“Se não barrarmos os grandes empreendimentos e as empresas que pretendem cultivar monoculturas e animais confinados na Amazônia, teremos uma nova pandemia muito em breve porque os índices de desmatamento na região são muito maiores do que os da região de Wuhan”, afirma o biólogo
“O compromisso ambiental do governo Lula só vai estar consolidado quando ele enfrentar as grandes obras que só têm trazido problemas para a Amazônia e para o Brasil, aumentando as mazelas sociais, os danos ambientais e sobre as comunidades tradicionais”, diz Lucas Ferrante na entrevista a seguir concedida por telefone ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU. Apesar de reconhecer as políticas adotadas nos primeiros meses do governo, medidas favoreceram a retomada da agenda ambiental no país, depois da conclusão do primeiro semestre, “o governo Lula precisa tomar uma providência, revendo os grandes empreendimentos porque são eles que colocam em xeque a política de desmatamento zero”. Entre estas ações, destaca o entrevistado, torna-se crucial o enfrentamento, “de maneira técnica”, de Belo Monte e da Rodovia BR-319.
“Minha preocupação específica é que se crie um discurso, como o próprio Lula já disse na (…) ONU e em outras reuniões internacionais, de que as mudanças climáticas não podem ser um impedimento para que os países da América do Sul se desenvolvam. Aí precisamos entender o que o Lula quer dizer por desenvolvimento. Desenvolvimento significa construir estradas que causam mazelas sociais, aumentam a disparidade econômica e de saúde pública, como já vimos na Amazônia?”, questiona.
Durante a pandemia de Covid-19, Lucas Ferrante coordenou estudos epidemiológicos e monitorou variantes da SARS-CoV-2. Segundo ele, o monitoramento feito na Amazônia indica que a região tem o potencial de gerar uma pandemia global. “Sabemos que a pandemia de Covid-19 foi gerada em Wuhan, na China, pela degradação ambiental que gerou um salto zoonótico do SARS-CoV-2, causador da Covid-19, dos morcegos para os humanos. Isso de fato pode acontecer na Amazônia, que é o maior reservatório mundial de betacoronavírus e outros patógenos. Nesse contexto, estão querendo criar aves e porcos em confinamento, abrir estradas em pontos extremamente sensíveis, que são estoques de reservatórios de zoonoses. É extremamente preocupante”, adverte.
Lucas Ferrante (Foto: Reprodução)
Lucas Ferrante é graduado Ciências Biológicas pela Universidade Federal de Alfenas – UNIFAL, mestre e doutor em Biologia (Ecologia) pelo Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia – INPA. Realiza pesquisa de pós-doutorado no Laboratório de Evolução e Genética Animal – LEGAL, da Universidade Federal do Amazonas – UFAM.
IHU – Havia uma grande expectativa em relação a mudanças na agenda ambiental brasileira do novo governo Lula. A expectativa está sendo corroborada ou foi frustrada pelas ações e iniciativas do governo? Que balanço faz da política ambiental no primeiro semestre?
Lucas Ferrante – As expectativas em relação ao governo Lula foram positivas e, de fato, foram realizadas boas ações em um primeiro momento, como a reestruturação do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis – Ibama, a retomada da fiscalização e o combate aos focos de desmatamento e garimpo na Amazônia, que eram completamente negligenciados pelo governo Bolsonaro. Esse foi um primeiro passo importante, mas é necessário destacar que não passam só por aí as ações do governo federal. Precisamos lembrar do histórico do governo Lula, que também foi um governo ambientalmente negligente. Um exemplo disso é Belo Monte. Em declarações específicas, recentemente, o presidente defendeu Belo Monte e está colocando a Rodovia [Álvaro Maia] BR-319 como uma prioridade do seu governo.
Existem preocupações ambientais extremamente grandes ainda e, de fato, o compromisso ambiental do governo Lula só vai estar consolidado quando ele enfrentar as grandes obras que só têm trazido problemas para a Amazônia e para o Brasil, aumentando as mazelas sociais, os danos ambientais e sobre as comunidades tradicionais. Já é óbvio que esses grandes empreendimentos não trazem desenvolvimento; trazem dinheiro para grupos específicos, com enriquecimento de empresários pontuais. As comunidades que vivem na Amazônia ficam com o ônus desses empreendimentos, além do dano ambiental irreparável.
É crucial que o governo Lula enfrente alguns grandes empreendimentos na Amazônia de maneira técnica, como, por exemplo, a nova concessão de Belo Monte e também a rodovia BR-319. Já fornecemos dados técnicos sobre essa obra e o Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima – MMA está a par de que se trata de uma obra extremamente inviável, que precisa ser revista e extinta por causa do seu dano e da possibilidade de levar a Amazônia ao seu ponto de não retorno.
