “constituição cidadã”.
Ao longo do tempo o compromisso da Constituição com a política social foi se estabelecendo, mas tivemos resistências, disputas políticas sempre utilizaram a ferramenta da economia para questionar esse acordo político. Isso se manifestou, por exemplo, na resistência em regulamentar a Constituição nos governos neoliberais, por exemplo no governo Collor de Melo (1990-1992) com a luta social para regulamentar a assistência social, a equivalência dos direitos previdenciários dos trabalhadores rurais. Nós tivemos no governo Fernando Henrique Cardoso (1995-2003), por exemplo, a chamada desvinculação das receitas da União (DRU) [instituída em 1994 pelo então presidente, de caráter temporário e com justificativa de servir à estabilização da economia, a medida desobrigava o Estado na destinação de orçamento, previsto constitucionalmente, para determinados serviços públicos]. Embora houvesse um comprometimento em relação à Constituição em garantir recursos de financiamento público, especialmente gasto social, mas havia uma emenda constitucional atualizada pelos governos que deram continuidade ao governo de FHC que capturaram parte desses recursos.
Tivemos medidas variadas de desoneração fiscal que retiraram parte dos recursos para a seguridade social, por exemplo. Mas eram medidas pontuais que embora retirassem recursos não implicava uma medida tão radical como a que está sendo estabelecida agora, cujo argumento é de natureza econômica, mas que certamente há um profundo questionamento ao acordo político de 1988.
A PEC 241/55 é uma medida que atua numa parte significativa das despesas, mas não na sua totalidade. Atua nas despesas não-financeiras. Esta continua a ser gasta. Como temos um gasto social que está relacionado à população e não temos indícios que esta deverá reduzir, pelo contrário, continuará crescendo, logo teremos queda no gasto per capita. Apenas a correção dos gastos pela inflação, como propõe a PEC, não garante a evolução real do gasto porque temos inflação e comportamento de preços muito diferenciados para diferentes áreas. Um exemplo é a saúde. É muito comum remédios, equipamentos cirúrgicos, os materiais utilizados pela área, em parte importados, ter aumento muito acima da inflação. A inflação é uma média, vai desde o preço do tomate até o preço do automóvel. Temos muitas vezes então preços que sobem acima da inflação média. O fato do orçamento ser corrigido pela inflação média não necessariamente permitirá que o gasto público não perca poder de compra em termos reais.
O problema que nós temos no tema fiscal não decorre de um gasto exacerbado, de um descontrole do gasto público. O problema que temos hoje é justamente da queda da receita resultante da opção pela recessão, que vem do governo Dilma (2011-2016) e continua de uma forma mais grave, porque se de fato aprovarem esta medida nós poderemos ter uma contenção ainda mais forte da atividade econômica, levando talvez a uma própria depressão. O gasto público vem da elasticidade do gasto: as pessoas recebem por meio de salário ou pensão, elas não aplicam na poupança, elas pegam esse dinheiro e gastam, consumindo de alguma forma, em alimentos, roupas. Então esse dinheiro entra e ele se transforma em consumo, e este consumo tem efeito sobre a atividade econômica, sobre a arrecadação. O que nos permite dizer que de cada quatro reais em circulação no país, dois vem de gasto social. Então os cortes nestes gastos terão provavelmente um impacto na própria economia. Desta forma, a medida [PEC 241/55] não se configura como saída da recessão pelo Brasil, pelo contrário, pode comprometer ainda mais o problema fiscal no país. Isto porque o problema fiscal resulta de uma queda da receita. A receita caiu porque o nível das atividades da economia também caiu, se cai a atividade econômica há menos impostos para arrecadar.
Então a opção pela PEC não é econômica, embora o argumento seja econômico. No fundo, a opção é política para garantir recursos desse orçamento decrescente para o rentismo. A PEC do teto é contra o povo e a favor do rentismo.
Outro argumento presente na defesa da PEC é que a medida de congelamento dos gastos primários, como saúde e educação, atrairá atenção e confiança de investidores para a economia brasileira, assim como colaborará para a conter a inflação e gerar empregos. A PEC colaborará para melhor uso dos recursos públicos e o controle inflacionário?
Tudo isso justifica a continuidade do pagamento da dívida pública pelo governo. Para investidores nacionais ou estrangeiros interessa saber que o Estado brasileiro está reduzindo gastos sociais da forma que permita sobrar recursos para pagamento dos juros da dívida. Nesse sentido, a roda da especulação será mantida. É o elemento de credibilidade para a roda da especulação, mas não é o elemento de credibilidade para a economia que não está associada à sua financeirização. Daí não teremos condições para a economia se recuperar por conta da expansão do investimento ou possibilidade de aumentar a produção e consumo. Então, isso não justifica para aqueles que acreditam que as medidas são necessárias para o país poder sair da recessão, pelo contrário, tende a aprofundar a recessão, mas por outro lado é uma medida que dá credibilidade à continuidade do movimento especulativo, o rentismo.
