Em entrevista conjunta, professores detalham por que a nova regra fiscal do atual governo supera em muito as regras do teto de gastos e do superávit primário
“O novo arcabouço fiscal é melhor do que os anteriores. Tem problemas também, não é maravilhoso, é um pouco restritivo e não permite grandes ampliações de despesa”. É assim que o economista e professor Róber Iturriet Avila define a nova regra fiscal apresentada pelo ministro da Fazenda Fernando Haddad. Tanto Róber quanto seu colega, o também professor e economista Maurício Weiss, reconhecem os limites da proposta, mas destacam que é muito melhor tanto quanto o famigerado teto de gastos, que estrangulou orçamentos como da Saúde e da Educação, como o superávit primário, que não teve capacidade contracíclica de reativar uma economia em queda.
Na entrevista concedida via WhatsApp, Róber diz que o novo arcabouço “corrige uma série de problemas, como esse de o gasto público ir no sentido do ciclo econômico. Ele vai continuar sendo assim, mas menos, principalmente quando estiver ou numa fase muito descendente ou numa fase muito ascendente. Nesses casos, a regra vai fazer o balanço contrário, que é desejável”. Mas, para ele, o mais interessante é que favorece muito o investimento. “Esse novo regramento favorece o gasto em investimento, estabelece um piso em investimento, o que é bom. O investimento público vem caindo muito nos últimos anos. Em termos percentuais, estamos no nível mais baixo desde a série histórica, iniciada em 1947”, observa.
Weiss não vê a proposta como pós-keynesiana exatamente, o que para ele seria ideal. Mas reconhece que há pontos que colocam o novo arcabouço bem perto das ideias de Keynes. Sobre as críticas de que o pacote cristaliza um "flerte" do governo com o mercado, responde: “Há esse flerte com o mercado. Não necessariamente isso é 100% ruim, até porque na economia é difícil ignorar completamente a dinâmica do mercado. Mas, mais do que o mercado, é preciso ter atenção com o próprio Banco Central”.
Assim, Weiss considera problemática essa taxa de juros estratosférica que vem embrulhada com uma chantagem fiscal feita pelo presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto. “Nossa taxa de juros está muito elevada e, além das taxas estarem elevadas, também é um grande impactante na própria dinâmica da dívida. Essa taxa de juros é até é mais importante com relação à dívida do que a política fiscal”, pontua. E dispara: “mas, a taxa de juro não se muda por ato de governo devido à aprovação da autonomia do Banco Central. E o presidente do Banco Central (...) está fazendo uma chantagem fiscal. E está conseguindo”.
Róber Iturriet Avila (Foto: Arquivo IHU)
Róber Iturriet Avila é doutor em Economia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS e professor do Programa de Pós-Graduação Profissional em Economia na UFRGS. Foi professor da Universidade do Vale do Rio dos Sinos – Unisinos, pesquisador da Fundação de Economia e Estatística – FEE e diretor sindical do Sindicato dos Empregados em Empresas de Assessoramento, Perícias, Informações e Pesquisas e de Fundações Estaduais do Rio Grande do Sul – Semapi.
Maurício Weiss (Foto: Arquivo Pessoal)
Maurício Weiss possui graduação em Ciências Econômicas pela Universidade Federal do Paraná – UFPR, mestrado em Economia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS e doutorado em Teoria Econômica pela Universidade de Campinas – Unicamp. Atua como professor adjunto do Departamento de Economia e Relações Internacionais da UFRGS. Coordena a Comissão de Graduação de Economia – COMGRAD/ECO, do Núcleo de Análise de Política Econômica – NAPE, é vice-presidente do Fórum das Comissões de Graduação da UFRGS/FORGRAD e professor Permanente do Programa Mestrado Profissional em Economia – PEPECO.
IHU – No que o arcabouço fiscal, proposto pelo governo Lula, se mostra superior ao teto de gastos, gestado e implementado em gestões anteriores?
