Por: Ricardo Machado e Patricia Fachin | 19 Julho 2017
Embora as gestões estadual e municipal do Rio de Janeiro argumentem que é preciso resolver a questão fiscal, “as planilhas de contas tanto do governo estadual como municipal não são abertas ao público, não são transparentes” e, portanto, ainda não se tem “clareza do tamanho do déficit” das contas públicas, dizem as pesquisadoras Renata Menezes e Lívia Reis à IHU On-Line, na entrevista a seguir, concedida por e-mail. Segundo elas, o resultado dos desvios públicos que vieram à tona nos últimos meses “se faz sentir de forma alarmante no atraso de três meses do salário do funcionalismo público, no sucateamento da UERJ, uma das principais universidades brasileiras, e no aviltamento do Hospital Pedro Ernesto”.
Diante da crise política, econômica e fiscal do Estado, elas questionam qual foi o “o custo financeiro e social” dos eventos realizados no Rio de Janeiro nos últimos anos, como a Jornada Mundial da Juventude, a Copa do Mundo, as Olimpíadas e as Paraolimpíadas.
Na entrevista a seguir, as pesquisadoras também comentam e avaliam os primeiros sete meses da gestão de Marcelo Crivella à frente da prefeitura municipal do Rio de Janeiro e frisam que “as peças do xadrez carioca são basicamente as mesmas, com algumas mudanças-chave”. De acordo com elas, “ainda que o slogan ‘cuidar das pessoas’ tenha dado o tom da campanha, Crivella assumiu o governo com um discurso de austeridade pautado, principalmente, pela acusação de déficit orçamentário que teria sido deixado pelo governo anterior”. Apesar disso, pontuam, “ao menos nesses primeiros seis meses, ele está sinalizando que vai priorizar investimentos em saúde e educação, ainda que de forma controversa”.
Na avaliação delas, o atual prefeito está “fazendo um poderoso trabalho de base”, que “não é noticiado pela grande mídia”, e tem assumido uma “postura paternalista conectada com a dimensão da responsabilidade e do trabalho a qualquer preço e a qualquer momento, preocupação única de Crivella em seus esforços por transformar o Rio na experiência-modelo do projeto da Igreja Universal do Reino de Deus - IURD e que pode ou não levar adiante tal projeto”.
Renata Menezes | Foto: Arquivo Pessoal
Renata Menezes é antropóloga, professora associada do Departamento de Antropologia do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ e coordenadora do Grupo de Pesquisa em Antropologia da Devoção (UFRJ/CNPq).
Lívia Reis | Foto: Arquivo pessoal
Lívia Reis é doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Universidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ e desenvolve pesquisa sobre a Igreja Universal do Reino de Deus - IURD em Moçambique.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Quais os rumos da política implementada por Marcelo Crivella nesses primeiros seis meses de governo? Quais foram os avanços e retrocessos?
Renata Menezes e Lívia Reis - Ao invés de falar em avanços e retrocessos, talvez seja mais adequado pensar em termos de continuidades e descontinuidades. Ainda que o slogan “cuidar das pessoas” tenha dado o tom da campanha, Crivella assumiu o governo com um discurso de austeridade pautado, principalmente, pela acusação de déficit orçamentário que teria sido deixado pelo governo anterior. Embora muitas pessoas perguntem “por onde anda Crivella?”, ao menos nesses primeiros seis meses, ele está sinalizando que vai priorizar investimentos em saúde e educação, ainda que de forma controversa. De janeiro até aqui, anunciou investimentos na educação municipal — a pasta com maior Orçamento entre as Secretarias, com R$ 6,5 bilhões —, promoveu mutirões de exames e cirurgias em hospitais para diminuição da fila do SISREG, angariou recursos federais para a Saúde, todas promessas de campanha. Essa postura pública mais atenta a problemas sociais, no entanto, está em sintonia com seus primeiros discursos políticos, pelos idos de 2003, quando se elegeu ao Senado pela primeira vez.
