Por: Patricia Fachin | 16 Agosto 2017
Se de um lado as tecnologias digitais, a exemplo do Facebook, permitem a interação entre grupos de interesse, modificam e potencializam a capacidade de mobilização de movimentos e criam até mesmo um ativismo que expressa “um estilo de vida e de uma prática cotidiana”, de outro, por vezes, é possível constatar “apenas uma ação performática mal ensaiada e sem maiores consequências; daí a denúncia do slackativismo. O ‘ativismo de Facebook’ seria, então, um ativismo preguiçoso ou de preguiçosos”, pondera Marcelo Barreira à IHU On-Line. Entretanto, pontua, há pelo menos dois eixos interpretativos acerca do ativismo de Facebook: um deles diz respeito a uma intervenção sem maiores consequências, e outro “seria como uma agulha de acupuntura que causa impactos transformadores no sistema nervoso central de nossa teia de comunicação virtual quando uma postagem se viraliza”.
Na entrevista a seguir, concedida por e-mail, o filósofo relembra alguns casos em que o uso de hashtags e slogan surtiram um resultado político, e outros em que as campanhas foram frustradas. Um exemplo positivo de como o Facebook se tornou uma “arena de debates e um precário laboratório de democracia”, menciona, foi a de solidariedade aos Guarani Kaiowá da Aldeia Passo Piraju. “Uma campanha paradigmática foi quando diversos usuários trocaram seus sobrenomes no Facebook para ‘Guarani Kaiowá’ em solidariedade aos indígenas ameaçados por uma decisão judicial de retirada da Aldeia Passo Piraju, na cidade de Iguatemi/MS. Essa solidariedade deu visibilidade à causa indígena, ecoando e multiplicando sua voz, a ponto de grandes jornais do Rio e de São Paulo enviarem correspondentes até o local de conflito. Houve efetivamente um processo de radicalização democrática nessa campanha”, relata.
Apesar de a rede social ser hoje uma espécie de ágora digital, Barreira avalia que o Facebook também pode ser uma ameaça à democracia. “A maior ameaça do Facebook à democracia é que a empresa não só cataloga preferências políticas e culturais, mas as molda e administra conforme seus interesses de mercado, a ponto de manipular as emoções de 700 mil pessoas para uma pesquisa publicada em 2014 sobre perfis psicológicos no uso das redes sociais”, diz. De outro lado, pontua, “ao estimular um maior número de usuários, o Facebook acaba dando voz a minorias étnicas, sexuais, religiosas, culturais ou estéticas, pluralizando e divulgando uma infinidade de histórias que complexificam a vida sociocultural pela democratização de símbolos”. Apesar disso, ressalta, “uma padronização de gostos e homogeneização algorítmica de formas de vida contribuem com um novo modelo de negócio, o capitalismo de plataformas, tendo como efeito colateral a exposição de indivíduos inconformados ou desajustados aos padrões culturais ou às visões de mundo estabelecidos como critérios de julgamento moral em determinada comunidade cultural formatada digitalmente — deixando-os vulneráveis aos outros usuários e às autoridades locais”.
Marcelo Barreira | Foto: Arquivo Pessoal
Marcelo Barreira é graduado em Filosofia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, mestre na mesma área pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro – UERJ e doutor também em Filosofia pela Universidade Estadual de Campinas – Unicamp. É professor do Departamento de Filosofia e do PPGFil da Universidade Federal do Espírito Santo - UFES.
Confira a entrevista.
IHU On-Line - Alguns têm chamado atenção para o “ativismo de Facebook”, ou seja, para uma espécie de militância que as pessoas fazem através das redes sociais, compartilhando e “curtindo” conteúdos ligados às suas preferências políticas. Esse é um sintoma da nossa época? Como o senhor compreende esse tipo de ativismo e por que ele acontece nos dias de hoje?
Marcelo Barreira - Com o fito de esclarecer o fenômeno do “ativismo de Facebook”, cabe inicialmente assinalar a distinção entre ativismo e militância, mesmo sob o risco de esquematismo, especialmente diante de um binarismo classificatório. Interpreto “militância” como uma adaptação da vida à luta político-institucional em movimentos sociais com estratégia regular e de longo prazo.