Róber Iturriet Avila – O teto de gastos tinha uma previsão de manutenção da despesa em termos reais. Porém, com o aumento da população, que acontece anualmente, na verdade, acabou tendo uma redução em termos per capita do gasto do governo federal. Já o novo arcabouço permite que haja uma variação positiva da despesa real todo ano, ou seja, um aumento para, pelo menos, recompor o crescimento populacional. Em termos per capita, o gasto do indivíduo se manteria, ao contrário do teto de gastos, que, na verdade, levava a uma queda.
Outra questão é que essa política permite o aumento de investimento além do que está previsto se houver um bom desempenho das receitas, através de um crescimento econômico. Mas ele também tem uma trava. No teto de gastos, haveria mais dificuldades de fazer gastos num momento, por exemplo, em que a economia estivesse em crise. Foi o que aconteceu no período da pandemia, em que foi preciso aprovar novas emendas constitucionais. Isso não é adequado. Enfim, o teto de gastos é muito pior que esse novo arcabouço fiscal.
IHU – Na manifestação pública no encontro que marcou os 100 dias de governo, Lula disse que a proposta do novo marco fiscal "coloca o pobre no orçamento". Objetivamente na proposta, onde podemos constatar isso?
Róber Iturriet Avila – Eu diria que não é possível afirmar categoricamente. O que houve foi a abertura de uma possibilidade de ampliação da despesa todo ano. Isso permite aumentar o salário-mínimo e que sejam desenvolvidas políticas sociais, mas não necessariamente isso vai acontecer.
Em comparação com as outras regras, especialmente com o teto de gastos, era mais difícil fazer esse aumento de despesa. E um aumento de despesa não necessariamente é colocar o pobre no orçamento, pode haver um aumento de despesas para outras fatias da sociedade.
IHU – Em toda a proposta, quais os três pontos mais relevantes e por quê?
Róber Iturriet Avila – O primeiro ponto é essa possibilidade de aumento de despesa. Em segundo, permite políticas anticíclicas, ou pelo menos um pouco, na medida em que não deixa a despesa cair no momento de crise e, também, não deixa a despesa subir num momento de boom econômico. Ela é uma proposta um pouco restritiva também. Ela restringe as contas públicas, permite com que haja um superávit crescente.
IHU – Alguns especialistas apontam que nos “tempos de bonança” aumentou muito o gasto público. Embora necessário, esse custo se tornou pesado. Na nova proposta, há algum tipo de mecanismo para que isso não se repita? Quais e como funcionaria?
Róber Iturriet Avila – No período entre 2004 e 2013, houve um crescimento da atividade econômica de forma excepcional. Cresceu mais do que aconteceu nos anos seguintes e que nos anos anteriores. E isso fez com que houvesse uma ampliação muito grande de receita. Só que, na época, a regra era a do superávit primário. Como aumentou a receita, permitiu-se também aumentar a despesa. E a despesa com salário de servidores foi ampliada, houve uma ampliação da burocracia, a contratação de servidores, políticas públicas que foram feitas em áreas diversas, como educação, saúde, moradia, a ampliação do Bolsa Família, etc. Só que algumas dessas despesas, especialmente as chamadas despesas de custeio, não podem ser reduzidas. Por exemplo, é preciso manter a estrutura e o pagamento dos salários, por exemplo.
Na fase seguinte, houve uma recessão e aí as despesas estavam constantes. Isso fez com que o déficit se aprofundasse no período de 2015/2016 em diante. Depois, tivemos oito anos consecutivos de déficit primário. Na nova proposta, quando tiver um crescimento econômico muito grande, a despesa primária pode crescer no máximo 2,5%.
Tem muita gente criticando, mas eu acho bom, acho positivo porque segura um pouco. Quando se está num período de crescimento como esse que citei, parecia que aquilo continuaria, que o crescimento seria constante e que o Brasil estava numa nova onda, a do Brasil potência. Só que não foi o que aconteceu. Logo depois, veio uma crise e vieram outros problemas usuais típicos da economia brasileira. Houve uma certa ilusão de que o país tinha mudado de patamar em termos de crescimento e dinâmica econômica, mas não foi o que aconteceu.
A nova proposta dá uma segurada nessa fase, e isso ajuda para que não haja um crescimento excessivo. Crescimento econômico excessivo é sempre visto como positivo, mas ele também traz problemas, principalmente inflação, mas outros, como a falta de mão de obra e elevação excessiva da demanda. E aí, nesse caso, a política econômica vai ajudar a segurar esse crescimento econômico.