Como nos mostra a tese de Edlaine Gomes (2004), se Crivella justificou outrora sua entrada para a política a partir da preocupação com “questões sociais”, hoje ele afirma que a receita da prefeitura aumentou nos últimos anos, sem a contrapartida da redução das desigualdades sociais. O discurso é o mesmo. Calcando-se na denúncia de uma crise fiscal que justificaria políticas de austeridade, anunciou medidas populistas, como, por exemplo, diminuição do número de Secretarias e revisão de contratos de prestação de serviços pagos pela prefeitura, mas também descumpriu o Orçamento previsto para a Secretaria de Cultura, através do não pagamento de editais já aprovados, além de acenar para a possibilidade de falta de recursos para pagamento do funcionalismo municipal.
No entanto, sem que as contas públicas sejam transparentes, não é possível saber o que é real ou o que é estratégia política, posto que, também nesse período, Crivella assumiu muitos compromissos, tais como a retomada das obras da Transbrasil, implementação do projeto de municipalização do Porto do Rio, retomada do projeto de expansão do Parque de Madureira, municipalização dos Restaurantes Populares de Bonsucesso, Bangu e Campo Grande, autorizou Atos de Legalização Fundiária em favelas e implementou o Governo Itinerante, que levará o prefeito a todos os bairros da cidade para conhecer as principais demandas da população.
Somado a isso, Crivella também faz questão de assumir algum protagonismo em discussões sobre Segurança Pública, que não é da competência municipal, e que envolve, além de dinheiro público, parcerias privadas, como o projeto Centro-Presente, por exemplo, iniciado na gestão de Eduardo Paes. O projeto que, teoricamente, serve para coibição de roubos e furtos no centro da cidade, conta com financiamento da Fecomércio, isto é, investimento privado. Isso para não falar do projeto de estender o trabalho da Guarda Municipal - GM para o policiamento ostensivo, o que pode desembocar no armamento da GM. Quanto isso custa? Quem é a favor disso?
No mais, ainda que as Parceiras Público-Privadas - PPPs não sejam uma invenção do governo Crivella, elas são a menina dos olhos do atual prefeito. Crivella vendeu o camarote oficial da Prefeitura no Carnaval e reverteu o dinheiro para a Secretaria Municipal de Assistência Social para que fosse destinado aos 39 abrigos da Prefeitura que funcionam num regime de cogestão com Organizações Sociais - OSs. Também alardeou a cobrança das dívidas de Imposto sobre Serviços - ISS dos planos de saúde para, em seguida, sancionar um decreto que permite que essas dívidas sejam abatidas em até 70% por meio do oferecimento de serviços por essas empresas a pacientes da rede pública de saúde. Mas saúde não é atividade fim do Estado? Crivella se vangloria de ter barrado o reajuste das passagens, mas em nenhum momento propôs a abertura da “caixa preta dos transportes”, de forma que não é possível saber se foi dada alguma contrapartida aos empresários de ônibus para congelamento dos preços. Também agradou seus parceiros da Associação Comercial do Rio com a implementação da Rede Simples, divulgada por ele como uma forma de desburocratização para formalização de empresas.
Diante desse cenário, achamos que é preciso nos perguntar o que de fato está em jogo. O discurso que embasa seu governo é o da redução das desigualdades via investimento em direitos sociais básicos, sem, no entanto, deixar de atender aos interesses de seus parceiros e apoiadores, isto é, a interesses privados. Sabemos, hoje mais do que nunca, que as relações obscuras entre empresas e políticos não são novidade e muito menos exclusividade de seu governo. No entanto, esse discurso que transforma a participação empresarial em “parceria”, como se não houvesse contrapartida, aliado ao investimento nos serviços mais básicos para a população de baixa renda, tem impactos políticos a longo prazo.