Além disso, é preciso adotar uma política de desmatamento zero. São preocupantes algumas declarações do presidente Lula, dizendo que o dano das mudanças climáticas é causado somente pelos países desenvolvidos, e que os países subdesenvolvidos não deveriam participar desse processo [de enfrentamento das mudanças climáticas] porque isso têm impactos econômicos. Na verdade, o dano ambiental está sendo produzido por todos. Os países mais desenvolvidos têm um papel importante nas grandes emissões de carbono porque têm uma economia mais pujante, mas, quando se trata do impacto climático causado pelo desmatamento, o Brasil é o que mais contribui para isso. Nesse sentido, uma política de desmatamento zero é importante e o presidente não pode se esquivar disso. Do contrário, as metas climáticas globais vão estar comprometidas e, inclusive, a manutenção da Amazônia para que não atinja o ponto de não retorno [tipping point].
IHU – Governo está se esquivando de assumir uma meta de desmatamento zero?
Lucas Ferrante – Sim. Algumas declarações de Lula têm induzido que as questões das mudanças climáticas deveriam ser pautadas por outros países. Precisamos de ações mais incisivas. Ainda vemos pontos de desmatamento na Amazônia que são hotspots de desmatamento. A própria rodovia BR-319 é um caso. É preciso deixar claro que só fiscalização não resolve o problema. Não importa qual seja o contingente de fiscalização disponível em uma área como a da BR-319, não será possível cobrir todo o território. Para termos uma noção, a BR-319 tem mais de 900 quilômetros, enquanto os ramais ilegais superam essa quilometragem seis vezes. Então basicamente não existe contingente de fiscalização para cobrir determinadas áreas da Amazônia. Isso é preocupante e indica a necessidade de fechar essas vias.
A política de desmatamento zero precisa ser enfrentada, mas ela entra em embate com o lobby dos grandes empreendimentos, como a construção das estradas. As declarações do governo federal vão no sentido de conciliar essas duas coisas que, tecnicamente, são inconciliáveis. Não são apenas a fiscalização e o fortalecimento dos órgãos ambientais que vão reduzir o desmatamento; é preciso rever grandes obras com potencial de desmatamento. Só assim, vamos, de fato, alcançar o desmatamento zero, mas o novo governo federal sinaliza que não há intenção de barrar esses projetos em um primeiro momento.
Ações mais concretas precisam ser tomadas, mantendo a autonomia do MMA. Vimos que foi um teste a manutenção da ministra Marina Silva depois do posicionamento dela sobre vetar a exploração petrolífera na Foz do Amazonas. Mas existem outras grandes obras na Amazônia com impacto maior, cujo lobby político é muito grande. Sem que o MMA tome ações concretas contra os empreendimentos e sem que o governo Lula banque a permanência da ministra Marina Silva depois da tomada de decisões técnicas, de fato, o Brasil não vai tomar o rumo ambiental desejado e necessário. Muito já foi feito, mas ainda está muito aquém do necessário para ser feito.
IHU – De outro lado, o que o projeto da ferrovia Ferrogrão, que prevê a construção de uma linha férrea que começa em Sinop, no Mato Grosso, e termina no porto de Miritituba, em Itaituba, no Pará, significará para a Amazônia em termos de desmatamento?
Lucas Ferrante – A Ferrogrão tem o mesmo problema da BR-319 e do projeto da rodovia Barão do Rio Branco, porque corta várias unidades de conservação e terras indígenas, o que pode propiciar um aumento de doenças endêmicas, como malária, e saltos zoonóticos. Inclusive, temos amostragens de algumas regiões da Amazônia que indicam que, de fato, uma próxima pandemia pode emergir na Amazônia por conta de saltos zoonóticos propiciados por grandes empreendimentos. Esses empreendimentos contrastam negativamente com a política de proteção da Amazônia e de desmatamento zero. Conciliá-las é algo impossível porque por si só os empreendimentos cortam vastas áreas de florestas, dificultam a fiscalização e tendem a aumentar o desmatamento na Amazônia.
O governo Lula precisa tomar uma providência, revendo os grandes empreendimentos porque são eles que colocam em xeque a política de desmatamento zero. A minha preocupação específica é que se crie um discurso, como o próprio Lula já disse na Organização das Nações Unidas – ONU e em outras reuniões internacionais, de que as mudanças climáticas não podem ser um impedimento para que os países da América do Sul se desenvolvam. Aí precisamos entender o que o Lula quer dizer por desenvolvimento. Desenvolvimento significa construir estradas que causam mazelas sociais, aumentam a disparidade econômica e de saúde pública, como já vimos na Amazônia? Se o presidente não rever isso, inclusive do ponto de vista da viabilidade econômica para as pequenas comunidades, as metas ambientais vão ficar completamente comprometidas.