Uma frase que sintetiza bem a postura do militante é a emblemática pergunta “o que é isso, companheiro? ”, sintoma do estupor de alguém ante a constatação da perda de foco político com demandas afetivas, pertinentes tão só como um descanso no compromisso principal e integral: a seriedade da luta revolucionária. O ativismo surge de um estilo de vida e de uma prática cotidiana — alimentar, afetiva etc. — que se converte num ponto de afirmação em face dos valores sociais estabelecidos. Daí se aduz uma bandeira política mais fluida, existencial e menos institucional. Neste sentido, o ativismo como práxis adapta-se mais facilmente a uma ação política virtual, pois o ambiente das redes sociais facilita a tentativa idiossincrática de influenciar outras pessoas na proposta de um novo jeito de ser, de pensar, de sentir e de agir.
Obviamente haveria muitos tons de cinza nessa distinção eivada de ambiguidades; logo, não me parece alvissareiro quaisquer maniqueísmos do tipo militância versus ativismo. Afinal, o Facebook (como metáfora de “rede social”) é também uma plataforma de ação política para movimentos sociais e partidos políticos tradicionais, quando o Facebook se transmuda num braço virtual de uma luta militante e contra-hegemônica realizada em vários âmbitos, ainda que tal ambiente seja criticado e relativizado em comparação com as ações presenciais. Afinal, há distinção, mas que não impede a complementariedade entre militantes e ativistas nas lutas políticas.
IHU On-Line - O “ativismo de Facebook” se contrapõe à militância de rua, que caracterizou a década de 1980? Por quê?
Marcelo Barreira - A década de 80 foi marcada pela ação militante. A militância em movimentos sociais foi o modelo de participação política surgido no contexto do processo de “redemocratização”. Uma característica muito presente na época era a dupla militância, no movimento social e no partido político, o que invariavelmente visava ao aparelhamento político-partidário daqueles movimentos. Os movimentos apresentavam unidade de objetivos e clareza de identidade, por isso Rodrigo Nunes qualifica-os como sendo de “código fechado”. O elemento chave era converter e conscientizar outros da centralidade de sua causa e agenda política, repetidas nos palanques e nos carros de som.
O ponto de emergência do “ativismo de Facebook” foi a massificação das novas tecnologias de informação e de comunicação entre jovens, propiciando as jornadas de junho de 2013. Para sairmos do Facebook, antes nos encontrávamos no Facebook. As tecnologias digitais permitiram afluir e intensificar novas subjetividades pessoais e coletivas, e mais interessante: encontrar outras pessoas e outros grupos com interesses semelhantes, mesmo se alheios ao mainstream. A capacidade de mobilização, com capilaridade e velocidade de divulgação com baixo custo, talvez seja a maior mudança do modus operandi organizacional entre o modelo analógico e o digital, impulsionado pelas redes sociais, acarretando novo estilo de cidadania ativa e novos perfis de agentes políticos. No entanto, tais eventos muitas vezes geram apenas uma ação performática mal ensaiada e sem maiores consequências; daí a denúncia do slackativismo [1]. O “ativismo de Facebook” seria, então, um ativismo preguiçoso ou de preguiçosos.
O “ativismo de Facebook”, como nova forma de ação política, é um “acontecimento”, isto é: algo que paradoxalmente irrompe historicamente e rompe com uma tradição histórica; no caso, uma tradição de como se fazer política. Compreende-se, portanto, a resistência de militantes formados na década de 80. Acautelemo-nos, porém, da “doença histórica”, que impede o paradoxo do acontecimento. Em sua obra de juventude Sobre a utilidade e a desvantagem da História para a vida, Nietzsche defendia que o excesso de sentido histórico da consciência moderna se fixa no passado ou em sistemas lógicos de pensamento, cujos axiomas e chaves interpretativas filtram a leitura que se faz da “história”, impedindo de se ver o novo que “acontece” no presente. Portanto, embora o ativismo digital traga riscos democráticos, também oportuniza possibilidades, mas só percebe isso quem se abre à irrupção do novo. Um exemplo dessas possibilidades é a recente interface entre militantes e ativistas. A criação do site Vamos! Sem Medo de Mudar o Brasil articula movimentos sociais que se abriram para uma incomum horizontalidade na participação política de jovens em rede social, com ênfase em não militantes, indispostos a se adaptarem a estruturas hierarquizadas.