O fato é que Crivella está fazendo um poderoso trabalho de base, a seu modo, e que, diferentemente de Doria, por exemplo, não é noticiado pela grande mídia. Crivella, por sua vez, não faz a menor questão de aparecer nesses espaços. Utiliza-se muito das redes sociais para divulgar suas ações na prefeitura, e ali não faz questão de manter uma separação entre o Prefeito e o crente. Não raramente sua página oficial no Facebook divulga conteúdos sobre o Crivella crente, ainda que na posição de bispo licenciado, e a todo momento há referências a Deus e a sua fé.
Dito isso, mais do que falar em avanços e retrocessos, entendemos que as peças do xadrez carioca são basicamente as mesmas, com algumas mudanças-chave. Políticas culturais já estão sofrendo impactos negativos sob a justificativa da crise fiscal, e a relação da Prefeitura com as organizações Globo também será modificada. Fora isso, o jogo continua sendo jogado, mas, dessa vez, com o objetivo maior de projetar Crivella nacionalmente. O caso do Rio de Janeiro é paradigmático e vai servir para descolar, ou não, o atual prefeito do estigma que acompanha “políticos evangélicos” de maneira mais geral.
IHU On-Line – O Estado do Rio de Janeiro e a capital carioca, a despeito dos expressivos investimentos do governo federal durante a realização da Copa do Mundo e das Olimpíadas, queixam-se da escassez de recursos. Em que pé estão as renegociações das dívidas da prefeitura e do estado e como estão os investimentos nas áreas básicas?
Renata Menezes e Lívia Reis - O acompanhamento que fazemos desse processo, enquanto antropólogas, diz respeito às transformações religiosas pelas quais a cidade tem passado nas últimas décadas, e de como isso tem afetado as expressões culturais que a caracterizam. De nosso ponto de vista, achamos necessário redefinir a questão, porque ela pode conduzir a uma argumentação equivocada. Não se trata de um problema meramente contábil, ou financeiro, de gastos a serem cortados e de dívidas a serem renegociadas; ou de uma sequência infeliz de maus e corruptos administradores. Trata-se, na verdade, de pensar o que é gasto público, o que é recurso público, quem tem direito de estabelecer as prioridades nesse gasto e quais elas devem ser. Isso nos três níveis: federal, estadual, municipal. Ou seja, a disputa é por definir (e ter o direito e/ou o poder de definir...) o que é importante para a vida social.
Veja bem: não estamos dizendo que não é preciso haver capacidade de gerir bem os recursos públicos. Estamos dizendo que é preciso unir a capacidade de gestão à sensibilidade social e aos compromissos democráticos. A conjuntura que vivemos tem transformado a palavra gestão quase que numa espécie de palavra mágica para a resolução de problemas, o que nos parece bastante próprio à ideologia neoliberal que está sendo incorporada e naturalizada em nossas práticas sociais, sem que dela nos demos conta. Hannah Arendt, em Eichmann em Jerusalém, já tinha alertado para os limites extremos em que gestores eficientes e empenhados no cumprimento de suas tarefas podem nos levar, se eles não tiverem comprometimento democrático. A responsabilidade fiscal tem que estar vinculada, ou melhor, subordinada à responsabilidade social.