IHU – Por que esse controle de gastos, mesmo com aumento de arrecadação, é importante? Como conduzir esse controle sem sacrificar o custeio de políticas públicas de assistência e as receitas de setores como Saúde e Educação?
Mauricio Weiss – Esse controle de gastos é importante para uma sinalização ao mercado. E, ainda, para possibilitar a redução da taxa de juros, especialmente para emitir um sinal para o presidente do Banco Central. No mercado, em parte, contribui para a melhoria dos ânimos um otimismo com relação à questão fiscal. O que, em parte, se pode perceber agora, pela melhoria na busca por títulos pré-fixados e pela queda do câmbio, que acaba ajudando também.
E não só o teto, mas o piso e o teto são importantes. Assim se consegue evitar que, em momento de crise econômica, os gastos caiam e, num momento de subida econômica, os gastos correntes não subam muito, pois, se depois a economia cair muito, haverá gastos correntes muito altos. Eu, particularmente, seria mais flexível quanto ao teto. Meu teto seria superior a 2,5%, mas a lógica que está por trás é essa, quando a economia vier a cair esses gastos correntes ficam permanentes, o que geraria uma tendência de déficit no momento subsequente. Normalmente, esse ajuste era feito via queda no investimento. Investimento é a principal variável dinâmica para dinamizar a economia.
IHU – Qual sua análise sobre a forma como o novo arcabouço trata a receita? Seguindo essa proposta, é realmente possível aumentar a receita sem aumentar alíquotas e criar mais impostos?
Róber Iturriet Avila – Acontece que esse regime fiscal coloca uma necessidade muito grande de ampliação de receita, porque a despesa só pode aumentar se aumentar a receita (a não ser aquele mínimo que foi estabelecido lá). Então, precisa aumentar a receita para o governo fazer as políticas desejáveis e existem muitas formas de aumentar receita.
A mais fácil é através de crescimento econômico. Outra forma é aumentando tributos. Com novas alíquotas e novos impostos também é possível aumentar a receita. Mas não seria esse o desejo do governo. O que pode acontecer é, eventualmente, uma busca por setores que não pagam muitos tributos, numa reforma tributária, como é o caso do setor agropecuário que é relativamente pouco taxado. Mesmo o setor de serviços é pouco taxado se comparado a um setor como a indústria. Assim, o rearranjo da estrutura tributária poderia aumentar a receita, além de combater a sonegação, como sempre deve ser feito.
Outra forma é revisando renúncias de receitas. O que aconteceu, que é histórico, mas se dá muito no governo Dilma, é que quando a economia estava em relativa desaceleração, aproveitando uma experiência do governo Lula de 2008, quando houve uma redução de impostos, o IPI sobre eletrodomésticos, automóveis, para tentar ativar a economia – isso foi feito de forma mais intensa no primeiro governo Dilma, até com redução de folha de pagamento para alguma empresas, também sobre cesta básica, sobre energia e uma série de outras renúncias fiscais – a arrecadação acabou caindo muito. E essa queda de arrecadação acabou sendo significativa para as contas públicas.
Posteriormente, foram feitos alguns estudos com relação a essas reduções de receitas e com o desempenho econômico, em termos de dinâmica econômica, de emprego, de ampliação de produção e mesmo de tributos. E os resultados apontaram que, salvo um ou outro setor, não valeu a pena. O custo em termos de perda fiscal foi maior. Esse é um debate internacional, uma discussão que tem crescido no mundo e no Brasil também: fazer política para reduzir impostos atrai empresas, mas não vale a pena, geralmente não se paga.
Então, é preciso rever muitas dessas renúncias. Porém, algumas delas, como foi a redução sobre cesta básica, será que devemos realmente reonerar esses setores? É preciso ter cuidado. Há também uma renúncia de receita muito grande que é o Simples Nacional, que foi estabelecido por volta de 2008. O Simples Nacional é uma redução de tributos para pequenas empresas. Claro que não podemos comparar pequenas empresas com as grandes, mas temos que ter cuidado. O que o novo regime faz é tentar incentivar que haja um aumento de receitas. Nesse sentido, a redução de renúncias é um caminho.
