"De acordo com o contexto narrativo do Evangelho de Mateus, os destinatários primeiros do discurso foram os discípulos e as multidões que se reuniram à beira-mar para ouvir Jesus (Mt 13,1-2). Porém, mais do que reconstituir e descrever fielmente um acontecimento concreto da vida de Jesus, o evangelista organizou o discurso para responder às necessidades da sua comunidade que vivia um momento de crise.
"Lembremos que desde a comunidade apostólica havia na Igreja a tendência equivocada de querer ser uma comunidade de santos, justos ou eleitos, ou seja, uma comunidade separada e isolada. Essa tendência era e é um entrave para a concretização do Reino. Com essa parábola da rede, Jesus apresenta o universalismo do Reino, marcado pela diversidade e inclusão, e sua exposição aos perigos. A rede envolve, junta, mistura tudo. A ideia da rede supõe inclusão, aceitação e abertura constante. O mar onde ela é lançada é sempre imprevisível, ninguém pode prepará-lo antes. Isso é um desafio para a comunidade e uma advertência a qualquer tendência separatista e segregadora."
A reflexão é de Jaci Souza Candiotto, graduada em Teologia pelo Studium Theologicum (1995), mestre (2008) e doutora (2012) em na mesma área pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio). Leciona no Mestrado em Direitos Humanos e Políticas Públicas (PUCPR) e no curso de Teologia da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR).
1ª Leitura - 1Rs 3,5.7-12
Salmo - Sl 118(119),57.72.76-77.127-128.129-130 (R. 97a)
2ª Leitura - Rm 8,28-30 ou mais breve 13,44-46
Evangelho - Mt 13,44-52
A liturgia deste domingo nos apresenta a reflexão sobre Reino de Deus, tema propício para rever nossa compreensão e compromisso na sua construção.
A primeira leitura (Rs 3,5.7-12) apresenta uma passagem importante da história de Salomão. Em sonho, o Senhor lhe aparece oferecendo a oportunidade de pedir o que deseja. E Salomão pede a Deus por um "coração compreensivo", capaz de governar o povo com sabedoria.
Na segunda leitura (Romanos 8,28-30), eu gostaria de destacar o versículo 28: “Sabemos que todas as coisas concorrem para o bem dos que amam a Deus, daqueles que são chamados segundo o projeto dele”. Este é um dos versículos bíblicos que recorrentemente aparece nos lábios das pessoas em situações da vida cotidiana.
Os estudos bíblicos apontam que todo o capítulo 8 da carta aos Romanos tem como centralidade a história da salvação. Quando Paulo usa a expressão “tudo concorre para o bem”, vai muito além do aspecto material ou bem-estar físico, segundo o entendimento humano do bem pela sua identificação com outros bens.
Já o evangelho (Mt 13,44-52) conclui a leitura dos discursos em forma de parábolas pronunciados por Jesus que viemos acompanhando há dois domingos. Esse é o terceiro dos cinco grandes discursos de Jesus no Evangelho de Mateus, sendo composto de sete parábolas que descrevem, simbolicamente, o Reino dos Céus.
De acordo com o contexto narrativo do Evangelho de Mateus, os destinatários primeiros do discurso foram os discípulos e as multidões que se reuniram à beira-mar para ouvir Jesus (Mt 13,1-2). Porém, mais do que reconstituir e descrever fielmente um acontecimento concreto da vida de Jesus, o evangelista organizou o discurso para responder às necessidades da sua comunidade que vivia um momento de crise.
Lembremos que as parábolas que as antecederam, apresentaram de maneira mais descritiva as diversas características do Reino dos céus. Já as parábolas propostas para a liturgia de hoje são mais motivadoras. Isso se evidencia, sobretudo, nas duas primeiras, a do tesouro e a do comprador de pérolas (vv. 44-46). Elas são, acima de tudo, motivações para a acolhida do Reino. A terceira parábola sobre a rede lançada no mar retoma a descrição, evidenciando as contradições e a diversidade que compõem o Reino dos Céus, prevenindo a comunidade cristã de qualquer puritanismo e segregação. Eis a primeira parábola: “O Reino dos céus é como um tesouro escondido no campo. Um homem o encontra e o mantém escondido. Cheio de alegria, ele vai, vende todos os seus bens e compra aquele campo” (v. 44).