Portanto, diante de sua pergunta, consideramos que seria preciso pensar primeiro onde e para que foram feitos esses expressivos investimentos do governo federal. Durante todo o processo de preparação da série de megaeventos que povoaram a cidade do Rio de Janeiro nos últimos anos — da Jornada Mundial da Juventude - JMJ, em julho de 2013, com a visita do papa, passando pela Copa do Mundo em 2014 (que, obviamente, aconteceu também em várias outras capitais), até chegar às Olimpíadas e Paraolimpíadas, uma série de grupos, organizações e movimentos lutou para colocar em discussão o custo financeiro e social desses eventos. Desde a problematização dos orçamentos constantemente atualizados (sempre para maior) das obras, que podiam ser indícios de corrupção, até manifestações contra o deslocamento das pessoas que moravam nos locais a serem “reformados e revitalizados”, na maior parte das vezes implicando em processos de gentrificação desses espaços; como também o questionamento da sustentabilidade dessas obras, do ponto de vista de energia, saneamento e acesso através de transporte público. Eram preocupações que remetiam aos temas do direito à cidade, do uso democrático do espaço público, do uso responsável de recursos, da democratização do acesso aos espaços e aos direitos. Claro, havia também a suspeita de desvio de verbas e corrupção (não foi à toa que dirigentes da Fifa foram presos no Brasil por agirem como cambistas na venda de ingressos — e foi muito interessante ver, diante dos que acusam o Brasil de ser alienado por causa do futebol, que justamente neste país tropical, eles fossem para a prisão...).
Nessa intensa movimentação, portanto, estava em jogo não apenas a discussão sobre a forma de financiamento desses eventos, mas sim um conjunto mais amplo de inquietações quanto à sua finalidade, como, por exemplo, em que medida um megaevento pode (ou não) se relacionar democraticamente com a vida de uma cidade e de como deve ser o gasto público do Estado para o benefício de sua população. Esse conjunto de questões já estava em fermentação nas Jornadas de Junho de 2013, que evidentemente não foram apenas pelo aumento de passagens de ônibus (cujo preço, entretanto, é um sacrifício diário para milhões de brasileiros), mas também por demandas por discutir em que tipo de cidade, país, planeta queremos viver no século XXI, apontando para a necessidade de produzir novos experimentos sociais e organizativos (ver, a esse respeito, as excelentes sínteses nos trabalhos dos professores Breno Bringel, Lia Rocha e João Marcelo Erhls). No caso específico da JMJ, procurou-se problematizar qual deveria ser o papel do financiamento público em um evento religioso, considerando-se a laicidade do Estado, o que é uma discussão bastante pertinente num país em que várias religiões têm usufruído de financiamento estatal, e não com as mesmas proporções.
No entanto, a grande mídia e outros agentes sociais (como o próprio poder público em seus diversos níveis) optaram por dar tratamento anedótico ou criminal a essas vozes dissonantes, muitas vezes qualificadas de derrotistas, subdesenvolvidas ou com “complexo de vira-lata” — para não falar das acusações de vandalismo, terrorismo etc. Essas acusações encontravam seu sentido no forte argumento de que seria importante a América Latina e, mais especificamente, o Brasil demonstrarem sua capacidade de organização desses eventos, reinserindo-se no cenário mundial numa posição mais igualitária. Dizemos forte argumento porque ele contém uma verdade parcial: realmente, há um tratamento diferenciado para os países de nosso continente no cenário mundial; realmente, o etnocentrismo é uma marca dos megaeventos.
No entanto, acreditamos que, justamente pela noção de que as verdades podem ser parciais — isto é, de que elas podem fazer sentido a partir de determinado ponto de vista, mas não necessariamente de todos os outros —, perdemos, pela polarização simplificadora entre ser pró e ser contra, sem que se abrisse uma ampla discussão a respeito, uma oportunidade histórica de discutir modelos de sociedade e modelos de desenvolvimento democráticos para o Brasil do século XXI.