Além disso, precisamos entender a lógica desses projetos com base no desmonte recente criado pelo Congresso Nacional. Também precisamos lembrar do Marco Temporal. Ou seja, tudo isso vulnerabiliza a fiscalização e o projeto de gestão de áreas protegidas na Amazônia. Precisamos lembrar ainda que deputados da base do PT votaram favoráveis ao Marco Temporal, o que é preocupante. Tudo isso gera uma tensão de instabilidade, maximizando os danos dos grandes projetos de infraestrutura na Amazônia. O atual governo precisa enfrentá-los e vetá-los. Entretanto, o discurso atual não é esse, o que preocupa ainda os ambientalistas e pesquisadores.
IHU – A partir do que você relata, diria que está claro qual é o projeto do governo Lula para a Amazônia? É o mesmo projeto do governo Lula 2?
Lucas Ferrante – Algumas questões ainda não estão claras porque sabemos que a autonomia entre os ministérios gera conflitos. Um desses conflitos, por exemplo, foi entre o MMA e os ministérios que defendem a mineração na Foz do Amazonas. Inclusive, o presidente da Petrobras disse que acredita que o projeto pode ser liberado mais para frente, ainda no governo Lula. Precisamos entender que existe um jogo de interesses e os ministérios, dentro do governo Lula, não são tão alinhados. Isso parte de uma pressão de fora do empresariado, da indústria petrolífera, de políticos ruralistas. A bancada ruralista é fortalecida tanto dentro do Congresso quanto no Senado Nacional para aprovar o desmonte ambiental e dar força para defender os grandes projetos de infraestrutura. É preciso não se curvar a esse lobby.
A Rodovia BR-319 dá acesso à AM-366, uma estrada planejada que liga a rodovia até o município de Tapauá, cortando o rio Purus, ligando-o até Tefé. Essa área está sendo cortada por ramais ilegais exatamente no ponto em que a rodovia deveria existir. Nesse bloco, a Rosneft, empresa russa recordista no derramamento de petróleo no mundo, já tem 14 pontos de exploração. Ou seja, essa é uma área em que existe interesse econômico de exploração de petróleo e um lobby muito grande para a abertura da área da Bacia Sedimentar do Solimões. Tudo isso tem gerado tensão dentro dos ministérios do governo para que de fato alguns desses grandes empreendimentos sejam levados adiante.
Embora o MMA já tenha se posicionado contrário a alguns grandes empreendimentos, como a exploração petrolífera na Foz do Amazonas, ainda existe muita desinformação, dizendo que essa exploração não geraria impactos, mas gera. Tem uma pressão muito grande para a retomada dessa discussão. Este é o grande ponto: o MMA tem autonomia, mas precisa brigar com ministérios que têm outros interesses.
IHU – Você acompanhou as discussões do evento Diálogos Amazônicos, ocorrido em Belém, entre 4 e 6 de agosto, com setores do governo e a sociedade civil, para pensar novas estratégias para a região? Que sugestões de políticas públicas para a região foram apresentadas?
Lucas Ferrante – A discussão que se tem pautado é uma intenção de aliar as comunidades tradicionais, gerando renda através de atividades mais sustentáveis, como uma maneira de conter o desmatamento na Amazônia e gerar desenvolvimento regional. Isso de fato é benéfico. Essa é uma discussão que já vinha sendo feita no início do governo Lula, inclusive com aplicação do Fundo Amazônia; para as comunidades, é fundamental. Entretanto, ainda existem algumas discussões que precisam avançar na pauta da Amazônia, como o enfrentamento aos grandes empreendimentos de infraestrutura.
É um contrassenso estabelecer políticas públicas em conjunto com as comunidades tradicionais e elas estarem extremamente ameaçadas por grandes empreendimentos. Um exemplo é a reserva Capanã Grande, cortada pela BR-319. Às margens da BR existem comunidades indígenas e tradicionais que já perderam módulos de terrenos utilizados para a coleta da castanha e do pau-rosa, para a caça e outras atividades, por conta da grilagem de terra decorrente da manutenção da BR-319. Não adianta investir nessas comunidades, trazer projetos e verbas, se elas estão perdendo território ou estão em conflito direto com grileiros e madeireiros.
