Por: Ricardo Machado | 26 Outubro 2016
Nenhum tiro foi ouvido no campo de batalha. A guerra, no entanto, segue a pleno, no silêncio profundo do algoritmo em escala global. O professor Pedro Rezende, da Universidade de Brasília – UnB, descreve o período em que vivemos como o de uma ciberguerra ou guerra híbrida. “Os arranjos tecnológicos estão reorganizando os regimes de guerra. O que há é uma disputa semiótica sobre a guerra”, elucida diante de uma plateia de mais de 30 pessoas na Sala Ignacio Ellacuría e Companheiros, no Instituto Humanitas Unisinos - IHU. Sua conferência, A liberdade vigiada: novos arranjos tecnológicos de comando e controle, abriu o VII Colóquio da Cátedra Unesco – Unisinos de Direitos Humanos e Violência, Governo e Governança e V Colóquio Internacional IHU.
Para Rezende o episódio de Edward Snowden, embora tenha sido, sim, um marco, à medida que a vigilância global passou a ser um fato sabido por todos, funciona como uma espécie de cortina de fumaça para as questões de fundo. “O episódio Snowden é um exercício psicológico de bandeira falsa. Para o exercício do poder, a tecnologia é mais eficaz se puder controlar os fluxos financeiros. E é por isso que o vigilantismo global está sendo preparado há décadas”, pondera.
Diferente da guerra convencional, onde as balas de canhão e tiros de fuzil cruzam a atmosfera destruindo vidas humanas e edificações, a ciberguerra opera em outra lógica. “A ciberguerra existe na fronteira das tecnologias digitais”, pontua. “Com a informatização das práticas sociais surge a ilusão de que podemos ter privacidade com as tecnologias de comunicação humana. A ilusão que se tem é que como a comunicação digital distancia os sujeitos de carne e osso é que se pode administrar melhor os papeis que exercemos, seja como pais, profissionais, membros de certas comunidades”, complementa.
Desenredar o fio da história requer ter em conta para que servem as disputas narrativas e como o jogo da privacidade entra em cena. “A manifestação semiológica do instinto de privacidade mediada por dispositivos tecnológicos cria a ilusão que há autonomia, quando na verdade ela instrumentaliza os papeis”, sustenta o conferencista.
Pedro Rezende em conferência na Sala Ignacio Ellacuría e Companheiros, no IHU
A capacidade de se invisibilizar da guerra não convencional torna-se, talvez, sua principal tática. No fundo, o que está por trás de todos os movimentos da ciberguerra não é a segurança dos cidadãos, mas a dos dispositivos que controlam o sistema financeiro. Enquanto as pessoas se “distraem” com a violação dos direitos humanos no ataque de drones a vítimas que são escolhidas a partir de seus perfis na redes sociais, no caso paquistanês, os sistemas de segurança da informação constroem uma blindagem cada vez mais indestrutível dos algoritmos financeiros.
“O que aconteceu com as empresas financeiras de 2008 para cá foi um processo violento de automatização dos serviços. O papel dos traders foi substituído por algoritmos tais como o High Frequency Trader – HFT. Isso é super seguro, para o algoritmo não para a economia”, critica o conferencista.
Um dos soldados mais notórios nesse combate, além de Snowden, é o russo Sergey Aleynikov, ex-programador do Godman Sachs Bank, que foi preso e teve seus computadores confiscados sob a acusação de que seu software podia causar desequilíbrios no sistema financeiro mundial. “Oras, mas o que o Goldman Sachs faz? Não é a mesma coisa? Por que o banco pode? O que está em jogo aqui é um problema de direito autoral”, problematiza.
De acordo com Rezende, o preço dos ativos presentes e futuros que são monitorados por high tradings – robôs que fazem análise automática de ativos financeiros – são usados para manipular taxas de juros. “Por que o Brasil tem que pagar 14,75% de juros, sendo que a nosso dívida é de aproximadamente 70% do Produto Interno Bruto - PIB, e os Estados Unidos que tem dívida de 104% do PIB deles e pagam somente 0,5% de juros da dívida pública?”, provoca.
Tal dimensão de controle nos sistemas financeiros tende a inibir e exterminar toda e qualquer possibilidade de se criar modelos alternativos de circulação monetária. O fio da meada que conecta o sistema financeiro ao desejo global de controle biométrico das populações civis atende pelo nome de Keith B. Alexander.
“O presidente da National Secure Agency - NSA, demitido em 2014, criou uma empresa que pratica lobby para que banqueiros façam parte do conselho de guerra híbrida, de modo que possam declarar guerra contra quem quiserem”, aponta Rezende. Nesta guerra, a população civil, sobretudo os refugiados e os migrantes forçados, são acossados de todos os lados, seja pela pressão do sistema financeiro mundial sobre as grandes corporações que produzem alimentos, negando o acesso a bens essenciais como água e comida, seja pela ação dos aparelhos de repressão estatais - alfândega ou forças armadas. “É o triunfo da aliança entre o grande poder econômico com o grande poder do Estado, a saber, chamado por Mussolini de Fascismo. É assim que se implanta o Hegemon”, assevera Rezende.
A guerra pelo controle micropolitco da sociedade civil no Norte global se dá por meio da tentativa de obrigar imigrantes e refugiados a fazerem cadastros biométricos para que possam receber parcos auxílios para que não morram de fome. “A Agenda 21 foi estendida para Agenda 30. Combinando um registro biométrico de toda a população que começa voluntário e vai ser tornando coercitivo, sobretudo com os refugiados”, explica.
No Brasil, sem disparar um único tiro, os tanques estacionaram em nossos quintais. Isso porque como nosso sistema eleitoral exige a obrigatoriedade do voto. Com a desculpa de aumentar a segurança do sistema de votação, decidiu-se que no Brasil será necessário o cadastro biométrico. “No Brasil a identificação biométrica à justiça eleitoral é uma parceria entre a Polícia Federal – PF e o FBI. O edital para compra do sistema de identificação biométrica foi lançado com o nome e a versão do software que tinha que ser oferecido com a justificativa de que tivesse compatibilidade com a PF”, esclarece o conferencista. “Os arranjos políticos giram em torno dos arranjos tecnológicos”, frisa Rezende.
A guerra chegou à última fronteira humana, nosso próprio corpo. A batalha é nossa. Todos são soldados. Resta a resistência contra a guerra silenciosa ou a servidão voluntário ao algoz. Um estampido de canhão ouve-se ao longe. Todos se distraem.
Pedro Rezende | Foto: Fernanda Forner/IHU
Pedro Rezende é Advanced to Candidacy for PhD em Matemática Aplicada pela Universidade da Califórnia em Berkeley, bacharel e mestre em Matemática pela Universidade de Brasília. No Vale do Silício, trabalhou com controle de qualidade do sistema operacional Macintosh na Apple Computer, com sistemas de consulta a bases de dados por voz digitalizada na DataDial e com as primeiras aplicações de hipertexto, precursoras da web, desenvolvendo HyperCard stacks para Macintosh.
Foi membro do Grupo de Padronização de Segurança da Comissão de Informatização do Conselho Nacional de Justiça, do Grupo Interministerial sobre Sociedade da Informação no Itamaraty, do Conselho do Instituto Brasileiro de Política e Direito de Informática, do Conselho da Free Software Foundation Latin América e do Comitê Gestor da Infraestrutura de Chaves Públicas Brasileira, como representante da Sociedade Civil por designação do Presidente da República. Atualmente leciona no Departamento de Ciência da Computação da Universidade de Brasília – UnB.
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A silenciosa batalha dos algoritmos - Instituto Humanitas Unisinos - IHU