No caso do Estado do Rio de Janeiro, as denúncias de licitações e terceirizações viciadas, de relações entre poder público e interesses (escusos) privados, têm marcado os governos do PMDB, e mesmo gestões anteriores. No caso dos governos mais recentes, de Sérgio Cabral e de Pezão, chega a ser surreal o que até agora conseguiu ser provado, levantado ou colocado sob suspeição. O resultado dos desvios públicos se faz sentir de forma alarmante no atraso de três meses do salário do funcionalismo público, no sucateamento da UERJ, uma das principais universidades brasileiras, no aviltamento do Hospital Pedro Ernesto. Duzentos mil funcionários, se multiplicarmos pelos membros de suas famílias... quantas pessoas nesse estado estão sem poder contar com o básico há meses? O impacto social é tremendo: famílias se desintegrando, pessoas desesperadas, os setores que prestavam serviços aos funcionários entrando em falência etc... O impacto cultural, científico, também. Talvez não estejamos nos dando conta que estamos deixando que o Governo do Estado do Rio de Janeiro nos diga que educação pública de qualidade, gratuita, não é importe e que ela é financeiramente impossível, embora, paradoxalmente, a universidade estadual esteja funcionando, e resistindo, graças ao empenho de um funcionalismo que está trabalhando sem receber. Um hospital como o Pedro Ernesto, também da UERJ, que atente pelo SUS, com qualidade, milhares de pessoas por ano... como calcular seu custo? Este deve se limitar a seu gasto, ou temos que contabilizar também sua importância na vida das pessoas que ele atende? Como se contabiliza isso?
Os fundos geridos pelo Estado são públicos, eles provêm de impostos, taxas e outros pagamentos feitos pelos cidadãos para que o Estado lhe forneça serviços, atuando, teoricamente, no sentido da justiça social. Se o caixa está minguado, que tal discutir com os cidadãos quais devem ser as prioridades? Mas, como já dissemos antes, é preciso salientar que no caso do Rio de Janeiro, as planilhas de contas tanto do governo estadual como municipal não são abertas ao público, não são transparentes. Então, não se pode ter clareza do tamanho do déficit e de suas causas. Há uma luta social, de alguns membros do legislativo, e de movimentos sociais, para que justamente essas planilhas sejam abertas. Enquanto isso, a afirmação de que o Estado está falido, precisaria ser sustentada pela abertura das contas, tanto quando ao gasto, como quanto à arrecadação.
O curioso é que, ao mesmo tempo que esses governos reduzem o gasto público em determinados setores, a mídia noticia que eles os mantêm em outros — como em isenções fiscais e em gastos em publicidade. Se é preciso cortar, o que cortar primeiro? Quais são as prioridades, e quem as elenca?
IHU On-Line – Recentemente Crivella anunciou o corte de parte de verbas destinadas ao Carnaval sob o pretexto de economia. Qual sua avaliação sobre a decisão do Executivo municipal?
Renata Menezes e Lívia Reis - Esse ato precisa ser considerado não apenas em seu conteúdo, mas também em sua forma. Da forma autoritária em que o corte foi feito, consideramos que foi um ato político, no qual a Prefeitura do Rio de Janeiro tentou deslocar o carnaval de sua posição na lista de prioridades municipais, invocando um argumento financeiro. A maneira em que o processo se deu nos diz muito de como a prefeitura pretende se relacionar com aquele que é não apenas “o maior espetáculo da terra”, mas uma manifestação cultural importantíssima da cidade, e que não está restrita ao sambódromo. A posição de desconsiderar o carnaval já tinha sido anunciada quando o prefeito não compareceu à entrega das chaves do Carnaval para o Rei Momo, em 24 de fevereiro de 2017. O corte financeiro seria, em nossa opinião, mais um instrumento de deslegitimação em um processo mais amplo.
Num vídeo lançado em sua rede social logo após o carnaval, por exemplo, Crivella usa uma justificativa pessoal para sua ausência do Carnaval. De acordo com suas próprias palavras, ele não teria sido sincero consigo mesmo e com os outros caso fosse ao Sambódromo, e sim um demagogo. Em seguida, se vangloriou de ter gasto seu tempo de descanso com trabalho. Enquanto todos estariam se divertindo, Crivella anunciou que visitou hospitais — incluindo aí as vítimas dos acidentes na Sapucaí —, fiscalizou obras, fez reuniões com seu secretariado. Mais uma vez, um discurso controverso e populista. Em primeiro lugar porque, como prefeito, não faz sentido justificar sua ausência numa festa que é um patrimônio cultural da cidade que administra a partir de algo “pessoal”.