IHU On-Line - Qual é o impacto desse tipo de postura e atitude na política? Quais os limites e possibilidades desses ativismos na formação política e no aprofundamento da democracia?
Marcelo Barreira - Para se avaliar consistentemente o impacto da “postura” e “atitude” política trazida pelo “ativismo de Facebook”, carece de assentar a poeira da novidade numa média ou longa duração do tempo. Precisamos da paciência do conceito para uma elaboração teórica mais consistente. Em curta perspectiva, diria que a aliança entre democracia, política, economia e tecnologia carrega infinitas possibilidades, socialmente sustentáveis ou não.
De início, haveria dois eixos interpretativos para o “ativismo de Facebook”: 1) seria uma intervenção sem maiores consequências ou 2) seria como uma agulha de acupuntura que causa impactos transformadores no sistema nervoso central de nossa teia de comunicação virtual quando uma postagem se viraliza. Desconfiamos que provavelmente as duas interpretações sejam factíveis. O “ativismo de Facebook” não é necessariamente a encarnação nem do bem nem do mal, mas, ainda que no futuro possa ser diferente, tendo a pensar que a interpretação 1 seja a mais frequentemente constatável.
Quanto às mudanças políticas efetivas, nem sempre as hashtags com slogans políticos surtem resultado, o que nos acaba frustrando. Embora tenha aglutinado diversas forças políticas, a atual campanha virtual pelo #ForaTemer não causa cócegas aos grupos encastelados no poder estatal, apesar dos fortes indícios de corrupção e das inúmeras investigações em curso. Antes, contudo, houve campanhas no Facebook que galvanizaram múltiplas lutas e, apesar de um efeito e resultado relativos, foram relevantes, como a “Onde está o Amarildo?”, contra a violência policial. No ano passado, cada ocupação de escola em resistência à aprovação da então MP do Ensino Médio tinha uma página no Facebook com a programação do dia e com solicitações de mantimentos e de oficinas.
Uma campanha paradigmática foi quando diversos usuários trocaram seus sobrenomes no Facebook para “Guarani Kaiowá” em solidariedade aos indígenas ameaçados por uma decisão judicial de retirada da Aldeia Passo Piraju, na cidade de Iguatemi/MS. Essa solidariedade deu visibilidade à causa indígena, ecoando e multiplicando sua voz, a ponto de grandes jornais do Rio e de São Paulo enviarem correspondentes até o local de conflito. Houve efetivamente um processo de radicalização democrática nessa campanha.
O Facebook se tornou, sobretudo, uma arena de debates e um precário laboratório de democracia. Mesmo se os debates sejam entre pessoas e grupos do mesmo espectro político ou se transformem num lançamento mútuo de anátemas na busca de se afirmar as próprias teses e não de se abrir à pertinência relativa dos pontos de vista contraditórios, há internautas que acompanham “de fora” o debate para formarem suas próprias convicções políticas. Vejamos o debate sobre “apropriação cultural” pelo uso de um símbolo negro, o turbante, por uma branca; ou a polêmica sobre o comentário crítico de Johnny Hooker sobre Ney Matogrosso; além da controvérsia mais recente: sobre o machismo na letra da música “Tua cantiga”, de Chico Buarque. De qualquer modo, para além da militância institucional e da mera leitura de debates on-line, o locus de politização são os desconfortos das ruas e praças, onde se conjugam atritos e mobilizações.
IHU On-Line - Por que o senhor afirma que o “Facebook é performaticamente contraditório como a teoria universal-pragmática de Habermas”?
Marcelo Barreira - Retomo a observação do ex-prefeito Fernando Haddad em seu propalado texto na Revista Piauí: “Acho que as redes sociais estão mais para Luhmann do que para Habermas. Quero dizer com isso que a ênfase dada pelo filósofo alemão Jürgen Habermas às possibilidades de participação política proporcionadas pela modernidade talvez tenha sido exagerada. E que a visão mais pessimista de seu conterrâneo, o sociólogo Niklas Luhmann, seja mais adequada ao mundo de hoje. De acordo com Luhmann, o advento da rede social representa uma ruptura radical entre a emissão e a recepção da mensagem (...). O ponto, segundo ele, é que hoje a reputação do emissor, a origem da informação, perdeu relevância. A técnica, diz Luhmann, ‘anula a autoridade da fonte e a substitui pelo irreconhecível da fonte’. ”
Não discutirei aqui elementos técnicos e exegéticos dos pensamentos de Habermas e de Luhmann. Pretendo partir dos posicionamentos de Haddad para tecer algumas considerações. Ele faz as afirmações acima num contexto de análise das jornadas de junho. No entanto, sua percepção confirma os preconceitos da velha esquerda diante do novo. Haddad considera paradigmática a leitura iluminista de Habermas sobre a democracia, mas critica seu idealismo com um argumento elitista de Luhmann: a perda de centralidade política da autoridade da fonte. A autoridade da fonte vem da proximidade das grandes corporações midiáticas com o poder. Acompanho Fabio Malini na análise de que a centralidade das notícias, hoje, protagoniza-se pelos compartilhamentos e debates que surgem democraticamente entre os internautas, gerando os famosos trending topics do Twitter.