A respeito do homem que encontra o tesouro, o texto não diz muita coisa. O que sabemos é que ele encontrou um motivo para mudar a sua vida. A chamada de atenção de Jesus para os discípulos e a multidão, e de Mateus para a sua comunidade, visa deixar ainda mais claro que o Reino deve ser a primeira opção de quem o encontra.
A segunda parábola tem muita semelhança com a primeira. Também nela se evidencia a necessidade de uma tomada de decisão radical, sendo bem evidentes também as diferenças. Ora, na segunda, o Reino é comparado à pessoa que procura e encontra, e não ao objeto encontrado: “O Reino dos céus é como um comprador de pérolas preciosas. Quando encontra uma pérola de grande valor, ele vai, vende todos os seus bens e compra aquela pérola” (vv. 45-46). Também nessa, as informações sobre o homem envolvido são poucas. Assim como o da parábola anterior, também esse homem encontra algo que lhe faz tomar uma decisão radical.
Na primeira, o tesouro foi encontrado como puro dom, sem nenhuma busca: o homem simplesmente encontrou; na segunda, o personagem é alguém que procura, seleciona criteriosamente o que tem grande valor e o que não tem. Lidas juntas, as duas parábolas mostram que não há contradição entre dom e esforço. A conquista do Reino exige esses dois elementos.
O importante em ambas as situações é a decisão tomada ao encontrar algo que pode mudar o sentido da vida. O que faz sentido não é a forma como o tesouro foi encontrado, mas a decisão tomada para inserir-se nele ou possuí-lo, conforme a linguagem das parábolas. O que conta é viver uma vida pautada pelos valores do Reino: justiça, amor, solidariedade, acolhimento, sinceridade, alegria e coragem para lutar contra tudo o que impede o seu crescimento.
A terceira e última parábola é aquela da rede jogada ao mar: “O Reino dos céus é ainda como uma rede lançada ao mar e que apanha peixes de todo tipo [...]” (vv. 47-48). É muito comum associar esta parábola com aquela do joio e do trigo, refletida no domingo anterior (Mt 13,24-30).
É certo que existem semelhanças entre as duas, mas as diferenças são bem maiores. Naquela do joio e do trigo, quem semeou a semente nociva foi um inimigo, enquanto o dono do campo e da semente boa dormia. Nessa da rede, os peixes bons e ruins têm uma mesma origem, não são frutos da ação de dois personagens diferentes.
Lembremos que desde a comunidade apostólica havia na Igreja a tendência equivocada de querer ser uma comunidade de santos, justos ou eleitos, ou seja, uma comunidade separada e isolada. Essa tendência era e é um entrave para a concretização do Reino. Com essa parábola da rede, Jesus apresenta o universalismo do Reino, marcado pela diversidade e inclusão, e sua exposição aos perigos. A rede envolve, junta, mistura tudo. A ideia da rede supõe inclusão, aceitação e abertura constante. O mar onde ela é lançada é sempre imprevisível, ninguém pode prepará-lo antes. Isso é um desafio para a comunidade e uma advertência a qualquer tendência separatista e segregadora.
No final, Jesus faz uma pergunta simples, mas profunda, aos discípulos: “Compreendestes tudo isso?” (v. 51). A compreensão aqui significa a aceitação da sua mensagem com as consequências que ela implica; não se trata da abstração teórica de um conteúdo, mas de assimilar um jeito novo de viver.
Embora a resposta dos discípulos tenha sido positiva, a história e a própria continuação do Evangelho de Mateus mostram que na verdade ainda não tinham compreendido tudo.
O que interessa realmente é a disposição para compreender e, para isso, é necessário fazer da vida uma busca constante pelo maravilhoso tesouro que é “o Reino de Deus e a sua justiça” (Mt 6,33).