“A revelação desses cem dias é que (…) é possível que tenhamos uma trégua de normalidade democrática, mas isso não significa progresso em si, ou melhor, releva o fundo falso do discurso progressista, na medida em que dentro dele cabem Alckmin, Dilma, Gilmar Mendes, Renan Calheiros”, afirma o pesquisador
O novo governo Lula “revela que não tem projeto, não tem brilho próprio nem ideias novas. É um misto confuso de tendências”, diz Bruno Cava ao avaliar os primeiros cem dias. Segundo ele, pior do que não ter projeto até o momento “seria se a turma do planejamento-estratégico-e-nacional ala dilmista, que metabolizou muito mal o desastre do governo Dilma, estivesse no comando”. Para ele, “a polimorfia proteiforme de Lula e do lulismo é melhor do que uma hegemonização interna pela esquerda desenvolvimentista do PT”.
Na entrevista a seguir, concedida por e-mail ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU, Cava destaca Fernando Haddad, Marina Silva, Simone Tebet e Mauro Vieira como “sadios contrapontos ao grupo gleisista-dilmista, que não somente ignora a necessidade de autocrítica como também pretende reeditar os erros com ainda mais ardor”. Entretanto, adverte, “além de alguns méritos pontuais, como a Operação Yanomami, o lema governista da reconstrução até agora tem sido reconstruir a governabilidade: pactos com o centrão, o Supremo Tribunal Federal, as forças políticas regionais, as Forças Armadas, os representantes dos mercados e bancos, e até mesmo com alguns bolsonaristas arrependidos. Aos poucos, a velha política pemedebista vai se restabelecendo, ao passo que, eleitas e empossadas, as novas direitas vão sendo reabsorvidas no calendário e funcionamento das instituições, amainando a marcha dos antissistêmicos, que parece ter tropeçado na invasão do Capitólio tupiniquim”.
Bruno Cava em entrevista no IHU (Foto: Cristina Guerini | Acervo IHU)
Bruno Cava é graduado em Engenharia pelo Instituto Tecnológico de Aeronáutica – ITA e em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ, pela qual também é mestre em Filosofia do Direito, e oferece cursos livres presenciais e on-line por meio do canal Horazul (YouTube). É autor de A multidão foi ao deserto (Annablume, 2013), A constituição do comum (Revan, 2017), com Alexandre Mendes, e de A vida da moeda: crédito, imagens, confiança (Maudad, 2020), com Giuseppe Cocco.
IHU – O que significa dizer que “o governo Lula atrasou a catástrofe” no país?
Bruno Cava – Na entrevista que Paulo Arantes concedeu a um podcast da Folha [de S.Paulo], ele diz que a eleição de Lula foi um ganho de tempo em relação à catástrofe. Por catástrofe, ele se refere ao fim da linha da dinâmica de desagregação social provocada pelo capitalismo, ou seja, todas as mediações e instituições se tornam meros instrumentos para o exercício da violência pelo mais forte. É a lei da sobrevivência generalizada como norma, a guerra de todos contra todos, o retorno ao estado natural hobbesiano. Há uma contagem regressiva na direção do colapso que Lula interrompe, ou ao menos retarda. Ao fazer isso, a função de Lula é paradigmaticamente a do katechon no quadro da escatologia paulina, conforme a Epístola aos Tessalonicenses. O katechon atrasa a chegada do anomos, do estado de exceção tornado regra, o anticristo bíblico. Ora identificado ao Sacro Império Romano Germânico, ora à própria autoridade da Igreja Católica, o katechon pertence à economia da salvação, pois retarda o fim dos tempos dilatando o éon histórico em que as forças do bem e do mal se digladiam. Ocorre que, ao diferir o Juízo Final, o katechon também impede a segunda vinda de Cristo ou parúsia, bloqueando as forças da redenção.
O papel de Lula, nesse sentido, assemelha-se ao do Grande Inquisidor de “Os Irmãos Karamázov”. Por um lado, atrasa a vitória definitiva do anomos (bolsonarismo sem lei), por outro lado, desativa as forças de transformação, o rasgo messiânico que permite a existência histórica se deparar com a perspectiva de seu próprio fim. É verdade que não existe na conjuntura perene brasileira um Grande Inquisidor como na historieta dostoievskiana. Caberia perguntar, porém, se a legião de justiceiros de rede social não exerce o papel de “pequenos inquisidores”, ao deslocar os antagonismos às guerras culturais.
IHU – Quais as iniciativas propositivas do governo para evitar a catástrofe?
