29 Mai 2015
"Oscar Romero é, portanto, não somente para o Papa Francisco um alguém cuja morte corajosa precisa ser homenageada. É um sacerdote cuja vida exemplifica o testemunho do tipo de catolicismo preferido por um papa que declarou, nos primeiros dias após a sua eleição, que queria uma 'Igreja pobre para os pobres'.", afirma Paul Vallely, em comentário publicado por The Huffington Post, 26-05-2015. A tradução é de Isaque Gomes Correa.
Paul Vallely é professor de ética pública na University of Chester, na Inglaterra, pesquisador pós-doutor no Brooks World Poverty Institute, da University of Manchester, e autor da biografia “Pope Francis: The Struggle for the Soul of Catholicism”, a ser publicado pela editora Bloomsbury em setembro.
Eis o comentário.
Um fio condutor liga o Papa Francisco a Oscar Romero, arcebispo assassinado cuja beatificação o papa ordenou que acontecesse nesse último fim de semana, para um aplauso arrebatador do povo de El Salvador e do resto do mundo.
O fio condutor é o da Teologia da Libertação, movimento que correu a América Latina, e depois outras partes do mundo, 40 anos atrás. Sustenta que o Evangelho contém uma preferência pelos pobres e insiste que a Igreja possui o dever de trabalhar pela transformação política e econômica bem como pela transformação espiritual.
Os conservadores na Igreja Católica não gostam disso. Eles se puseram a afirmar que Romero não era um teólogo da libertação. Há uma ironia aí, pois eles mesmos passaram as últimas três décadas bloqueando o caminho de Romero à santificação, dizendo exatamente o contrário: que ele era um teólogo da libertação. Diziam que canonizar o prelado assassinado iria endossar, com eficácia, a Teologia da Libertação também.
Os conservadores viam este movimento radical a favor dos pobres, no auge da Guerra Fria, como um cavalo de Troia marxista que permitiria o comunismo entrar na América Latina pelas portas dos fundos. Os seus seguidores viam-no como as palavras de Jesus postas em ação.
Nos anos que se seguiram, a Igreja Católica tradicional assimilou muitos dos insights da Teologia da Libertação. Porém os conservadores no Vaticano e na hierarquia latino-americana trabalharam nos bastidores para contradizer a sua influência e bloquear quaisquer tentativas de aproximar Romero a se tornar um santo católico.
Existe uma resposta eficaz para estas maquinações e manobras. E ela é dada pelo homem que é, indisputavelmente, um dos pais fundadores da Teologia da Libertação: Leonardo Boff, ex-frei franciscano que deixou o sacerdócio após o Vaticano ordená-lo a um período de “silêncio obsequioso” sob os papados conservadores de João Paulo II e Bento XVI.
Quando perguntado se o Papa Francisco era um teólogo da libertação, Boff deu uma resposta que se aplicaria prontamente a Romero. “Esta questão é irrelevante. O importante não é ser da teologia da libertação, mas da libertação dos oprimidos, dos pobres e injustiçados. E isso ele o é com indubitável claridade”.
Oscar Romero viveu isso também. Ele não foi um teólogo teórico. Romero se pôs com firmeza ao lado dos pobres – e morreu por isso.
Quando começou, Romero era um religioso conservador, porém os eventos o transformaram. Tornou-se arcebispo de San Salvador em 1977 numa época em que os líderes comunitários e os sacerdotes que se manifestavam contra a pobreza extrema e generalizada do país estavam sendo mortos pelos esquadrões da morte a mando dos barões exploradores do café. Camponeses e manifestantes urbanos eram massacrados nas ruas pelo exército. Prisioneiros políticos eram sequestrados e torturados. Igrejas foram profanadas; estações de rádio e jornais diocesanos foram bombardeados.
Romero falou abertamente contra tudo isso. Isso o fez, aos olhos da elite repressora, um comunista de batina. Foi morto a tiros no altar.