No tocante à citação feita na pergunta, Habermas acusa a tantos como contraditoriamente performáticos, posto que, ao discordar de suas posições, não haveria como negar uma argumentação de amplitude universal, como preconiza. Repito que não pretendo discutir a posição habermasiana, mas simplesmente apontar como a equipe de Mark Zuckerberg participa de um igual padrão teórico. Habermas e Zuckerberg se situam por convicção e contexto sob o influxo da tradição liberal, com ênfase no indivíduo autônomo. Embora haja diversos liberalismos e isso seja um tema complexo, sublinhe-se o caráter de neutralidade axiológica do liberalismo de herança kantiana, sob o qual Habermas e o Facebook se alinham. Ademais, o liberalismo habermasiano é filosófico, isto é, seu componente de universalidade em favor de um governo mundial de uma suposta comunidade global traz uma impostação metafísica alheia a contextos histórico-culturais não ocidentais que não se encaixam na tradição liberal.
Nessa linha, o marketing social do Facebook consiste na proposta de ser um ambiente favorável à interação livre e plural entre usuários individuais. Num cenário temeroso de Trump e suas muralhas, a agenda política de Zuckerberg é a de um ideal tecnocrático capitaneado pelos heróis do Facebook. Ilustremos isso com a iniciativa de permitir 40 milhões de pessoas em países da América Latina, África e Ásia se conectarem gratuitamente à internet pela plataforma Internet.org, em parceria com empresas de telecomunicação. No entanto, limitar o acesso à informação on-line exclusivamente pelo Facebook e pela Wikipédia macula a neutralidade da web. Essa iniciativa, portanto, não é tão filantrópica quanto parece. Ela é uma estratégia mercadológica por conta da ampliação de usuários que torna desproporcional o poder do Facebook perante outras plataformas de informação e relacionamento.
Sob a máscara filantrópica de se aproximar indivíduos autônomos e diferentes num ambiente neutro quanto ao teor de suas postagens, o custo para a inovação tecnológica exige financiamento e os acionistas em Wall Street visam sempre a um maior lucro. Com a meta de percorrer 30 dos 50 Estados americanos neste ano, numa ainda velada campanha à presidência norte-americana em 2020, Mark Zuckerberg cruza a linha e ameaça a democracia ao ambicionar funções governamentais de uma empresa que, segundo analistas, não cumpre suas responsabilidades morais, legais e fiscais, além de fazer lobby contra a transparência e o controle social da internet. Assim, no dia 16 de fevereiro deste ano, Zuckerberg publicou um manifesto em seu perfil no Facebook em defesa da construção da comunidade global. Além da jactância de propor o que o mundo deve fazer, exportando um modelo específico de democracia liberal, a ênfase do manifesto é a globalização e a segurança. Essa proposta é perigosa, pois manter a infraestrutura de segurança global de nossos dados pelo Facebook seria como a raposa cuidando do galinheiro.
A maior ameaça do Facebook à democracia é que a empresa não só cataloga preferências políticas e culturais, mas as molda e administra conforme seus interesses de mercado, a ponto de manipular as emoções de 700 mil pessoas para uma pesquisa publicada em 2014 sobre perfis psicológicos no uso das redes sociais. Do mesmo modo em que o secularizado Habermas se coloca num lugar privilegiado ao exigir que religiosos traduzam seus conteúdos na esfera pública secularizada, a universalidade da equipe de Zuckerberg pressupõe um modelo universal afeito à comunidade cultural em que sua equipe se contextualiza; os próprios valores comunitários são, portanto, ampliados, dando um verniz de “universalidade”. Seria a universalidade do liberalismo ocidental, de impostação normativa e com um modelo exclusivista de argumentação racional.
