O estado do Rio Grande do Sul - RS registra taxa de 1,9 leitos hospitalares SUS para cada mil pessoas, de acordo com os dados disponibilizados pelo DataSUS, sistema do Ministério da Saúde, tendo como referência o mês de dezembro de 2014. A taxa para a Região Metropolitana de Porto Alegre – RMPA é de 1,8.
Dos 22.203 leitos hospitalares do SUS no estado do Rio Grande do Sul, 75,6% estão sob administração Privada. Na Região Metropolitana de Porto Alegre o percentual é de 53,4%.
A tabela 03 apresenta os leitos hospitalares por Tipo de Prestador, podendo ser Público, Filantrópico ou Privado para a RMPA. Constata-se que 48% dos leitos SUS estão presentes em instituições filantrópicas.
Os dados aqui apresentados foram sistematizados pelo Observatório da Realidade e das Políticas Públicas do Vale do Rio dos Sinos – ObservaSinos, programa do Instituto Humanitas Unisinos – IHU.
Estes indicadores foram objeto de análise de Jean Jeison Führ, mestrando em Ciências Sociais pelo PPG em Ciências Sociais da Unisinos.
Eis a análise.
Antes de analisar a quantidade de leitos hospitalares que o SUS disponibiliza na Região Metropolitana de Porto Alegre – RMPA algumas considerações importantes devem ser realizadas. A primeira consideração corresponde à quantidade de leitos categorizados como sendo “não SUS”; e a segunda consideração que cabe lembrar é que leitos não hospitalares também existem e merecem o seu destaque.
É óbvio que a categorização entre “leitos SUS” e “leitos não SUS” indica, para fins analíticos, o percentual de leitos administrados pelas instituições privadas com ou sem fins lucrativos em comparação com os leitos administrados pelas esferas públicas estatais. Entretanto, devemos pontuar que, mesmo que tal distinção seja assumida pelas autoridades sanitárias, todo leito deve ser considerado um “leito SUS” de um modo geral. Tal afirmação decorre do fato de que o Ministério da Saúde e todos os demais aparatos sanitários das esferas federais, estaduais e municipais têm responsabilidade de fiscalização sobre os leitos oferecidos pelas instituições privadas com ou sem fins lucrativos. Para além dessa fiscalização das autoridades sanitárias estatais (atribuição esta exercida por aparatos do SUS) perante as instituições privadas, não devemos esquecer que as mesmas instituições obtêm consideráveis isenções fiscais ou subvenções do dinheiro público sem necessárias estipulações no que se refere à disponibilidade de leitos e demais estruturações do atendimento em saúde. Portanto, até que ponto estes “leitos não SUS” são de fato mantidos pelo capital privado ou mantidos através das isenções fiscais que não se revertem aos cofres públicos e de subvenções do dinheiro público mal estipuladas?
Quanto à questão dos leitos não hospitalares, autores como Ivan Illich em sua clássica obra “A expropriação da saúde: nêmesis da medicina” (1975), assim como toda uma bibliografia em Saúde Coletiva, onde os conhecimentos advindos das Ciências Sociais se inserem indiscutivelmente, demonstraram que a iatrogenia hospitalar – ou seja, o estado ou efeito de delegar a preponderância de existência dos leitos hospitalares em detrimento de outros espaços onde o atendimento em saúde também ocorre – somente revela um dos aspectos do atendimento em saúde que se deve levar em conta. Portanto, temos que considerar que os números apresentados não computam os leitos ambulatoriais de repouso e observação que nos níveis de atenção do SUS estão circunscritos na atenção secundária (Unidades de Pronto Atendimento, Pronto Atendimentos, Ambulatórios e demais unidades de especialidades que não configuram espaços hospitalares de atenção terciária, mas sim secundária, e por isso não são computados como “leitos SUS” ou “leitos não SUS” nestes dados em questão).
Atendo-se à análise dos dados propriamente dita, depois de realizadas estas importantes considerações, podemos pontuar que no SUS, em comparação com sistemas de saúde que se aproximam da experiência brasileira, como é o caso dos sistemas canadense e inglês de saúde, a redução no número de leitos hospitalares é uma projeção adotada.