Bruno Cava – Expandir a moeda por meio do Estado, com um aumento do gasto público, crédito e emprego. É o bordão “tudo pelo emprego, tudo pelo social”, como Arantes comentou na mesma entrevista. O governo reedita a quintessência do petismo governista: peitar a classe improdutiva, rentista, financista, já que vê no mercado a fonte de todos os males e num mistificado Estado a solução. É uma enésima repaginação keynesiana, com um vago sabor de política social orientada aos mais pobres. Salvo engano, Arantes segue autores como Robert Kurz que, desde a última revolução capitalista da informática e microeletrônica (acrescentaríamos: e da inteligência artificial), a economia financeira teria devorado a economia real, de modo que a geração de moeda não produz senão capital fictício, isto é, mais atrasos e retardos em relação ao colapso, definido economicamente pela vitória do trabalho morto sobre o vivo, com a total inviabilização de incorporar as massas depauperadas em um novo projeto de pleno emprego.
É mais uma vez o katechon, mas agora levado ao dinheiro: recuar os ponteiros ao “comprar tempo”, usando, por exemplo, os créditos de carbono. A Amazônia é vista, por Arantes, como fonte de recapitalização nas condições rebaixadas do capitalismo de cassino, e não como manancial de alternativas e lutas. Num ensaio breve em resposta à aludida entrevista, Bárbara Szaniecki foi ao ponto quando escreveu que é preciso comprar tempo, mas sem vender mundos, apontando para a adaptação do design das “smart cities” e do General Intellect (intelectualidade de massa, agora conjugada às tecnologias de inteligência artificial – IA), para uma nova síntese da Amazônia.
IHU – O que os primeiros cem dias do mandato de Lula revelam sobre o projeto do governo para o país?
Bruno Cava – Revela que não tem projeto, não tem brilho próprio nem ideias novas. É um misto confuso de tendências. E é bom que não tenha projeto. Pior seria se a turma do planejamento-estratégico-e-nacional ala dilmista, que metabolizou muito mal o desastre do governo Dilma, estivesse no comando. Em certa medida, a polimorfia proteiforme de Lula e do lulismo é melhor do que uma hegemonização interna pela esquerda desenvolvimentista do PT. Foi essa característica mais aberta, descolada do desenho moderno dos projetos e planos, que permitiu os momentos mais inspirados e as aberturas das brechas durante os governos petistas nos anos 2000.
Dentro do governo, figuras como [Fernando] Haddad, Marina [Silva], [Simone] Tebet e Mauro Vieira são sadios contrapontos ao grupo gleisista-dilmista, que não somente ignora a necessidade de autocrítica como também pretende reeditar os erros com ainda mais ardor. Além de alguns méritos pontuais, como a Operação Yanomami, o lema governista da reconstrução até agora tem sido reconstruir a governabilidade: pactos com o centrão, o Supremo Tribunal Federal, as forças políticas regionais, as Forças Armadas, os representantes dos mercados e bancos, e até mesmo com alguns bolsonaristas arrependidos.
Aos poucos, a velha política pemedebista vai se restabelecendo, ao passo que, eleitas e empossadas, as novas direitas vão sendo reabsorvidas no calendário e funcionamento das instituições, amainando a marcha dos antissistêmicos, que parece ter tropeçado na invasão do Capitólio tupiniquim. A revelação desses cem dias é que, sim, é possível que tenhamos uma trégua de normalidade democrática, mas isso não significa progresso em si, ou melhor, releva o fundo falso do discurso progressista, na medida em que dentro dele cabem Alckmin, Dilma, Gilmar Mendes, Renan Calheiros...
IHU – Na política, a presença do katechon é inevitável? Como a ideia de construir um mundo a partir da política joga com essa espécie de dialética entre um Cristo e um Anticristo, o mal e sua história e o fim dos tempos?
Bruno Cava – Em um opúsculo que Giorgio Agamben escreveu sobre a abdicação de Bento XVI, com o título “O mistério do mal e o fim dos tempos”, lemos: “Os poderes e as instituições não estão deslegitimados hoje porque caíram na ilegalidade; antes, o oposto é verdadeiro, ou seja, que a ilegalidade é assim difundida e generalizada porque os poderes constituídos perderam toda a consciência de sua legitimidade”. Como se sabe, Agamben recria o conceito de katechon para explicar o papel dúplice da Igreja Católica, entendida ao modo paulino, como corpo de Cristo, com uma função histórica (afinal de contas, o mal está na história), e, ao mesmo tempo, sobre o plano escatológico, em relação com o fim dos tempos (seu papel messiânico).