O elemento pragmático e contextual, no Facebook, abrir-se-ia às especificidades de costumes e racionalidades locais, o que seria um aspecto emancipatório da necessidade de ampliação do mercado. Afinal, ao estimular um maior número de usuários, o Facebook acaba dando voz a minorias étnicas, sexuais, religiosas, culturais ou estéticas, pluralizando e divulgando uma infinidade de histórias que complexificam a vida sociocultural pela democratização de símbolos. No entanto, uma padronização de gostos e homogeneização algorítmica de formas de vida contribuem com um novo modelo de negócio, o capitalismo de plataformas, tendo como efeito colateral a exposição de indivíduos inconformados ou desajustados aos padrões culturais ou às visões de mundo estabelecidos como critérios de julgamento moral em determinada comunidade cultural formatada digitalmente – deixando-os vulneráveis aos outros usuários e às autoridades locais. Em sintonia com essa mesma lógica e por analogia, Eli Pariser, em Filter Bubble, aponta o descompasso no resultado da busca pela palavra “Egito” no Google, em que alguns usuários recebem informações sobre revoltas e, outros, apenas sobre férias nas pirâmides, tudo em função do diagnóstico algorítmico de seu comportamento prévio.
Há problemas de contradição performática no Facebook nas duas pontas: na universalidade normativa e no contexto pragmático.
IHU On-Line - Como o senhor compreende dois fenômenos que parecem ocorrer juntos: de um lado, um exibicionismo e fornecimento de informações pessoais nas redes e, de outro, uma crítica à vigilância e uma submissão que se dá pela rede?
Marcelo Barreira - Esses dois fenômenos não acontecem para todos os usuários e nem estão sempre associados entre si. Não existe uma maneira exclusiva de os 2 bilhões de usuários usarem o Facebook. No entanto, pressupondo a sinceridade de intenções (descartando trollers e haters), cadastra-se numa rede social para se interagir com outros, em vista de crescimento e valorização mútuas. Vejo três tipos de interesse.
1) O interesse no aprofundamento de relações com amigos e familiares. Para estes, que pretendem restringir seus contatos apenas às relações de afeto com familiares e amigos – de infância ou da última mesa de bar –, num uso próximo ao mundo off-line, terá dispositivos para dificultar o acesso de desconhecidos a seu perfil.
2) O interesse numa popularidade pela ostentação de bens de consumo, incluindo viagens e até o próprio corpo. O Facebook é um lugar privilegiado para “ver e ser visto”, o que é um interesse legítimo. Seria, então, a máxima inversão do diário íntimo, cujo cadeado escondia as sutilezas da subjetividade de alguém. Inversão que permite ajudar alguém com depressão ou aprofundá-la pelo efeito de comparação com a bela vida editada de outros perfis. Considero preocupante quando a obsessão pelo reconhecimento social passa a ser estratégica, com o uso até de softwares para a medição e incremento da popularidade. Sabemos que o Facebook pode ser um ativo para uma empresa ou pessoa, como é para um youtuber, capitalizando anunciantes para seu blog ou página virtual, que permite novos trabalhos ou novas experiências e partilhas sobre temas específicos.
3) O interesse em influenciar num debate mais amplo com suas opiniões e ideias, seja ponderando de modo idiossincrático sobre diversos assuntos ou, de modo mais assertivo politicamente, municiando companheiros no tiroteio político contra inimigos político-ideológicos. Afinal, a opinião pública é a opinião que se publica. E um dos pontos de análise crítica, ou metacrítica, pode ser o próprio ambiente do Facebook, seja para melhorá-lo ou miná-lo por dentro. Independente da viabilidade e relevância de tais críticas, isso seria, paradoxalmente, o que há de mais salutar no Facebook.
IHU On-Line - Não lhe parece, digamos, contraditório as pessoas reclamarem da vigilância à qual estão submetidas na rede, mas, ao mesmo tempo, disponibilizarem uma série de informações pessoais por sua própria vontade? Ou as pessoas sequer têm noção dessa vigilância em rede?