Quem ocupa um cargo público deve respeitar e, sobretudo, prestigiar a parcela da população que gosta e vive disso. Depois, encampa um discurso de “trabalho” que encontra ressonância nos valores morais pregados pela Igreja Universal: razão ao invés de emoção, trabalho, empreendedorismo, foco e determinação. Ao colocar-se como exemplo e disseminar moralidades pregadas pela Igreja Universal por meio de seus discursos e práticas políticas, ao mesmo tempo em que minimiza a importância cultural do carnaval, Crivella mostra que o que de fato está em jogo nessa disputa é algo muito maior.
IHU On-Line – O governo municipal do Rio de Janeiro informou que R$ 13 milhões que seriam destinados ao carnaval serão investidos em creches. Todavia, segundo dados da pesquisa feita pela Empresa de Turismo do Município do Rio de Janeiro – Riotur, o evento movimentou R$ 3 bilhões. Diante da atual recessão e da escassez de recursos, como vê essa medida?
Renata Menezes e Lívia Reis - Do ponto de vista estritamente financeiro, se os dados estão corretos, a prefeitura estaria então dando um tiro no próprio pé, pois estaria deixando de arrecadar muito mais do que gasta, ou seja, estaria na verdade perdendo dinheiro. Além do mais, ao anunciar a medida, Crivella bateu de frente com atores importantes em sua campanha, tais como a Liesa, dirigentes de importantes Escolas de Samba e a Associação Comercial do Rio de Janeiro.
Porém, achamos que não é disso que se trata e, nesse sentido, consideramos que a oposição creche versus carnaval foi uma jogada de enxadrista, muito meticulosa. Quem pode ser contra creches? Construiu-se uma oposição de mestre, quase um xeque-mate, que coloca os que defendem o carnaval como “alienados”, “supérfluos”, “egoístas”, “infantis” etc. De volta a um certo moralismo dos anos 60, em que gostar de carnaval implicava ser considerado reacionário ou fora da realidade... Quando tanto já foi escrito e debatido sobre a importância do lúdico, da transgressão, da criatividade, do princípio carnavalesco como móvel da vida social, ficamos um tanto estarrecidas de que vários colegas comprem, sem questionar, essa versão de que o dinheiro vai para creches.
Mas de novo, voltamos a nosso ponto: com planilhas de contas fechadas, como saber para onde vai o gasto público e de que escassez de recursos se trata? Por que é o dinheiro do carnaval que terá que cobrir a despesa das creches, e não o dinheiro da publicidade da prefeitura? Quanto a prefeitura gasta mesmo em publicidade? Esse dinheiro, de fato, não poderia ser tirado de outro lugar? Como esse cálculo foi feito, levando em conta a “economia do carnaval” e os lucros por ele gerados? Qual o impacto do corte nessa economia, levando-se em conta não apenas o dinheiro, mas seu peso simbólico. Em nossa opinião, a promessa da Riotur de ajudar a reaver esses recursos junto aos setores privados gera contrapartidas óbvias, dentre elas a perda de autonomia das Escolas do Grupo A e, por parte das Escolas do Grupo de Acesso, a inviabilização dos desfiles. A quem interessa que as Escolas se vinculem cada vez mais a setores privados? O financiamento público não garante, justamente, a liberdade de criação da festa? E se os argumentos de escassez de recursos forem contrapostos pelos dados de que o carnaval arrecada mais do que gasta, a prefeitura vai tratar esse gasto como investimento? E qual a lista de eventos que será financiada pela prefeitura, em suas múltiplas secretarias e fundações, e com qual volume de recursos, para que possamos elencar prioridades? Quais eventos serão priorizados e quais não serão?