Nesse livreto, Agamben resgata um teólogo obscuro do século IV chamado Ticônio, que, no seu “Liber regularum”, explica que a Igreja, enquanto retardadora da parúsia, a segunda volta de Cristo, tem duas faces. O que interessa aqui é o aspecto filosófico e suas ressonâncias políticas, e não religioso. Segundo Ticônio, numa distinção, que depois reaparecerá em Agostinho, a Igreja tem um lado destro e um canhoto, um bendito e um pecaminoso, mas que constituem o mesmo corpo uno e inseparável. Isto é, Cristo e Anticristo (anomos) convivem indissoluvelmente dentro da Igreja, como uma área de intersecção entre mistério do mal, história e fim dos tempos. A aceitação da copresença do Anticristo tem um vínculo interno com a legitimidade da atuação eclesiástica no presente. O que está acontecendo no presente? Para Agamben, o eclipse da política na forma da economia totalizada, ou melhor, a “economização” de toda a política (o neoliberalismo), dissolveu o componente messiânico, impedindo que as instituições católicas possam atuar no plano escatológico. Agamben aqui segue um teólogo alemão, Ernst Troeltsch (citado em “O reino e a glória”), quando reflete que a Igreja estava “fechando seu escritório escatológico”. Tendencialmente, com o afastamento do Eschaton, a Igreja corrompe-se, inclina-se à politicagem e à simonia, e sua legitimidade colapsa com a legalidade das forças de mercado. O liame proativo (jamais fatalista) com o fim dos tempos é o que reinjeta vida sobre a consciência histórica da Igreja, e é a ele que Ratzinger apela em seu gesto que, para Agamben, é corajoso e exemplar. Pelo menos em seus textos justificativos, Bento XVI renuncia, portanto, no quadro teológico, mas também político, de ameaça de dissolução do papel da Igreja, de sua imersão no plano histórico da economia política.
Toda essa reflexão lateral pinçada de Agamben, penso eu, pode ser transposta para compreender o papel que Lula e o lulismo exercem na cosmovisão política brasileira, ao menos à esquerda. O leitor poderia então retrucar: a saída é a renúncia de Lula, seu afastamento da vida pública nacional? Certo que não. O gesto de Bento XVI é dirigido a nós mesmos e não ao “papa do progressismo latino-americano”. Caberia a nós renunciar à necessidade de recorrer a um katechon para que o anomos não precipite o colapso, isto é, renunciarmos a Lula como salvador. Ocorre que essa renúncia é menos uma questão de escolha do que um problema de construção de alternativa, inclusive contra a inviabilização da alternativa pelas forças estabelecidas da velha política, pelo Pensamento Anti-Junho e pela redução do político à polícia.
IHU – Se em outros tempos foi possível “comprar o tempo” para amainar os conflitos urbanos, que saídas teríamos num cenário muito mais inóspito e em meio a crises que dificultam uma possível nova “compra de tempo”, como temos vivido atualmente?
Bruno Cava – O tempo messiânico não é um tempo depois do fim, mas uma qualificação do tempo do agora, o jetztzeit ou now-here. Então seria preciso sair da concepção do dinheiro como medida do tempo homogêneo e vazio, do tempo morto capitalista. A moeda tem uma vida que não é redutível aos jogos de valorização da economia real ou do capitalismo de cassino da economia financeira. Como escreveu Giuseppe Cocco à revista Multitudes n. 90, há um espaço de manobras para o terceiro mandato de Lula no intervalo entre a retomada da Renda Básica da Cidadania – RBC e um novo modelo de governança dos commons dado pela Amazônia, um “regime amazônico”. O primeiro ponto pode ser aprofundado a partir do inchaço dos programas de transferência de renda que ocorreram diante da pandemia e do ano eleitoral de 2022, quando houve uma espécie de afrouxamento monetário para o povo. O segundo ponto, o regime amazônico, depende da ocupação de um terreno entre governo e iniciativa socioambiental, para formular alternativas ao padrão de desenvolvimento “tudo pelo emprego”, ao modo dilmista. As remobilizações de lutas e da democracia renascem e se desenvolvem a partir desse terreno da nova moeda (em linhas bem gerais: RBC + Amazônia), arrancando a indignação do polo direito das polarizações político-partidárias.
IHU – Num cenário em que não seria possível arrefecer novamente as crises urbanas com a “compra do tempo”, poderia, finalmente, haver condições de propor uma evolução dos “sujeitos monetários” a “sujeitos repolitizados”? Por quê? Se sim, como fazer?
Bruno Cava – No discurso de posse, Lula anunciou a volta da Política. Aqui, ele está repercutindo a antipatia e a franca oposição de parte de seus aliados, de muitos partidos, ao “Longo Junho”, que é identificado com o momento antipolítico das primaveras globais. O retorno do político também é usado por parte das esquerdas que abusam da gramática do neoliberalismo para opor a politização ao predomínio dos mercados, ao totalitarismo do fato econômico. Entretanto, na prática a volta da Política não passa de cobertura para a recomposição da velha política, dos caciques e lideranças a que já estamos acostumados, ligeiramente repaginados e, em alguns casos, até mesmo piorados.