Marcelo Barreira - Arrisco dizer que a maioria dos usuários brasileiros, pelo menos, temem mais a vigilância social do que a vigilância corporativa e governamental; e se há vigilância no Facebook seria feita por seu círculo de “amigos”, com indiscrições e conflitos, mas não a empresa Facebook. Caso esteja certo, não haveria propriamente uma contradição. A contradição pressupõe posições antagônicas numa linearidade argumentativa. Se o usuário comum, como perante outras expressões da indústria cultural, não elabora uma reflexão crítica, em específico, sobre o uso corporativo de seus dados pelo “Face”, também não há contradição, o que há são insatisfações sobre alterações no ambiente da plataforma. Minha percepção é que as reclamações seriam direcionadas mais às pessoas do que à plataforma digital pela qual ela interage socialmente. Infelizmente, considero que o grosso dos usuários não tem noção da vigilância empreendida por governos e empresas nas redes sociais.
IHU On-Line - De que modo os algoritmos moldam e formam “um tipo de modus operandi”? De outro lado, é possível dizer que esse “modus operandi” potencializado pelos algoritmos já constitui os indivíduos?
Marcelo Barreira - Os algoritmos influenciam um modus operandi, tanto no mundo dos negócios e da política, quanto na forma de gerenciamento da vida individual, elemento principal da pergunta. Em princípio, algoritmos não formam indivíduos, mas indivíduos produzem dados algorítmicos. Essa condição “natural” é subvertida quando pessoas plasmam sua individualidade conforme uma melhor performance algorítmica. Imaginemos alguém que visa maior empregabilidade e cuida milimetricamente do teor de suas postagens no Facebook; isso só mostraria o engessamento de um perfil sem vida e sob medida para os interesses valorativos do mercado.
A maior ameaça do Facebook a nosso modus operandi individual é que a empresa não só cataloga preferências políticas e culturais de cada um de seus usuários, mas as molda e administra conforme seus interesses de mercado. Para construir artificialmente um mundo agradável para quem usa e para quem anuncia no Facebook, essa empresa convenientemente exclui nudes, mas aceita mentiras, ódios raciais e sexuais, sob a desculpa da “liberdade de expressão” de um grupo social. Percebe-se aí a conveniência do que é de interesse do público, sem a preocupação com o interesse público em defesa de uma intensificação democrática.
O fascismo soube dominar as técnicas de “estetização do político”, conforme a expressão de Walter Benjamin. Um risco que persiste hoje quando a “formação” sobre diversos temas é feita por memes e frases veiculados nas redes sociais. Caberia uma posição mais crítica do usuário comum sobre seu uso e consumo de informações pelas redes sociais. A maior dificuldade seria a mídia em geral e o Facebook em particular criarem espaços de análises críticas sobre si mesmo. Algo pouco provável, até porque as consequências efetivas deveriam ser uma maior transparência de seus processos de validação das fontes e, principalmente, o estabelecimento democrático e plural de caminhos públicos de controle social, como a União Europeia fez recentemente ao aplicar uma multa recorde de R$ 8,9 bilhões ao Google por abuso de poder de mercado.
IHU On-Line - Em um comentário recente o senhor afirmou que nós “nos submetemos à Rede Social por antonomásia”. Por que isso ocorre? Que outra postura poderia se adotar em relação às redes?
Marcelo Barreira - Apesar da generalização do termo, ter uma conta no Facebook não significa uma submissão à plataforma do Facebook. Como foi colocado antes, são vários os motivos de se ter um perfil na rede social, mas nenhum deles seria para se submeter conscientemente ao Facebook. Apesar disso, há, sim, uma comum e ingênua submissão sem saber que se submete; em tese, poderia até hipoteticamente haver uma submissão estratégica, aproveitando-se da ferramenta contra o próprio papel sociopolítico que ela deseja estabelecer, usando para finalidades ideológicas distintas de seu fundador.
Escapar do uso de dados pelas empresas e grupos políticos parece um esforço inútil e destinado à frustração para quem se apropria cotidianamente das novas tecnologias de informação. O horizonte distópico nos ameaça, especialmente com algoritmos crescentemente complexos, afinados e treinados por sensores de personalização com altíssimo índice de acerto. Lembro, contudo, de que a essência da técnica é o que nós humanos fazemos de nosso destino. Não somos reféns da técnica, nem dos empresários e governantes que financiam e se aproveitam da ciência e da técnica para selecionar estrategicamente alguns consumidores e eleitores em detrimento de outros.