Apesar de os números regionais brasileiros serem inferiores (na RMPA 1,8 leito para cada 1.000 habitantes e no RS 1,9 para cada 1.000 habitantes) em relação aos números nacionais canadenses (2,7 leitos para cada 1.000 habitantes) ou ingleses (2,9 leitos para cada 1.000 habitantes), eles podem ter diminuído em relação a períodos computados anteriormente tendo em vista que esta é a decorrência do que vem ocorrendo no setor. Tanto o Canadá quanto o Reino Unido diminuíram a disponibilidade de leitos hospitalares justamente porque reestruturaram suas atenções básicas/primárias por própria orientação do Banco Mundial na década de 1990.
No Brasil a situação ainda é mais específica, porque, diferente do Canadá e do Reino Unido, nosso país conta com três níveis de atenção (primária, secundária e terciária) ao invés de apenas duas (primária e secundária) como é o caso canadense e inglês. Através de algumas políticas estatais (como a recente implantação das Unidades de Pronto Atendimento - UPAS ou processos mais antigos como a reforma psiquiátrica que instituiu os Centros de Atenção Psicossocial - CAPS), a reformulação do setor secundário, que até então era muito frágil ou vinculado de forma amalgamada junto às instituições hospitalares, liberou vários leitos hospitalares para atendimento terciário.
Com a reconfiguração da atenção secundária em saúde no Brasil, vários atendimentos em saúde que eram até então realizados na atenção terciária hospitalar passaram a ser realizados junto aos leitos não hospitalares, ou melhor dizendo, leitos extra-hospitalares (para utilizar a linguagem acadêmica) ou leitos ambulatoriais (para se utilizar da linguagem ministerial), conforme são computados nos dados divulgados pelo DataSUS.
Além da reformulação estrutural da atenção secundária que vem ocorrendo nos últimos anos, procedimentos cirúrgicos como o da vasectomia e outros que antes eram realizados somente na atenção terciária dos hospitais, atualmente ocorrem junto à atenção secundária, desafogando leitos prioritários.
Dados também indicam que as atividades de prevenção e promoção da saúde que vêm sendo desenvolvidas pelas equipes dos Agentes Comunitários de Saúde do Programa Saúde da Família (mesmo enfrentando gargalos de cobertura junto às regiões metropolitanas) diminuíram diretamente o número de internações cardiovasculares junto aos hospitais.
O processo de desinstitucionalização da Saúde Mental, que vinha ocorrendo desde a década de 1970 e que se intensificou nos últimos anos, também auxiliou na liberação de vários leitos hospitalares (aproximadamente 17% do total de leitos hospitalares disponibilizados) para o atendimento real em assistência de urgência e de emergência junto aos hospitais. Os cidadãos que hoje necessitam de acompanhamento em saúde mental são primeiro encaminhados aos CAPS de seus municípios, com um grau de resolutividade muito maior devido à proximidade dos vínculos familiares e domésticos, o que dificilmente ocorria quando eram internados em hospitais e manicômios (hospitais psiquiátricos) distantes de suas residências.
De um modo geral, percebemos que, enquanto as diferentes formas de institucionalização do atendimento hospitalar estatal sofreram alterações em sua composição em função de processos estruturais como os citados acima, a institucionalização privada do atendimento em saúde pelas entidades beneficentes sem fins lucrativos continuam sendo as maiores operadoras junto ao nível terciário de saúde, tanto no Rio Grande do Sul como um todo, como na Região Metropolitana de Porto Alegre - RMPA especificamente. Tal situação não estranha, tendo em vista que os recursos públicos do SUS no que concerne à Média e Alta Complexidade (conhecida pela sigla MAC) abocanham em média aproximadamente 80% dos mesmos. Os interesses “não lucrativos” das entidades filantrópicas se hegemonizaram enquanto disponibilidade de recursos para atendimento em saúde que as diversas institucionalizações estatais não conseguiram estruturar desde que o SUS surgiu através das Leis 8080/1990 e 8142/1990 até hoje. Esta é a verdadeira iatrogênese hospitalar, em que altos recursos são investidos para atender a assistência médica hospitalar fornecida por entidades beneficentes privadas em detrimento da promoção/prevenção não hospitalar fornecida em aparatos públicos da atenção básica/primária do SUS.