A segurança do território é muito importante e isso passa por rever os grandes projetos de infraestrutura. Inclusive porque eles ameaçam todo o cenário de governança que está sendo discutido. Governança é algo necessário; precisamos fazer parte dessa governança junto com as comunidades tradicionais da Amazônia. É através da governança que diminuiremos o desmatamento e daremos dignidade às comunidades, tirando-as da vulnerabilidade. Mas tudo isso é colocado em xeque com grandes empreendimentos que cortam o território ou geram impactos no território. Essas duas coisas precisam ser conciliadas. Não dá para pensar que simplesmente se desenvolverão ações pontuais com uma ou outra comunidade, inclusive com investimentos do Fundo Amazônia, quando existe uma ameaça grande ao território.
IHU – O que seria um projeto sustentável para a Amazônia, considerando o novo regime climático, mas também a importância da floresta e da biodiversidade, que leve em conta o conhecimento científico e o conhecimento dos povos?
Lucas Ferrante – Um dos fatores principais e que perpassa a questão climática é a valoração dos serviços ambientais e regulação do clima da Amazônia. Precisamos criar mecanismos de conservação da floresta remunerando as comunidades que preservam as áreas florestais e que vão poder desenvolver atividades, como sistemas agroflorestais, que é agricultura com floresta em pé. Isso é crucial para o desenvolvimento de alimentos na Amazônia. Um exemplo é o Crédito de Carbono. Entretanto, o que vemos é que empresas completamente exploratórias e parasitárias – esse deveria ser o nome dado a elas – tentam utilizar o crédito de carbono em plantações de soja e milho, como se esses cultivos sequestrassem carbono. O que tem efeito significativo é a conservação da floresta, mas essas monoculturas não deixariam de ser plantadas nessas áreas, portanto, não teriam impacto real na mitigação climática.
O que tem impacto real na mitigação climática é a conservação da floresta. Então primeiro precisamos excluir algumas atividades da valoração dos serviços ambientais como crédito de carbono, principalmente os ligados à plantação de monocultura e hidrelétricas. Embora as hidrelétricas sejam associadas ao discurso de contenção climática, independentemente do crédito de carbono, a obra seria construída e as taxas de emissões serão altas. Esse mercado [de crédito de carbono] deve se concentrar exclusivamente na manutenção da floresta. Várias empresas, de forma predatória, visam esse mercado de serviços ambientais como crédito de carbono. Precisamos entender quem será beneficiado e criar uma regulação adequada; estamos longe disso por causa do lobby ruralista. Definir a prioridade do crédito de carbono e empregá-lo exclusivamente para as comunidades que preservam a floresta é fundamental porque aumentariam os recursos das comunidades, com uma complementação de renda, permitindo que atividades que realmente são sustentáveis, como pesca de manejo e agricultura de sistemas agroflorestais, se mantenham na Amazônia. O maior beneficiário, no fim das contas, é o setor ao qual o lobby está fazendo pressão, que é o setor agrícola.
Fala-se muito em iniciativas de valoração de serviços ecossistêmicos, mas, de fato, isso não está diretamente ligado a benefícios para as comunidades e para a preservação da floresta. O futuro da Amazônia frente às mudanças climáticas globais depende disso, principalmente porque a ocupação do território por essas comunidades diminui o desmatamento. Do meu ponto de vista, com tudo que temos pesquisado e estudado, esse é o caminho para uma Amazônia sustentável.
IHU – Uma das críticas que se faz a essa proposta é o mercado financeiro gerado em torno da preservação ambiental. Quem pagaria pela manutenção da floresta em pé e como reage a essa crítica?
Lucas Ferrante – Primeiro, é preciso entender quem compra o crédito. De fato, as grandes empresas internacionais precisam comprar o crédito, mas elas não deveriam ter o direito de vender o crédito. Estão querendo vender como crédito de carbono plantações de soja e milho, no Mato Grosso, como se essas plantações estivessem estocando carbono. Essa é a contradição. Primeiramente, é preciso criar, com base nas tabelas de emissões dos grandes países emissores, taxas de compensação que possam ser compensadas pela conservação da Amazônia. Mas isso tem que ser aplicado exclusivamente às comunidades tradicionais e para a manutenção da floresta em pé, não ao setor da bancada ruralista que tenta passar a ideia de que determinadas culturas estão compensando as emissões.
O segredo é cobrar dos países e grandes conglomerados de empresas, mas, de fato, não podemos deixar essas atividades participarem desse processo como se fossem mantenedoras das fontes de carbono. Ninguém vai deixar de plantar cana-de-açúcar ou milho, estando ou não vinculado ao crédito de carbono. Basicamente não existe um balanço da diminuição das emissões via plantação de monocultura. O que de fato diminui a emissão é a manutenção da floresta em pé.