Os impactos globais dos paradigmas científico-tecnológicos não são o ponto final da história. Numa discussão mais conceitual sobre o acontecimento da emergência das novas tecnologias de informação, articulemos Martin Heidegger e Walter Benjamin para propor uma compreensão estética do deslocamento trazido pelo “efeito de choque”. Do mesmo modo em que houve um deslocamento e um “efeito de choque” trazido pelo cinema diante da postura contemplativa da obra de arte aurática, também o fenômeno das redes sociais, ao contrário da conversão a um bloco institucional de ideias, estimula uma interação de baixo para cima. Pautada pelo afeto, mas também por ideias e valores, cria-se uma conexão idiossincrática de redes de amigos, indivíduos “soltos” (um tipo de redundância) e pequenos coletivos, que se multiplicam – conexão virtual que se espelhou presencialmente no estilo das megamanifestações de junho de 2013.
A “horizontalidade” dessa postura afetivo-ideológica, potencializada algoritmicamente, de outro lado, traz o risco democrático de isolar as pessoas e os grupos em bolhas excludentes ao atrito e ao contraditório. A questão é a circularidade do “efeito Tostines”, a ser mais bem pesquisado: o algoritmo restringe a interação social ou a interação social off-line se desdobra na bolha algorítmica? Compreendamos esse paradoxo a partir do Ge-Stell. Esse conceito heideggeriano evoca a imposição trazida pela técnica em nossa modernidade tardia. Imposição ambígua, visto que a essência (Wesen) da técnica não é técnica. Na esteira do resgate da τέχνη, de seu sentido originário, a essência da técnica não se esgota no modelo instrumental de racionalidade moderna. A técnica, em seu sentido originário, seria acontecimento-apropriação (Ereignis), realizando e aprofundando a imposição técnica para além dela, como uma nova possibilidade de constituição de mundo, a serviço do humano.
IHU On-Line - O senhor também disse que o Facebook “vibra” com os likes, mas que “a democracia não cabe nos algoritmos”. Pode desenvolver essa ideia?
Marcelo Barreira - Os likes são os combustíveis mais simples da interação social pelo Facebook, mas é preciso sair da zona de conforto ideológico feita pela própria timeline e pelo feed de notícias para construir a democracia. A democracia se intensifica mais nos atritos do contraditório do que nos algoritmos que minimizam conflitos em prol de uma maior harmonia social, alimentada por likes.
A tecnologia não é, por si só, antidemocrática, embora também não seja necessariamente democrática. Ao afirmar que a democracia não cabe nos algoritmos não é jogar fora a água suja com o bebê. Devemos elogiar a proposta de Zuckerberg de um novo contrato social por uma renda básica universal, feita no discurso aos formandos deste ano em Harvard. Logo, nossa crítica não é sistemática, mas não há como se render à ausência de neutralidade nos conteúdos que nos chegam filtrados pelo Facebook. É muito grave politicamente reconhecer que os algoritmos das redes sociais mentem ou manipulam. Há softwares que aprendem a mentir para aperfeiçoar o alcance de seus resultados, como a venda de produtos.
Com a atual inovação tecnológica no volume e imediatez na obtenção de dados, nosso histórico de compras permite uma avaliação de créditos em segundos, mas o risco maior nesse processo de coleta e processamento de dados é o ajuste nas formas sutis de convencimento do usuário. Os dados hoje são a grande ferramenta econômica e política. Isso permitiu a Cambridge Analytica influenciar politicamente no referendo do Brexit e fazer 340 mil pessoas irem às urnas nas últimas eleições presidenciais dos EUA. Em nosso país, o uso de bots sociais — robôs que se comportam como usuários — determinou movimentos políticos como as manifestações pró-impeachment e as eleições municipais de 2016; por exemplo, 3,5 mil contas falsas no Twitter atacaram a candidatura de Marcelo Freixo a prefeito do Rio.
O usuário comum do Facebook consegue um limitado alcance com suas postagens. Por isso, o Facebook, por si só, não é um veículo de intensificação da democracia. Ele é apenas um arremedo de esfera pública que prepara as ações emancipatórias da mais consistente esfera pública, a que dialoga com o mundo virtual mas centra sua ação fora do Facebook, em ações presenciais.
