25 Mai 2015
Seis meses depois de se tornar o primeiro pontífice latino-americano, o Papa Francisco convidou um sacerdote octogenário do Peru para uma conversa privada em sua residência no Vaticano. Não listada na programação do papa, o encontro em setembro de 2013 com o sacerdote, Pe. Gustavo Gutiérrez, logo se tornou público – e foi rapidamente interpretado como uma mudança definidora da Igreja de Roma.
A reportagem é de Jim Yardley e Simon Romero, publicada por The New York Times, 23-05-2015. A tradução é de Isaque Gomes Correa.
O Pe. Gutiérrez é um dos fundadores da Teologia da Libertação, movimento latino-americano de acolhimento aos pobres e defensor da transformação social, que os conservadores certa vez desdenharam como sendo abertamente marxista e que o Vaticano tratou com hostilidade. Agora, Pe. Gutiérrez é um visitante respeitado no Vaticano e seus escritos foram elogiados no jornal da Santa Sé. Francisco trouxe outros sacerdotes latino-americanos à cena e, frequentemente, emprega a linguagem dos pobres, que tem raízes na Teologia da Libertação.
E então aqui chegamos, neste sábado (23 de maio) em que uma multidão se amontoou em San Salvador para a cerimônia de beatificação do arcebispo salvadorenho assassinado Oscar Romero, evento que o deixou a um passo da santidade.
Como o primeiro papa vindo do mundo em desenvolvimento, Francisco colocou os pobres no centro de seu papado. Ao assim proceder, ele está diretamente se envolvendo com o movimento teológico que, certa vez, dividiu nitidamente os católicos e que não contava com a confiança de seus predecessores, os papas João Paulo II e Bento XVI. Até mesmo Francisco, quando era um jovem líder jesuíta na Argentina, tinha as suas reservas, hesitações para com o movimento.
Hoje, Francisco fala sobre criar uma “Igreja pobre para os pobres” e está buscando deixar o catolicismo mais próximo das massas – uma missão espiritual que acontece ao mesmo tempo em que ele está tentando reviver a Igreja na América Latina, onde ela tem perdido terreno para as igrejas evangélicas há tempos.
Durante anos, os críticos vaticanos da Teologia da Libertação e os bispos conservadores latino-americanos ajudaram a deter o processo de canonização de Dom Oscar Romero, muito embora inúmeros católicos na região o consideram como uma figura moral elevadíssima: um crítico feroz das injustiças sociais e da repressão política e que foi assassinado durante uma missa em 1980. Francisco rompeu com esta estagnação.
“Este fato é muito importante”, disse o Pe. Gutiérrez. “Alguém que é assassinado pelo seu comprometimento com o povo iluminará muitas coisas na América Latina”.
Tal beatificação é o prelúdio para aquilo que provavelmente será um período definidor do papado de Francisco, com viagens para a América do Sul, Cuba e Estados Unidos; com a publicação de uma encíclica tão esperada sobre a degradação ambiental e os pobres; e com um [Sínodo dos Bispos], em Roma, para determinar se e como a Igreja mudará a sua abordagem sobre questões tais como a homossexualidade, o uso de métodos contraceptivos e o divórcio.
Ao fazer avançar o processo de santidade de Dom Romero, Francisco envia um sinal, a quem certa vez viu alguns de seus bispos estando mais alinhados a governos desacreditados, de que a aliança de sua Igreja é com os pobres, dizem muitos analistas. Na realidade, Dom Romero já era considerado um santo popular em El Salvador mesmo quando o Vaticano havia deixado parado o seu processo de canonização.
“Não é a Teologia da Libertação o que está sendo reabilitada”, disse Michael E. Lee, professor associado de teologia na Fordham University e que escreveu extensivamente sobre o assunto Teologia da Libertação. “É a Igreja que está se reabilitando”.
A Teologia da Libertação inclui uma crítica às causas estruturais da pobreza e um chamado para que a Igreja e os pobres se organizem em prol da transformação social. Michael Lee diz se tratar de uma ampla escola de pensamento: os movimentos se diferiram em diferentes países, com alguns mais políticos em sua natureza e outros menos. O movimento mais amplo surgiu depois de um importante encontro dos bispos latino-americanos em Medellín, na Colômbia, em 1968 e teve origem na crença de que situação dos pobres deve ser central para a interpretação da Bíblia e a missão cristã.