Uma prefeitura verdadeiramente democrática abriria suas contas para seus cidadãos e diria: “temos um problema financeiro: como podemos viabilizar a maior manifestação cultural de nossa cidade? Que tipo de ajuda a prefeitura pode dar para um acontecimento tão significativo para o Rio de Janeiro, para o Brasil, para o mundo, que é o carnaval carioca, que é ao mesmo tempo cultural, econômico, lúdico, artístico, identitário etc. Vamos dialogar e ver como viabilizar essa grande manifestação, que não está restrita ao sambódromo, que não está restrita às escolas de samba, mas que se tece de muitas formas e diz tanto sobre a importância do lúdico em nossa vida social. Vamos construir uma alternativa juntos”. Mas a proposta não nos parece que seja esta.
Claro que a transparência que estamos defendendo que a prefeitura tenha quanto ao uso de recursos públicos também se aplica às escolas de samba, quando elas utilizam esses mesmos recursos. O que elas captam na Lei Rouanet, o que elas recebem da prefeitura também deve passar por uma prestação de contas seguindo todos os padrões legais, de preferência tornada pública.
IHU On-Line – Como os diferentes grupos religiosos — católicos, evangélicos, umbandistas, entre outros — têm avaliado ou sido impactados pelas políticas de Crivella?
Renata Menezes e Lívia Reis - A pergunta sugere que as “políticas de Crivella” teriam um apelo religioso que impactaria outros grupos religiosos, quando isso não é, pelo menos por enquanto, algo explícito. Não do jeito que comumente se possa imaginar, isto é, a imposição vertical de uma “cristocracia iurdiana” ou de uma agenda conservadora contra a vontade de tudo e de todos. Estamos diante de movimentos muito mais sutis e marcados por mais ambivalências do que se pode imaginar. A campanha do Crivella, por exemplo, foi apoiada por muitos grupos religiosos, incluindo religiões de matriz afro-brasileira, mas, sobretudo, pela Igreja Católica, cujos interesses convergem com a Igreja Universal em muitos temas, além da Assembleia de Deus Vitória em Cristo, de Silas Malafaia.
Dom Orani Tempesta, cardeal-arcebispo do Rio, defendeu Crivella indiretamente durante a campanha para deslegitimar o candidato de esquerda, Marcelo Freixo. Praticamente voltou-se ao tempo da caça às bruxas onde “comunistas” deveriam ser excomungados da Igreja Católica. Dom Orani e Crivella estiveram juntos na homenagem feita a São Sebastião na Prefeitura, logo no início do mandato, e, a pedido também do arcebispo, Crivella recebeu um pedido para abertura de um Conselho de Refugiados.
No que diz respeito ao tema “religião”, mais especificamente, pensamos que o governo de um bispo licenciado da IURD vai servir, principalmente, para sacudir as estruturas da sempre naturalizada relação entre governos e Igreja Católica. Crivella já mostrou que não está disposto a passar por cima de todo e qualquer limite pessoal em virtude de seu cargo público, como vimos no fato do carnaval, e, numa cidade onde as principais festas e eventos, assim como seu principal símbolo, estão diretamente ligados ao catolicismo ou a religiões de matriz africana, tudo indica que o Rio pode se transformar, para o bem e para o mal, num caso paradigmático para se repensar os (falsos) limites entre religião e esfera pública.
IHU On-Line – Crivella parece se distanciar do perfil de seu antecessor Eduardo Paes. Que aproximações e distanciamentos são possíveis de se evidenciar em cada um desses personagens?
Renata Menezes e Lívia Reis - Ainda é cedo para uma comparação mais cuidadosa, afinal Eduardo Paes foi prefeito do Rio de Janeiro por dois mandatos (2009-2016) e Crivella tomou posse há sete meses. Mas enquanto Paes sempre se apresentou como um carioca “da gema”, conectado desde sempre às manifestações culturais da cidade, frequentador dos pontos tradicionais e preocupado em valorizar suas qualidades (inclusive patrimonializando-as), Crivella parece assumir uma posição mais contida, uma figura mais paternalista, dispondo-se mais a cuidar do povo do que a compartilhar seus momentos de lazer.