IHU – Em que medida o novo arcabouço fiscal ressignifica a ideia de gasto público segundo a Teoria Monetária Moderna?
Mauricio Weiss – Não é uma ressignificação em termos de ideias de gasto público. Na verdade, o novo arcabouço não se livra da Teoria Monetária Moderna, por exemplo. A Teoria Monetária Moderna fala que não existe um limite fiscal, financeiro para os gastos do Estado, a não ser os limites autoimpostos por regras fiscais. E por questões de Constituição, que não permitem que o Banco Central financie os títulos do Tesouro e nem que o Tesouro emita moeda. Como o Estado, ao gastar, cria moeda, o gasto prescinde a arrecadação do tributo. Então, na perspectiva da Teoria Monetária Moderna quem necessita de moeda é o setor privado para pagamento de tributos e não o Estado para a realização de gastos.
Nesse sentido, a teoria está correta, é uma questão concreta, mas existem outros pontos que são mais complexos. Para a teoria, o central não é o Estado, pois ele não tem limite para gastos. O principal ponto é que os gastos estão limitados à capacidade produtiva do país. Caso os gastos aumentem quando a economia já está no pleno emprego, a pressão será inflacionária. Mas a teoria também aponta limites externos. Por exemplo, se o país não tem uma estrutura produtiva adequada, pode levar a um aumento do endividamento externo, fuga de capitais, etc. A questão é mais de ênfase em relação à perspectiva pós-keynesiana.
A principal divergência em termos da perspectiva pós-keynesiana em relação à Teoria Monetária Moderna é que Keynes vai dizer que o Estado não tem qualquer limite para gastar. Não porque venha a falir, ou que não tenha condições de quitar a dívida, mas porque grande parte da riqueza da economia é privada e a demanda por moeda não é somente demanda por moeda estatal, mas também é por demanda da moeda privada, que não é exatamente moeda manual, mas é depósito à vista, que é dinheiro privado. Só que isso está atrelado, em última instância, à moeda pública.
Os agentes demandam moeda não só para pagamentos de tributos, mas para todas as necessidades de bens e serviço, também para reserva de valor. E se há uma desconfiança mais generalizada do Estado, mesmo que haja divergências na perspectiva econômica e vários agentes entendam que isso é um problema, eles podem preferir manter essa riqueza financiada e dominada em outras moedas. Quando se tem espaço para uma abertura financeira, esse é sempre o problema maior. No entendimento da Teoria Monetária Moderna, embora nunca ignore, dá pouca ênfase à questão das expectativas. É uma questão que Keynes traz muito.
IHU – O que seria um bom regime fiscal keynesiano? O quanto a proposta do arcabouço fiscal se aproxima ou não desse modelo?
Mauricio Weiss – Um bom regime pós-keynesiano é aquele que reduz a incerteza dos agentes privados, pois a dinâmica econômica é muito sujeita a mudança das expectativas e incertezas, que leva à redução dos gastos privados. Assim, a dinâmica do Estado deve ser no sentido de reduzir as incertezas dos agentes privados e não potencializar. Um regime que tenha regras facilita a condução das expectativas por parte do setor privado.
Isso é um ponto da importância de um regime fiscal para Keynes. Ao mesmo tempo, um regime fiscal precisa ser contracíclico, no sentido de que, quando a economia está crescendo, o Estado pode reduzir seu nível de gastos e, quando a economia está caindo, o Estado deve ampliar seus gastos.
Especificamente, Keynes trabalha com uma dupla divisão de orçamento. Os gastos correntes, que ele chama de gastos ordinários, devem ser permanentemente pouco superavitários, preferencialmente superavitários ou pelo menos não deficitários. Já a conta de capital, que estaria relacionada com a conta de investimentos, poderia ser deficitária porque, uma vez que o investimento é realizado pelo setor público, ele amplia a capacidade produtiva da economia e, com isso, aumenta o potencial de arrecadação futura. Esse aumento dos gastos é compensado por aumentos de renda e de tributação futura.