Mas, com a Guerra Fria em pleno vigor, alguns críticos denunciaram a Teologia da Libertação como [um movimento] marxista, e uma reação conservadora rapidamente se seguiu. No Vaticano, João Paulo II, o papa polonês que mais tarde seria creditado como tendo ajudado a derrubar a União Soviética, se tornou suspeito dos elementos políticos presentes nos novos movimentos latino-americanos.
“Esta retórica toda deixava o Vaticano muito nervoso”, disse Ivan Petrella, político argentino e estudioso da Teologia da Libertação. “Se a pessoa vem de uma experiência por detrás da Cortina de Ferro, então ela pode sentir um cheiro de comunismo aqui”.
João Paulo II reagiu nomeando bispos conservadores para a América Latina e apoiando grupos católicos conservadores tais como o Opus Dei e os Legionários de Cristo, que se opunham à Teologia da Libertação.
Na década de 1980, o Cardeal Joseph Ratzinger –futuro Papa Bento XVI, mas que na ocasião era o agente doutrinal do Vaticano – emitiu duas declarações sobre a Teologia da Libertação. A primeira foi bastante crítica, porém a segundo foi branda, o que levou alguns analistas a se perguntar se o Vaticano estava recuando.
Desde a sua nomeação em 1973 como superior dos jesuítas na Argentina, Francisco, então com 36 anos e conhecido como Jorge Mario Bergoglio, era visto como alguém profundamente preocupado com os pobres.
Porém figuras religiosas que o conheceram na época dizem que Francisco, como grande parte do establishment católico local, achava a Teologia da Libertação demasiadamente política. Os críticos também o culpavam por não conseguir evitar o sequestro e a tortura de dois sacerdotes simpatizantes do movimento teológico libertário.
Alguns da hierarquia católica consideravam Francisco um alguém divisionista e autocrático nos 15 anos em que liderou os jesuítas. Então, as autoridades eclesiásticas o enviaram para algo que equivaleria, hoje, a um exílio: primeiro para a Alemanha e, em seguida, para Córdoba, na Argentina – período que ele mais tarde descreveria como “uma época de grande crise interior”.
Ele fez os exercícios espirituais e transformou o seu estilo de liderança para envolver um maior diálogo. Quando foi nomeado arcebispo de Buenos Aires, no centro de sua atenção estavam os que haviam sido abandonados pela turbulência econômica que perpassou a Argentina.
“Com o fim da Guerra Fria, ele começou a ver que a Teologia da Libertação não era sinônimo de marxismo, como alegavam muitos conservadores”, disse Paul Vallely, autor do livro intitulado “Pope Francis: Untying the Knots”. A crise financeira argentina nos primeiros anos do século XXI também moldou as opiniões do religioso, na medida em que este “começava a ver que os sistemas econômicos, e não apena os indivíduos, poderiam ser pecaminosos”, acrescenta Vallely.
Desde que se tornou papa, Francisco tem feito fortes críticas ao capitalismo, reconhecendo que a globalização vem tirando muitas pessoas da pobreza, porém dizendo que ela também criou grandes disparidades e “condenou muitos outros à fome”. O papa tem alertado: “Sem uma solução para os problemas dos pobres, não vamos resolver os problemas do mundo”.
Na Argentina, alguns críticos não se convenceram de que a franqueza do Papa Francisco a respeito dos pobres representa um acolhimento à Teologia da Libertação. “Ele nunca tomou as rédeas da Teologia da Libertação porque [este movimento] é radical”, disse Rubén Rufino Dri, que trabalhava, no final da década de 1960 e na década seguinte, com um grupo de sacerdotes atuantes nas favelas de Buenos Aires.
Para ele, a decisão de Francisco em expedir a beatificação de Dom Romero foi uma decisão política, parte do que Rubén Dri enxerga como uma “transformação superficial” da Igreja Católica em sua competição, na América Latina, contra o secularismo e outros ramos do cristianismo.