Acrescentaríamos, ainda, que a postura paternalista está conectada com a dimensão da responsabilidade e do trabalho a qualquer preço e a qualquer momento, preocupação única de Crivella em seus esforços por transformar o Rio na experiência-modelo do projeto da IURD e que pode ou não levar adiante tal projeto.
Ao mesmo tempo, Crivella, tal como Paes, mantém relações próximas com empresários como Boni, Medina, Ricardo Amaral, com a Associação Comercial do Rio de Janeiro, com líderes comunitários de áreas controladas por milícias, com figuras controversas como Rodrigo Bethlem. Foi apoiado por toda a alta cúpula do PMDB na Câmara nas eleições. De nosso ponto de vista, o distanciamento entre ambos é menor que parece e se dá, exclusivamente, por uma diferença de estratégia política.
IHU On-Line – O que a ascensão desses personagens religiosos na política revela sobre a atual conjuntura, no que diz respeito àquilo que é classificado como teologia da prosperidade e as votações como a da Reforma da Previdência e a Reforma Trabalhista?
Renata Menezes e Lívia Reis - Achamos que há um conjunto de afinidades eletivas entre (neo)pentecostalismo e neoliberalismo, e é disso que se trata. Da mesma forma que Max Weber identificara afinidades eletivas entre a ética protestante calvinista e as origens do capitalismo, talvez essa nova forma de cristianismo apresente afinidades com o neoliberalismo, e ambos se realimentem. Não estamos falando de uma relação de causa e efeito, mas do compartilhamento de alguns princípios, talvez de uma noção de pessoa comum, isto é, de uma ontologia compartilhada, o que provocaria uma espécie de potencialização mútua. Isso se vê muito claramente quanto à noção de empreendedorismo; e à noção de saúde e educação como um cuidado focalizado nos que precisam, e não como direitos da pessoa. Talvez o carnaval incomode tanto porque se trata de um gasto excessivo que não é em proveito próprio, não entra na lógica da aposta da teologia da prosperidade: ele é o desperdício da beleza efêmera, o desprendimento do sacrifício, ou o desregramento da brincadeira, aquilo que dentro da ótica neo-liberal/neo-pentecostal não faz sentido. E por isso se torna um inimigo privilegiado.
Ao mesmo tempo, percebe-se a influência religiosa de Crivella a partir de posicionamentos não necessariamente ligados a temas religiosos, mas a um ethos religioso assumido pelos crentes iurdianos: a valorização do trabalho, a noção de desafio, o sacrifício como oportunidade de superação, a valorização da razão e do empreendedorismo. Tudo isso está presente tanto na Igreja Universal quanto nas práticas do atual prefeito.
Há, portanto, uma convergência entre valores neoliberais e neopentecostais que, nesse momento, se aliaram na administração municipal carioca. Os impactos disso são previsíveis: enxugamento da máquina pública, desvalorização do público em detrimento de parcerias público-privadas.
Culturalmente, a valorização de moralidades bastante específicas, mas que estão presentes nos diferentes estratos da sociedade e podem forjar uma noção de pertencimento mais ampla que desemboca num projeto de nação calcada nesses valores. Mais que a imposição de um determinado tipo de cristianismo, o projeto de poder da Igreja Universal passa por aí.
IHU On-Line – Desejam acrescentar algo?
Renata Menezes e Lívia Reis - Que será preciso acompanhar de perto os entrelaçamentos que o governo Crivella está produzindo entre religião, cultura e política. Eles parecem estar apenas começando.
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Gestão Crivella e a experiência-modelo do projeto da IURD. Entrevista especial com Renata Menezes e Lívia Reis - Instituto Humanitas Unisinos - IHU