Na verdade, temos que pautar que o crédito de carbono esteja associado à proteção e restauração florestal. O resto é balela. O resto de fato é engodo. Qualquer cultivo de monocultura não deixaria de ser produzido, independentemente de ter ou não o benefício do carbono. Trata-se de um crédito vazio porque não tem uma compensação real. Só se compensam emissões quando se impede o desmatamento.
IHU – Você está estudando a relação entre saúde, empreendimentos e depredação ambiental na Amazônia. Quais informações tem a esse respeito? Há riscos de epidemias e surtos de doenças na região?
Lucas Ferrante – Os meus estudos epidemiológicos começaram durante a pandemia, quando vimos comunidades em situações de vulnerabilidade. Fizemos alguns trabalhos importantes para a Amazônia, inclusive, coordenei o primeiro caso de reinfecção de Covid-19 na Amazônia e o alerta da segunda onda de Covid-19. Também identificamos os povos indígenas como um grupo vulnerável à Covid-19, além de outros trabalhos importantes em que medimos o risco de saltos zoonóticos. Mediante a todo o monitoramento da Covid-19 na Amazônia, uma coisa ficou clara: a Amazônia tem o potencial de gerar uma pandemia global, principalmente porque não fomos capazes de dar o alerta do surgimento da variante Gama. Essa variante surgiu em Manaus, pelo aumento da transmissão comunitária, e foi responsável pelo aumento de 2/3 das mortes por Covid-19 no mundo e no Brasil. Entretanto, ela só foi identificada no Japão, quando cruzou as fronteiras brasileiras.
O surgimento de uma pandemia na Amazônia não seria identificado em tempo hábil para realizar uma contenção. Por isso existe a necessidade de impedirmos, de fato, saltos zoonóticos e tentar evitar grandes problemas que possam gerar esses saltos. Um desses problemas está vinculado à empresa Millenium Bioenergy, que se propôs, primeiramente, a plantar cana-de-açúcar na Amazônia, inclusive em terras indígenas. Como eu derrubei judicialmente o decreto do Bolsonaro que permitia a plantação de cana-de-açúcar na Amazônia, a empresa se voltou para a plantação de milho.
A Millenium Bioenergy tem a intenção de plantar monocultura em grande escala dentro de terras indígenas, que são áreas sensíveis, com alta biodiversidade, e, ao mesmo tempo, não quer remunerar os indígenas por isso – as falas dos representantes da empresa estão gravadas e publicadas em um artigo na Regional Environmental Change. A empresa vai fomentar uma ração animal para que os indígenas criem aves e porcos em confinamento, para que a empresa a exporte para a Ásia, União Europeia e EUA. Criar animais confinados dentro de terras indígenas – que são áreas com alta biodiversidade – ou em determinados pontos da Amazônia ligados a desmatamento gerado por monocultura, é a receita de bolo para produzir uma pandemia.
Sabemos que a pandemia de Covid-19 foi gerada em Wuhan, na China pela degradação ambiental que gerou um salto zoonótico do SARS-CoV-2, causador da Covid-19, dos morcegos para os humanos. Isso de fato pode acontecer na Amazônia, que é o maior reservatório mundial de betacoronavírus e outros patógenos. Nesse contexto, estão querendo criar aves e porcos em confinamento, abrir estradas em pontos extremamente sensíveis, que são estoques de reservatórios de zoonoses. É extremamente preocupante. Se não barrarmos os grandes empreendimentos e as empresas que pretendem cultivar monoculturas e animais confinados na Amazônia, teremos uma nova pandemia muito em breve porque os índices de desmatamento na região são muito maiores do que os da região de Wuhan. No Brasil, temos uma biodiversidade zoonótica muito maior.
Empresas estão colocando animais que são reservatórios de patógenos, como aves e porcos, nessas áreas, ao mesmo tempo em que aumenta a pressão ambiental através do desmatamento. É necessária a implementação imediata, por parte do governo Lula, de alguns zoneamentos ecológico-econômicos na Amazônia. Isso vale não só para a fitofisionomia [tipos de vegetação presentes em um determinado bioma] das florestas, mas deve ser estendido também para outras fitofisionomias dentro do bioma, como a savana amazônica, o lavrado, em Roraima, as áreas de campinas e campinaranas, que são áreas de vegetação nativa no Amazonas. Os zoneamentos ecológico-econômicos podem ser eficientes para conter uma nova pandemia. Isso é urgente e deveria ser implementado para o cultivo de milho e cana-de-açúcar, e estendido para a criação de aves, porcos e gado, principalmente na Amazônia Central e no lavrado amazônico.