IHU On-Line - Como avançar em termos de discussão política e fortalecimento da democracia para além das postagens e dos likes nas redes sociais, mas sem rejeitar o ambiente das redes sociais, hoje muito presente nas formas de vida do nosso tempo?
Marcelo Barreira - Responderei à sua pergunta a partir do célebre cartaz com os dizeres “saí do Facebook”, muito comum nas jornadas de junho de 2013. O cartaz evocava a conquista que foi a ida às ruas dos “ativistas de Facebook”. Quem, no entanto, empunhava tais cartazes: os militantes que denunciavam os ativistas ou os próprios ativistas? Seria a “saída do Facebook” uma bandeira como outros múltiplos cartazes nessas megamanifestações ou seria a principal? Seja como for, a “saída do Facebook” é uma questão política a ser discutida. Se cada cartaz for uma bandeira singular de luta inscrita numa multidão anônima e sem hierarquia fixa, para eles se comunicarem entre si e não se isolarem na diversidade de cosmovisões e interesses é preciso uma perspectiva de construção democrática em espaços coletivos e presenciais.
O grande desafio é articular o digital com o analógico, em todas as esferas da vida, até porque essa interseção simboliza nossa época, chamada “Era dos Algoritmos”. Talvez o rótulo seja excessivo, mas diante da banalidade do uso do Facebook, convém saber lidar com os algoritmos, pois eles vieram para ficar em todos os campos de nossas vidas. Nossa sensibilidade diante do mundo, contudo, plasma-se por encontros significativos de partilha e hábitos de ação, que se realizam especialmente no ambiente analógico. Um encontro e reunião exige dos participantes a capacidade de usar analogicamente o tempo para ouvir e falar. Celulares até atrapalhariam nesse tempo de escuta, embora, num segundo momento, haja compartilhamento desse evento pelas plataformas digitais.
Mesmo sendo possível ser um ativista que usa o Facebook para suas causas, esse ativismo se limitará fortemente se não for além dessa ferramenta para o front presencial e analógico da convivência humana e da luta política. As redes e as ruas hão de se dialetizar sempre mais. O lema “Saímos do Facebook” é relativo, pois se alcançamos a rua após uma convocação on-line, a rua, por sua vez, oportunizará postagens virtuais.
IHU On-Line – Deseja acrescentar algo?
Marcelo Barreira - O aplicativo Sarahah [2] propõe algo novo: receber comentários, críticas e elogios sob a forma anônima. Esse aplicativo não apresenta a ambiguidade de outras redes sociais, como o Facebook. Além de enfatizar a relação meramente individual, sem a possibilidade de realização de campanhas e promoção de eventos, vende a imagem de que seria um novo anel de Giges. Platão relata quando o pastor Giges, ao encontrar um anel da invisibilidade, revela a sua autêntica moralidade. O mesmo aconteceria com aqueles que, diante da certeza do anonimato, revelariam seus reais pensamentos e interesses. Apesar da retórica do marketing, o aplicativo mostrará não a “natureza humana”, mas facilitará sobretudo o esgarçamento das relações sociais. Apontar o dedo de acusação contra outros não gera real compromisso com o crescimento pessoal de alguém.
Notas:
[1] Slacktivism: Neologismo da língua inglesa que significa ativismo preguiçoso. (Nota da IHU On-Line)
[2] Sarahah é uma rede social e um aplicativo de mensagens anônimas que tem como objetivo permitir que os usuários enviem suas opiniões sobre as atitudes das pessoas com as quais estão em contato, tanto no âmbito profissional quanto no pessoal. A proposta do aplicativo é fazer com que as pessoas descubram, de um lado, seus pontos fortes e, de outro, aqueles que devem ser melhorados, através de comentários honestos que recebem de seus colegas de trabalho, no âmbito profissional, e de amigos e familiares, no âmbito pessoal. A palavra sarahah significa honestidade em árabe e o aplicativo foi desenvolvido por ZainAlabdin Tawfiq. Aproximadamente 300 milhões de usuários utilizam o aplicativo. (Nota da IHU On-Line)
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Os likes são um combustível, mas é preciso sair da zona de conforto ideológica da timeline para construir a democracia. Entrevista especial com Marcelo Barreira - Instituto Humanitas Unisinos - IHU