As pessoas comuns rapidamente o consideraram um santo, chamando-o de São Romero das Américas. Mas os conservadores no Vaticano e entre os bispos latino-americanos detiveram o processo de canonização de Romero por mais de três décadas. Por fim, as desculpas para bloquear o seu reconhecimento como mártir acabaram. Então, começaram a insistir que ele não era, na verdade, um teólogo da libertação. Uma flagrante tentativa de separar o mártir do movimento teológico que ele incorporou.
Tudo isso ressoou profundamente no Papa Francisco, que viu em Romero um modelo para a sua própria jornada espiritual. Como Romero, ele também começou como um conservador católico. Como líder dos jesuítas na Argentina na década de 1970, Francisco se deparou com a função de dissipar a Teologia da Libertação. No entanto, os eventos o transformaram também.
A sua liderança autoritária junto aos jesuítas terminou com ele sendo enviado para o exílio após ser o provincial durante uma separação profunda e amarga dentro da ordem [religiosa a que pertence]. Nestes dois anos de exílio, ele passou pelo que desde então chamou “uma época de grande crise interior” e surgiu com um estilo de liderança muito mais consultivo.
Como Bispo das Favelas em Buenos Aires, o seu contato prolongado com os pobres trouxe-lhe uma mudança. Antes ele os via como vítimas necessitadas de caridade. Agora começa a vê-los como pessoas que precisavam de ajuda para tomar as rédeas de suas próprias vidas. Começou a apoiar grupos de entre-ajuda, cooperativas e sindicatos – exatamente o tipo de trabalho que ele havia proibido entre os teólogos jesuítas da libertação 20 anos antes. “A vivência dos valores de vida dos pobres transformou o seu coração”, como disse o Pe. José María di Paola, sacerdote que trabalhou com o pontífice entre os pobres de Buenos Aires.
Quando a Argentina passou por uma grande crise financeira em 2001, com o maior descumprimento no pagamento da dívida externa na história do mundo, a metade da população do país estava mergulhada abaixo da linha de pobreza. O sofrimento resultante fez Francisco ver que os sistemas econômicos, e não apenas os indivíduos, poderiam ser pecaminosos. Começou então a usar a linguagem da Teologia da Libertação em suas reprimendas ao governo e ao sistema financeiro internacional, pela austeridade nos cortes dos programas com os quais os pobres contavam.
Ele deu continuidade a esta linguagem já como papa, fazendo críticas ferozes ao capitalismo global nos dois anos desde que assumiu o cargo. Ele reabilitou a Teologia da Libertação ao convidar os seus exponentes principais para irem ao Vaticano e dialogarem com ele em seu importante documento sobre o meio ambiente que está para ser publicado em breve. O prefeito da congregação doutrinal de Roma declarou que a Teologia da Libertação deveria “estar incluída entre as correntes mais importantes da teologia católica do século XX”.
Oscar Romero é, portanto, não somente para o Papa Francisco um alguém cuja morte corajosa precisa ser homenageada. É um sacerdote cuja vida exemplifica o testemunho do tipo de catolicismo preferido por um papa que declarou, nos primeiros dias após a sua eleição, que queria uma “Igreja pobre para os pobres”.
Romero é um exemplo para Francisco no momento em que ele se lança no que pode bem ser um período definidor de seu pontificado. Os próximos seis meses trarão três importantes eventos. A muito aguardada encíclica sobre o meio ambiente e as mudanças climáticas deve sair no próximo mês. Em seguida ocorrerão as visitas oficiais à América do Sul e à América do Norte. Então vem o Sínodo dos Bispos, em Roma, que poderá trazer mudanças à abordagem da Igreja Católica em questões como o divórcio e a homossexualidade.
Romero foi alguém, ao mesmo tempo, ortodoxo e, no entanto, radical. Eis o modelo que o Papa Francisco parece estar estabelecendo para si mesmo.
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Por que Francisco quer que Oscar Romero seja canonizado - Instituto Humanitas Unisinos - IHU