Em entrevista, o senhor declarou que a Constituição Federal de 1988 determinou um novo patamar para a política econômica, com o gasto social passando a ser um dos principais determinantes desta política. Com o congelamento dos gastos primários, caso a PEC seja aprovada, inauguramos uma nova política econômica ou trata-se de aprofundamento do ajuste fiscal já presente nas gestões anteriores?
A Constituição Federal de 1988 estabeleceu que a economia, de alguma forma, deveria torna-se um meio para o desenvolvimento humano, para o desenvolvimento das cidades, e não o fim em si mesmo. Com esta medida nós possivelmente teremos um retrocesso, de forma que a economia passa a ser um fim em si mesmo e o gasto social um mero atributo da economia.
Em outros momentos, o senhor apontou elementos comuns entre o contexto político e econômico atual e o momento em que foi instituído o 1º Ato Institucional, pós golpe militar. Quais são as semelhanças entre estes dois momentos históricos?
Uma das características da nossa experiência é que as gestões democráticas não tiveram sucesso na realização das reformas de que o país precisa. No período de experiência democrática de 1945 a 1964 as reformas de base do governo João Goulart (1961-1964), por exemplo, eram a possibilidade de reformular o país do ponto de vista do voto, de constituir a participação popular. Uma das proposições do Jango era incluir os analfabetos no sistema eleitoral, o que obviamente implicaria um desaviamento do poder do sistema eleitoral tradicional, do poder do ruralismo, do clientelismo que caracteriza a subalterna política brasileira.
O que ocorreu em 1964 foi justamente um golpe à democracia. Inegavelmente não foi um golpe conservador para manter tudo como estava, mas um golpe que fez reformas. No 1º Ato Institucional (1964), no qual se estabelecia uma nova forma de governo, composto por presidente e junta militar, já se colocou ali a contenção do gasto público, determinando teto para evolução dos gastos a partir de então. E tivemos uma sucessão de reformas pelo Programa de Ações Econômicas do Governo (PAEG), programa de orientação do governo militar logo na sua origem para a realização de várias reformas.
Olhando este período de trás para frente fica bastante claro. Da mesma forma, se olharmos o golpe de 2016, ao vermos o documento lançado pelo PMDB, o Ponte para o Futuro [documento apresentado pelo partido em outubro de 2015], vamos ver uma espécie de PAEG porque ali está claro a série de reformas que eles defendem. Embora ainda fizessem parte de outro governo [da gestão petista], eles já propunham um outro caminho, um caminho diferente daquele que estava sendo conduzido pelos governos do PT. A única forma deste Programa que está sendo implementado ser implementado não seria na democracia, porque as tentativas de impô-lo desde 2002 foram todas derrotadas. É um golpe para viabilizar a implantação de um conjunto de reformas: a PEC que reformula os gastos públicos vem acompanhada das reformas da previdência, da educação, tributária, do Estado pelas concessões que estão sendo planejadas e feitas. Portanto, moldando um novo país, um país talvez para um terço da população e de permanência da tradição autoritária.
Os movimentos populares, os estudantes secundaristas, universitários e institutos de pesquisa tem tentado trazer para a esfera pública o debate dos impactos da PEC, no entanto parte significativa da população está apartada deste debate. Há também uma parcela da população que concorda com o congelamento das despesas com gastos primários, com a crença de que no futuro esse contexto será superado e a população poderá ter benefícios de uma economia mais estabilizada. Por que parte da população compreende que vale o sacrifício nesse momento, de prejuízos a direitos sociais em nome de futuro não garantido?
A população em sua maioria está mal informada porque ela depende das informações veiculadas pelos meios de comunicação tradicionais. Portanto, essa má informação leva a população entender que os problemas que o país tem hoje derivaram de gestões petistas que desorganizaram as finanças do país, de tal forma que não entende que o golpe foi contra a própria população.
Quais são as alternativas possíveis para aumento, num curto e médio prazo, da receita brasileira sem implicar no congelamento do orçamento destinado às políticas sociais?
O aumento da receita mais fácil de ser realizado é através da retomada do próprio crescimento econômico. Não vejo alternativa que não passe por isso. É evidente que é possível aumentar a receita cobrando a dívida atrasada, cobrando a tributação principalmente daqueles que não pagam imposto de renda no Brasil, mas aí também há uma relação de forças que, de certa maneira, dificilmente vai ser realizada com os setores políticos que temos no Brasil. Nós não temos um acordo político que viabilizaria alternativas de outro tipo. Desta forma é importante que os movimentos populares sigam com a reivindicação da reforma tributária, com a redução da tributação sobre os mais pobres e auditoria da dívida pública.
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“A PEC do teto dos gastos é contra o povo e a favor do rentismo”, declara o economista Marcio Pochmann - Instituto Humanitas Unisinos - IHU