17 Abril 2011
“Não há uma crise no Movimento dos Trabalhadores Sem Terra”, diz o professor Bernardo Mançano Fernandes, em entrevista à IHU On-Line. A crise, para ele, está centralizada na pequena agricultura “em função do domínio do modelo na agricultura pelo agronegócio”. Em entrevista concedida por telefone, Bernardo fala sobre as perspectivas e a atual situação das organizações que se preocupam com a recriação do campesinato, entre elas o MST e a Via Campesina. “O modelo de acampamento, considerando o sofrimento das famílias, tem que ser repensado. O Bolsa Família permitiu o acesso de famílias mais pobres a algum tipo de renda. É evidente que, com isso, as pessoas não queiram continuar passando frio e fome à beira de estrada”, explicou.
Bernardo Mançano Fernandes é graduado em Geografia pela Universidade de São Paulo, onde também fez o mestrado e doutorado na mesma área. Recebeu o título de pós-doutor pela University Of South Florida (EUA). É, atualmente, professor na USP e na Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho – Unesp e professor-visitante na Universidad de Caldas (Colômbia), Universidad Nacional de Córdoba (Argentina) e Universidad Academia de Humanismo Cristiano (Chile).
Confira a entrevista.
IHU On-Line – O número de ocupações do MST tem caído nos últimos anos. A que pode ser atribuída essa redução?
Bernardo Mançano Fernandes – Há um conjunto de fatores. O primeiro deles é o aquecimento econômico do Brasil; o segundo, as políticas compensatórias, tipo o Bolsa Família; e o terceiro, a baixa renda das famílias assentadas. Hoje, a renda da maior parte dos agricultores familiares tem caído de maneira que é muito difícil convencer as famílias a participarem de ocupações.
IHU On-Line – Em sua avaliação, o MST está em crise como apontam alguns pesquisadores?
Bernardo Mançano Fernandes – Não. É importante entender o que significa crise. Essa expressão foi utilizada pelo jornal O Estado de São Paulo e reproduzida genericamente por todos. É importante entender que quem está em crise é, na verdade, a agricultura camponesa. Quer dizer, a pequena agricultura e as organizações que se preocupam com a recriação do campesinato e com o aumento do número de pequenos agricultores estão enfrentando dificuldades exatamente porque essa agricultura está vivendo uma crise enorme em função do domínio do modelo na agricultura pelo agronegócio. O agronegócio é hegemônico, determinando as políticas de crédito, assim como o modelo de desenvolvimento da agricultura e, assim, defende seus interesses e nada dos interesses dos pequenos agricultores. Enquanto isso, os pequenos agricultores não têm poder político para impor um modelo de desenvolvimento da agricultura, e o agronegócio acaba se apropriando da maior parte da riqueza produzida inclusive por esses agricultores. Eles estão vivendo numa situação de penúria, enfrentando dificuldades econômicas muito grandes porque recebem um preço muito abaixo daquele que custa a produção.
Como eles não têm preço que garantam a sua reprodução, a renda diminui. Hoje, para se ter uma ideia, 90% dos agricultores familiares estão enfrentando dificuldades econômicas enormes e dentro dessa porcentagem estão os assentados. Apenas 10% dos pequenos agricultores estão numa situação financeira “tranquila”. Então, diante disso, como podemos promover a luta pela terra e ocupações diante de uma crise econômica desse tamanho dentro de um processo de aquecimento da economia em que encontramos emprego e trabalho em outros setores da economia, principalmente nas grandes cidades? É isso que tem constituído a conjuntura econômica que temos vivido hoje.
Reduzir esse processo a uma crise do MST só pode ser feito se nos referirmos ao seguinte: o MST é hoje o principal movimento que se preocupa com a recriação da pequena agricultura ao lado da Via Campesina. A Via é a organização camponesa, hoje, que está querendo ampliar o número de agricultores no Brasil. Enfrenta, porém, uma dificuldade enorme ao se considerar a baixa renda que os agricultores recebem, embora sejam responsáveis por grande parte da produção de alimentos no país, como revelou o censo de 2006.
IHU On-Line – Como avalia a atual pauta do MST? Podemos dizer que ela está menos política e mais econômica?
Bernardo Mançano Fernandes – Se analisarmos todas as pautas do MST, veremos que eles sempre trabalharam numa perspectiva territorial que engloba o político, o econômico, o cultural, o ambiental... Não dá para reduzir ao político e ao econômico apenas. O MST tem que se preocupar com o desenvolvimento territorial. Portanto, tem que se preocupar também com a produção, com a educação, com a moradia, com a saúde. Essa perspectiva só política ou só econômica é coisa do agronegócio; é uma perspectiva de quem está preocupado com o mercado e só com o enfrentamento para destruir o outro. O MST, quando analisamos a pauta política, está preocupado em desenvolver outros assentamentos, a pequena agricultura e os territórios onde estão estabelecidos.