Por isso, esse investimento pode ser deficitário e a parcela do investimento precisa ser especificamente contracíclica. Os gastos correntes não podem ficar variando muito. Eles devem permanecer com o tamanho do Estado desejado pela sociedade, ter uma arrecadação compatível e os investimentos variarem de acordo com a necessidade da dinâmica econômica.
Esse nosso regime se assemelha com a perspectiva de Keynes no sentido geral que pressiona mais estabilidade do setor privado. Também atende aos aspectos de Keynes no sentido de que almeja superávits ou neutralidade dos gastos correntes e permite um crescimento maior do investimento, que essa dinâmica seja privilegiada para dinamizar a economia. Nesses aspectos, ele atende à perspectiva keynesiana.
IHU – No que o novo arcabouço fiscal não atende à perspectiva keynesiana?
Mauricio Weiss – A dinâmica de investimento atende parcialmente à questão pós-keynesiana no sentido de ser contracíclica. O Estado garante que haja uma ampliação do investimento, ao menos não deixando que ele caia em termos reais quando a economia começa a cair. Nos regimes anteriores, quando a economia caia, os gastos com investimentos também caíam – isso ainda antes do teto de gastos, na época do superávit primário. Agora, na proposta do novo arcabouço, observamos que, pelo menos, seja garantido um nível de 75 bilhões, em termos reais, para o investimento público.
Só que ele não é suficientemente contracíclico, ou seja, quando a economia cai o nível de investimentos não sobe, porque a arrecadação vai cair e não se consegue ampliar o investimento. Só que ele não cai, é mais ou menos pós-keynesiano. É pós-keynesiano no sentido que não cai, mas não é pós-keynesiano no sentido que não consegue aumentar num momento de retração da atividade econômica. Já os gastos correntes garantem um aumento de 0,6 reais, é relativamente contracíclico, mas muito pouco. Ou seja, não têm mecanismos suficientes para reverter um cenário de queda da dinâmica econômica e, nesse sentido, não é pós-keynesiano.
Keynes também fala que é importante que o Estado consiga mudar a estrutura produtiva. E o volume desses 75 bilhões em termos reais, que é garantido, não é suficiente para dinamizar produtivamente a economia, embora ajude. Agora, tem esse caso de escape caso a arrecadação supere essa meta superávit se amplie mais investimento, isso sim seria positivo. Só que parece que agora estão querendo um novo regime que limite esse aumento do investimento só até 100 bilhões, e o resto fica para pagamento da dívida. Nesse sentido, acho que é negativo e limita esse objetivo de atender uma política fiscal pós-keynesiana.
IHU – Com base em nossas experiências recentes, o que podemos aprender em termos de más regras fiscais?
Róber Iturriet Avila – A regra do teto trouxe uma série de problemas e nos deixou de calças curtas no momento da pandemia. Foi necessário haver uma série de revisões fiscais, inclusive alteração de leis constitucionais, o que mostrava que era uma regra pouco factível, e mesmo posteriormente houve uma série de PECs, a PEC de Guerra, PEC Kamikaze, PEC de Calamidade Pública, PEC dos Precatórios. Ou seja, não foi eficiente no sentido de tentar arranjar formas de permitir que houvesse aumento de despesas.
Isso significava, então, que a regra do teto era ruim. Não era factível porque tinha despesas crescentes. Mesmo com a reforma da previdência, as despesas da previdência cresceram, como todas são constantes outras tiveram que cair. E cortaram onde? Em Saúde, em Educação, que é onde o Estado mais gasta.
Além disso, o superávit primário favorecia tanto que num momento de bonança o gasto público fosse aumentado. E no momento de recessão havia uma necessidade de cortar, no sentido de ter o superávit. Só que isso é ruim, em termos macroeconômicos o ideal é que, quando a economia está crescendo muito, o Estado puxe o freio. Quando a economia está desacelerando, o Estado gaste, faça sempre a medida ao contrário do movimento do ciclo econômico.
A economia cresce e desacelera, isso é normal. A regra do superávit primário é uma regra que acelera o crescimento no momento do crescimento, o que é ruim, e aprofunda a crise no momento da crise, o que também é ruim. É uma regra que eu não gosto justamente por esse motivo; o ideal é que o Estado vá no sentido contrário do ciclo econômico.