Outra concepção de política pode ser encontrada na filosofia de 1968, que identifica economia política a economia desejante. Política não é cisão amigo/inimigo, como em Carl Schmitt e nos teóricos neopopulistas (Chantal Mouffe, Ernesto Laclau e outros), mas a ligação do desejo e do social. Desejante, logo político, ou seja, o campo social é diretamente investido por dinâmicas transformadoras e subjetivadoras. O primeiro a escrever explicitamente sobre isso foi Pierre Klossowski, em “La monnaie vivante” (1970), livro que serviu de abre-alas para um maquinário de conceitos e problematizações. Políticas de renda não constituem sujeitos monetários despolitizados, ao invés disso, permitem uma repolitização através da democratização da moeda, como ocorreu no Brasil dos anos 2000: a expansão do salário e dos programas de renda favoreceu não a pacificação do tecido social ou sua subjugação a dispositivos biopolíticos.
Na realidade, o que houve foi um efeito multiplicador das lutas e uma tendência de autonomização em relação aos próprios programas e ao salário enquanto pacto de trabalho, na direção do lulismo selvagem, de tumultos com novas ferramentas (o pobre com cartão de crédito, internet e telefone celular). Em vez do lado brilhante das novas classes médias e criativas, o saldo foi Junho de 2013, o lado antagonista da classe sem nome. Essa experimentação pode ser aprofundada e retomada, ampliando e aprofundando a disseminação da renda com a proa à Renda Básica da Cidadania.
IHU – Lula, Bolsonaro, Lula. Vivemos ainda presos a ciclos de messianismos na política? O que a saída de um e a entrada de outro no cenário político nacional revelam sobre seus tempos? A partir disso, o que há por vir?
Bruno Cava – Retomando o esquema paulino relido por G. Agamben, Lula e Bolsonaro não ocupam a função messiânica, que consistiria em deslocar a primazia do tempo cronológico (de valorização do capital, redução dos seres humanos a órgãos da produção) para a do tempo kairológico (ruptura do produtivismo), quando “as pessoas são finalmente forçadas a encarar com serenidade sua posição e suas relações entre si”. Se, dentro da esquematização que desenvolvemos nas perguntas anteriores, Lula exerce a função de katechon e Bolsonaro de anomos, o messias é Ninguém, o anônimo, o precarizado e midiatizado. É como o movimento do franciscanismo, que propõe regenerar o cristianismo a partir de baixo, sem com isso abandonar o âmbito da construção de instituições, digamos, sem cair em um milenarismo anárquico ou iconoclasta.
Durante o ciclo das ocupas de 2011-2012, que prefigurou outros mundos quando nenhum parecia mais possível, o Ninguém caminhava por aí, pelas redes on-line e praças offline, falando com qualquer um, desejando, politizando. Depois, em Junho de 2013, confluência de tumultos e processos de precarização/autonomização, o Ninguém vestiu máscara, correu pela metrópole, destituiu esquemas e consensos. O drama foi que, no Brasil polarizado de 2014 em diante, o antagonismo foi deslocado para uma briga de torcidas, amarelos x vermelhos, ou então por narrativas estanques que cobravam menos pensamento crítico do que adesão e obediência. Mesmo assim, ainda havia focos de antagonismo pulsando e continuações do movimento por outros meios, como se viu nas ocupas das escolas, na onda laranja dos garis do Rio de Janeiro ou na gigantesca greve geral dos caminhoneiros de 2018, apenas para citar os exemplos à mão. Todos esses foram tempos úmidos, que preencheram as conjunturas de desvios qualitativos.
Com a eleição de Bolsonaro e, dois anos depois, a devastação da pandemia de covid-19, em um cenário global de acirramento de disputas de hegemonia, mudança climática e guerra, as derivações de Junho foram asfixiadas ou, ao menos, abafadas até o quase desaparecimento. Nossa situação é parecida com a do final da “Genealogia da moral”. Com o esvaziamento do sentido dos ideais da modernidade, inclusive do horizonte emancipatório da Revolução Francesa, Nietzsche se pergunta: então acabou? Ele finaliza dizendo que não: ainda assim, o ser humano vai preferir querer o nada a nada querer. Quando todos os valores estão desertificados, corremos o risco de afundar na guerra de todos contra todos, legalidade tanto mais excessiva quando mais despojada de legitimidade, a política converge na polícia e o tempo, na emergência perpétua; ainda assim, algo está acontecendo, o desejo, e um pouco de pensamento.