IHU On-Line – Sendo o campo o setor econômico que mais perde pobres, que passam para a atual classe média baixa em função do Bolsa Família. Essas pessoas beneficiadas pelo plano estão numa situação estável?
Bernardo Mançano Fernandes – O modelo de acampamento, considerando o sofrimento das famílias, tem que ser repensado. O Bolsa Família permitiu o acesso de famílias mais pobres a algum tipo de renda. É evidente que, com isso, as pessoas não queiram continuar passando frio e fome à beira de estrada. Quando pensamos em acesso à terra e em reforma agrária não precisamos pensar em sofrimento. Precisamos pensar numa perspectiva de política pública em que o governo tenha um modelo de desenvolvimento para o Brasil a fim de aumentar o número de produtores, considerando as crises alimentares que temos no mundo. Nós estamos vivendo um momento em que precisamos pensar tudo isso partindo da questão do aumento da renda dos pequenos agricultores, porque é isso que vai viabilizar o interesse da famílias a participarem da reforma agrária. O emprego na cidade não vai dar conta de empregar todo mundo. Temos muito mais condições de fazer a distribuição da população no território brasileiro através da reforma agrária com a criação da pequena propriedade, da pequena agricultura. E isso precisa ser feito com infraestrutura. Os acampamentos foram as formas que os movimentos criaram na inexistência de outras possibilidades. Hoje, o Brasil mudou e exige outras condições.
IHU On-Line – As mudanças na economia agrária brasileira, com o crescente fortalecimento do agronegócio, podem levar a luta pela reforma agrária para o isolamento?
Bernardo Mançano Fernandes – Pode, dependendo de qual modelo de desenvolvimento que queremos. Se quisermos um modelo de desenvolvimento para o Brasil baseado na produção de commodities através do monocultivo de produção em grande escala para exportação, acabaremos com a reforma agrária. Se nos basearmos na produção de alimentos para a economia local a partir da diversidade regional, precisaremos da reforma agrária.
IHU On-Line – Então, que modelo de desenvolvimento o atual governo quer?
Bernardo Mançano Fernandes – O governo Dilma defende o modelo do agronegócio, mas dialoga com o modelo da agricultura camponesa. Então, ela não é contra a reforma agrária, mas também não vem investindo neste sentido. Visto que o governo não quer enfrentar o agronegócio, ele acaba não realizando a reforma agrária. Deste modo, quando o MST ocupa terra e cria uma pressão sobre o governo, este vai lá e desapropria. Essa é a conjuntura que temos hoje.
IHU On-Line – O capitalismo brasileiro tem ainda algum interesse na reforma agrária ou ela se tornou prescindível?
Bernardo Mançano Fernandes – O capitalismo brasileiro não tem interesse na reforma agrária. Quem tem que ter interesse na reforma agrária é a sociedade e os movimentos camponeses. O capitalismo brasileiro jamais vai ter interesse porque ele quer o território todo para ele.
IHU On-Line – Quais são as perspectiva da questão agrária no governo Dilma Rousseff?
Bernardo Mançano Fernandes – A perspectiva é de fortalecimento do agronegócio e diálogo com a agricultura familiar. O fortalecimento da agricultura familiar só vai ser possível se correlacionarmos diversas forças dando poder aos pequenos agricultores para que possam impor a esse governo um modelo de desenvolvimento que defenda a reforma agrária.
IHU On-Line – Os movimentos de sem terra podem voltar a ganhar força? Que fatores vão permitir isso?
Bernardo Mançano Fernandes – Eles podem voltar a ganhar força se mudar a conjuntura política. Se tivermos, por exemplo, uma nova crise econômica e uma liberação de áreas de terras. Se as exportações caírem, por exemplo, o agronegócio acaba abrindo mão do interesse pela terra e o governo pode voltar a pensar na reforma agrária por desapropriação. Nesse caso, isso agradaria ao agronegócio, como aconteceu no final da década de 1980.
Se a conjuntura econômica for favorável ao capital, o campesinato sofre. Se for desfavorável ao capital, o campesinato pode ter mais perspectiva de ampliar seus territórios. É importante deixar claro que a conjuntura econômica favorável ou não ao capital não significa que ela seja favorável ou desfavorável para a sociedade. Muitas vezes, o capital pode estar em crise, mas a sociedade pode tirar proveito disso graças ao pouco poder de exploração que o capital tem sobre ela.
Hoje, os assentados não têm uma forma de organização política para impor ao governo uma política pública. Tanto que apresentam pautas de reivindicação. Eles vão lá e pedem, não mandam. Os assentados e pequenos agricultores não têm poder como o agronegócio. Esse, sim, impõe sua pauta de desenvolvimento para a agricultura ao governo.
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O MST não está em crise, mas, sim, os pequenos agricultores. Entrevista especial com Bernardo Mançano Fernandes - Instituto Humanitas Unisinos - IHU