IHU – Entre as críticas à proposta de Fernando Haddad, existe a de que ela se apresente como "um flerte" com o mercado. Concorda com essa crítica? Em que medida uma aproximação com o mercado pode representar um risco ao financiamento das políticas públicas de assistência social?
Mauricio Weiss – Há esse flerte com o mercado. Não necessariamente isso é 100% ruim, até porque na economia é difícil ignorar completamente a dinâmica do mercado. Mas, mais do que o mercado, é preciso ter atenção com o próprio Banco Central. O Banco Central, que agora tem autonomia, já deixou claro que defende o limite dos gastos públicos, inclusive o endividamento. Segundo seu presidente, isto é uma pré-condição para mexer na taxa de juros.
Nossa taxa de juros está muito elevada e, além das taxas estarem elevadas, isso é um problema para a economia. Também é um grande impactante na própria dinâmica da dívida. Essa taxa de juros é até mais importante com relação à dívida do que a política fiscal. Mas a taxa de juro não se muda por ato de governo devido à aprovação da autonomia do Banco Central, que, além de ser autônomo, o presidente do Banco Central fica dois anos no próximo governo – e isso é péssimo para a dinâmica econômica e até antidemocrático, na minha opinião. Pois muda-se um presidente para mudar a economia como um todo, mas a parte da política monetária fica com as lógicas do presidente anterior.
No fim, isso é que limita muito o crescimento e ele, o presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto, está fazendo uma chantagem fiscal. E está conseguindo.
IHU – Quais as fragilidades do projeto do novo arcabouço fiscal? Onde deveria ter avançado e não avançou?
Mauricio Weiss – Como fragilidades do projeto, eu apontaria aqueles limites que mencionei e expliquei por que motivo não seria uma política fiscal pós-keynesiana, que, na minha perspectiva, um bom regime fiscal seria um regime que seguisse a perspectiva pós-keynesiana. Tem como limite, então, não ser suficientemente contracíclico, não permitir dinamizar a economia nesse momento em que ela precisa ser mais dinamizada.
Poderia haver uma flexibilização do teto e da ampliação do aumento dos gastos. Por exemplo, começar com 100% do aumento dos impostos e iria reduzindo 10 pontos percentuais até chegar em 70%. E, também, começar limitando o aumento da despesa, por exemplo, em 3,5% e ir reduzindo 0,5 até chegar em 2,5%. Ou seja, poderia haver flexibilidades maiores para permitir uma recuperação maior na economia, já que ela está muito desaquecida.
E, também, como mencionei quando falávamos de Keynes, nesse novo ajuste a maior parte da arrecadação, aparentemente 75% do ganho da arrecadação acima do superávit primário, poderia aumentar o investimento. Mas, ao que tudo indica, agora vai ser utilizado para pagar a dívida.
IHU – Da forma como está posta, o senhor imagina que a nova proposta será aprovada no parlamento? Até onde é saudável ir nas concessões da proposta para garantir a aprovação da matéria?
Mauricio Weiss – Acho que ela tem chances de passar. Só que, se precisar fazer mais concessões, haverá pioras significativas para o plano. Essa já é uma proposta bem pró-garantia da intervenção dos gastos, de queda da dinâmica da dívida de médio prazo. Por isso, não vejo muito espaço para conceder mais ao campo mais à direita. Já estão sendo feitas bastantes concessões, e acredito, que com essa maioria que o governo tem no Congresso, ele consiga aprovar. Até porque não precisa de dois terços, como Emenda de Constituição. É apenas como regime de lei.
IHU – O governo Lula completou 100 dias. Quais os dois maiores avanços nesse período e quais os outros dois aspectos que ainda requerem maior atenção?
Mauricio Weiss – Uma das principais contribuições desse período decorre da mudança viabilizada pela PEC de Transição, ações que foram implementadas nos primeiros momentos do governo. Isso possibilitou a retomada do Bolsa Família, que é um programa muito mais inteligente que o Auxílio Brasil, pois exige contrapartidas como vacinação, frequência escolar, é muito mais fiscalizado. No Auxílio Brasil, havia muito desvio de pessoas que recebiam e não deviam receber. Então, agora, o gasto é muito mais bem direcionado.