“É uma manobra populista, e feita por um grande político”, diz.
Outros dão uma visão mais nuançada. José María di Paola, 53, sacerdote próximo do Papa Francisco e que certa vez trabalhou com ele entre os pobres em Buenos Aires, fala que esta beatificação reflete um esforço mais amplo do papa em reduzir o foco do Vaticano sobre a Europa. “Faz parte do processo de pôr um fim à interpretação eurocêntrica da Igreja sobre o mundo, dando-lhe um ponto de vista mais latino-americano”, disse ele.
O Pe. di Paola acrescenta que, embora Francisco nunca tenha proposto evangelizar sob a bandeira da Teologia da Libertação durante o período na Argentina, o seu compromisso para com os pobres não deve ser questionado. “A passagem de Francisco por entre as favelas da capital o influenciou, mais tarde, já como bispo e como papa”, disse ele. “A vivência dos valores de vida dos pobres transformou o seu coração”.
Como papa, Francisco expandiu os papéis de centristas simpáticos à Teologia da Libertação, tais como o Cardeal Oscar Rodríguez Maradiaga, de Honduras, em contraste com a influência uma vez empunhada na América Latina por cardeais conservadores, como Alfonso López Trujillo, da Colômbia, falecido em 2008.
“Trujillo representava o pensamento de que a Teologia da Libertação era um cavalo de Troia, através do qual o comunismo entraria na Igreja, algo que finalmente está sendo desfeito sob a liderança do Papa Francisco”, disse Leonardo Boff, 76, destacado teólogo brasileiro que escreve sobre a Teologia da Libertação.
Muitos analistas notam que João Paulo II e Bento XVI nunca denunciaram abertamente a Teologia da Libertação e, lentamente, começaram a rever os seus pontos de vista sobre o assunto. Em 2012, o Papa Bento reabriu o caso de beatificação de Dom Romero. O Cardeal Gerhard Müller, conservador convicto à frente da Congregação para a Doutrina da Fé, se tornou um proponente da Teologia da Libertação após trabalhar no Peru, onde conheceu o Pe. Gutiérrez. Os dois desde então têm escritos livros juntos.
“Não há reabilitação alguma porque nunca houve uma ‘debilitação’”, falou o Pe. Gutiérrez, contestando a ideia de que a Teologia da Libertação teria sido expurgada da Igreja. “Em anos passados, falava-se de condenação e algumas pessoas acreditaram. O que houve foi um diálogo crítico, houve momentos difíceis, mas que se esclareceram com o tempo”.
Francisco seguidamente insta os fiéis a agirem em defesa dos pobres, dizendo-lhes que, ao assim fazerem, irão se transformar. Para os que conheceram Dom Romero em El Salvador, esta transformação foi notável.
Considerado um religioso conservador, Romero começou a mudar em meados da década de 1970, quando era bispo de uma diocese rural onde soldados do governo haviam massacrados alguns campesinos. Pouco tempo depois de se tornar arcebispo de San Salvador, ele ficou horrorizado quando um amigo próximo, sacerdote jesuíta, foi morto – em pouco tempo Romero começou a se manifestar contra o terror e a repressão perpetrados pelo governo.
“Ele começou a surpreender as pessoas”, disse Jon Sobrino, destacado teólogo da libertação que se tornou amigo de Dom Romero e que credita esta transformação ao trabalho que o arcebispo realizava junto aos pobres.
“Os pobres o fizeram ser diferente, mais radical, como Jesus”, acrescentou Sobrino. “Romero se aproximava destas pessoas, e elas o abordavam pedindo por ajuda em seus sofrimentos. Foi isso que o transformou”.
Em 2007, o Pe. Sobrino teve o seu próprio conflito com o Vaticano, quando a congregação doutrinal contestou alguns de seus escritos. Ele se recusou a alterá-los e atribuiu o congelamento do caso de beatificação de Dom Romero à hostilidade vaticana.
“Foi preciso um novo papa para mudar a situação”, disse ele.
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Ênfase do Papa sobre os pobres revive teologia desprezada - Instituto Humanitas Unisinos - IHU