Sem contar que o orçamento previsto, embora na campanha se falava em 600, era só de 400 reais por beneficiário do Auxílio. Hoje, o Bolsa Família aumentou para 600 reais de verdade, mais com os auxílios por filhos que, dependendo da faixa etária, resulta num recebimento médio de cerca de 700 reais.
Essas mudanças, também previstas na PEC da Transição, permitiram a retomada do investimento público, que está na casa de 75 bilhões de reais. Havia grande falta de investimento público, muitas obras paradas. São questões fundamentais que puderam ser retomadas. Temos novos auxílios-moradias. Algumas coisas estão em estágio mais embrionário, mas está sendo prevista uma retomada do papel do BNDES. Há planos nesse sentido, mas ainda pouca informação para termos clareza. De qualquer forma, é uma retomada importante dos bancos públicos e, especialmente, do BNDES.
Outra questão importante são as bolsas de pesquisas que foram fortemente corrigidas, especialmente as de pós-graduação que estavam há anos sem correção. Também tivemos melhorias na merenda escolar. Tem a redução significativa da fila de espera para atendimentos no INSS, que ficava artificialmente parada para não aumentar os gastos tributários. E, claro, tem toda a questão da volta do diálogo democrático. São importantes avanços durante esses 100 dias, mas que, em parte, já começaram pela PEC da Transição.
Se for para ficar em dois dos maiores avanços, destaco a consolidação da volta do Bolsa Família, que era de 400 e foi para uma média de 700 reais, e a retomada da ampliação do investimento público.
O que requer atenção, colocando na perspectiva econômica e não social no sentido amplo, é a consolidação desse regime fiscal, pois são importantes aqueles avanços que comentei acima.
E, ainda, a questão do estabelecimento do setor público nos bancos públicos, especialmente no papel que o BNDES pode ter para dinamizar a economia. Isso é ainda mais importante diante dos limites da política monetária com o Banco Central autônomo.
IHU – Desejam acrescentar algo?
Róber Iturriet Avila – Podemos acrescentar que o novo arcabouço fiscal é melhor do que os anteriores. Tem problemas também, não é maravilhoso, é um pouco restritivo e não permite grandes ampliações de despesa. Só que, ao mesmo tempo, corrige uma série de problemas como esse de o gasto público ir no sentido do ciclo econômico. Ele vai continuar sendo assim, mas menos, principalmente quando estiver ou numa fase muito descendente ou numa fase muito ascendente. Nesses casos, a regra vai fazer o balanço contrário, o que é desejável.
Além disso, favorece muito o investimento. Quando se tem a necessidade de corte de gastos, acaba-se cortando mais investimento. E investimento é formação bruta de capital fixo, é ação da capacidade produtiva, é investimento em estradas, em renovação das escolas, hospitais. Acaba que o gasto público, quando tinha que cortar, cortava justamente nesses investimentos que são despesas que não são obrigatórias, ao contrário de despesas obrigatórias como os salários dos servidores, dos aposentados.
Só que essas áreas de investimento influenciam muito a dinâmica econômica, são gastos que dinamizam a economia, que incentivam muito para cima, quando aumenta o gasto, mas, quando retira, ajuda a aprofundar muito fortemente a economia. Foi o que aconteceu em 2015/2016, quando houve um corte de gastos em investimentos e isso ajudou a economia a mergulhar. Está aí o que chamamos de elevado efeito multiplicador sobre a demanda.
Então, esse novo regramento favorece o gasto em investimento, estabelece um piso em investimento, o que é bom. O investimento público vem caindo muito nos últimos anos. Em termos percentuais, estamos no nível mais baixo desde a série histórica, iniciada em 1947. E, também, permite que, se houver espaço fiscal, o excesso de receita pode ser gasto em investimento no sentido de segurar as despesas correntes, que não pode cortar no futuro, como o salário dos servidores, e permite que haja melhoria de infraestrutura, como em ferrovias, saneamento, rodovias, aeroportos, portos, esse tipo de gasto em investimento.