“Estamos em um momento extremamente crítico, pois não há uma crise conjuntural, e sim uma crise estrutural. É um momento novo do capitalismo, que é abrangente e alcança todos nós e atinge as relações de trabalho”. A frase dita pela economista e coordenadora da Pesquisa de Emprego e Desemprego - PED do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos - DIEESE, Lúcia dos Santos Garcia, reflete sua exposição sobre as políticas públicas de trabalho, realizada durante uma oficina promovida pelo Observatório da realidade e das políticas públicas do Vale do Rio dos Sinos - ObservaSinos, programa do Instituto Humanitas Unisinos - IHU.
O evento foi realizado na quinta-feira, 01/06, na Sala Ignacio Ellacuría e Companheiros e trouxe para o debate as realidades do trabalho, emprego e desemprego no contexto da crise econômica capitalista vivida no Brasil há mais de 40 anos. Lúcia Garcia também expôs a trajetória das políticas públicas de trabalho e trouxe uma reflexão sobre o desmanche que vem ocorrendo sobre os direitos e políticas do trabalho. Sobre isso, ela apresentou o conjunto de políticas na área econômica, sendo que boa parte delas incide sobre o volume de emprego e a qualidade de emprego, mas há um corpo de políticas especializadas para a área do trabalho.
Ao iniciar sua apresentação, Lúcia destacou a importância de se conhecer as diferenças entre as políticas públicas de mercado de trabalho e aquelas com incidência no nível de emprego. As políticas públicas com incidência no nível de emprego, de acordo com Lúcia, podem ser divididas entre: Gestão macroeconômica (monetária, cambial, fiscal), Políticas Sociais (saúde, educação, assistência social), Políticas de Renda e Tributárias, que são ferramentas que não se encontram ao alcance dos governos municipais e estaduais, mas em nível nacional.
Segundo a economista, as políticas públicas de mercado de trabalho incidem diretamente nos espaços de trabalho. “No conjunto da política pública de uma maneira geral, há um segmento de políticas muito especializado, que são políticas de mercado de trabalho. Efetivamente, o alcance dessas políticas se faz no espaço de oferta e demanda de Força de Trabalho. Elas são capazes de influenciar, de uma maneira geral, as outras políticas, mas elas são políticas clássicas de ação direta sobre o trabalho”, revela. A exemplo destas políticas que são limitadas ao mercado de trabalho, Lúcia cita: Estabelecimento de remuneração básica (Salário Mínimo), Previdência Social, Legislação trabalhista, Sistema de Relações de Trabalho e o Sistema Público de Emprego.
Entre as políticas públicas voltadas ao trabalho, Lúcia apontou um subconjunto, que historicamente denomina e conforma o sistema público de emprego. “O sistema público de emprego é baseado em três ações fundamentais, embora possa ter associação com outras políticas que são transitórias, complementares ou utópicas. As três ações são: seguro-desemprego, que tem como objetivo a proteção do trabalhador; a intermediação, que tem como função a reabsorção rápida de desempregados; e a qualificação profissional, que serve como fomento à qualificação continuada”.
Lúcia também apresentou a evolução do capitalismo no mundo, com a intenção de demonstrar como a economia chegou ao ponto em que estamos. “Compreendo que, para entender os limites das políticas públicas na área do trabalho, é preciso percorrer e olhar de uma maneira mais ampla essa organização capitalista. O capitalismo é muito recente, não é uma forma natural de organização social, é uma forma datada historicamente, que iniciou por volta de 1780 e teve seu crescimento a partir da primeira e da segunda revolução industrial”.
De acordo com a economista, as crises capitalistas não são de escassez, e sim de abundância de mercadorias. Ela exemplifica isso através da grande crise que ocorreu em 1875 e da depressão que marcou a década de 1930. “Quando faltar comida não vai ter crise capitalista. Quando faltar habitação não vai ter crise capitalista. Só vai haver crise capitalista quando tu tiveres um mar de mercadorias e uma inexistência de mercado para absorvê-las. Quando a crise não tem solução, ela pode ser extremamente disruptiva do modelo social”, ressalta.
A economista do DIEESE afirmou que a grande crise que desencadeou a Primeira e a Segunda Guerra foi percebida por todos os envolvidos, direta ou indiretamente, e, partir disso, começou a se desconstituir uma ideia de liberalismo econômico que estava imposta e se colocando um conceito de fortalecimento da regulação das relações contratuais. “A própria crise econômica leva a um colapso tal, que você tem que começar a abandonar a economia e a ideia de que o mercado resolve tudo e botar uma mesa de negociação no meio disso. A grande mesa de negociação constituída neste processo foi a própria Organização Nacional do Trabalho - OIT. Ela surge regulando o tamanho da jornada de trabalho, a necessidade de ter agências públicas de emprego e de haver um sistema de seguridade da renda para os trabalhadores, a regulação do trabalho noturno para homens, mulheres e jovens e a proteção para a maternidade”.
A partir disso, bem como de outros fatores, começou a se constituir a Sociedade Salarial entre o pós-guerra e com seu auge nos anos 1970. Dentre as medidas tomadas para as políticas do trabalho, Lúcia destaca a Convenção nº 88 da Organização Internacional do Trabalho - OIT, que ocorreu em 1948 e que definiu que todos os Estados devem dar atenção intersetorial das políticas para o mercado de trabalho. “A sociedade salarial está baseada em um grande acordo, que tem três grandes linhas: legislação das condições básicas de contratação da força de trabalho, políticas públicas de proteção social e do trabalho e direito de representação, organização e de pacto pela democracia”. Segundo Lúcia, o momento atual demonstra que estas regras do acordo não estão sendo seguidas. “Se eu faço um acordo deste com uma pessoa e ele se rompe, o que acontece? A pessoa vai embora e não volta mais. O que acontece hoje é a desvalorização da sociedade do trabalho e a desconstituição deste acordo. Como eu trabalho com isso, e, principalmente, como eu trabalho com isso se eu não me pergunto como esses acordos se deram e como eles se desmancharam ao longo do tempo?”, indaga.
No Brasil, conforme Lúcia, os sinais da crise do modelo de desenvolvimento capitalista aparecem desde os anos 1970, com o esgotamento do sistema de regulação do trabalho no núcleo produtivo, onde os acordos anteriores não satisfazem, com queda do consumo e aumento da insegurança produtiva e desvalorização do trabalho, através da redução do emprego e da participação dos salários no produto social. “Com as crises, começa a haver menos emprego, menos trabalho. As empresas passam a ter menos lucro e o Estado recolhe menos impostos. Toda vez que o sistema começa a ter esse esgarçamento, o governo começa a fugir para a forma mais líquida da riqueza: o dinheiro”. Essa fuga para o dinheiro, de acordo com Lúcia, é a forma mais segura utilizada pelos governos e a moeda começa a existir em abundância, criando produtos financeiros e uma complexidade do mercado financeiro. Essa crise, que vem se prolongando há 40 anos, é reeditada em 2008, acompanhada da redução do espaço produtivo, esmagamento da lucratividade e financeirização.
Para Lúcia, a financeirização é alimentada pela desvalorização do trabalho, pois requer a restrição das políticas sociais e de proteção social, redução da liberdade de organização, presença sindical e dos espaços democráticos. Isso faz com que a sociedade viva uma realidade do trabalho com muitas alterações do Sistema Público de Emprego, trazendo para a população um diagnóstico conservador, a responsabilização do trabalhador pelo desemprego, reinserção do trabalhador em condições desfavoráveis e precárias. Essas novas modalidades vêm para substituir o emprego padronizado, na tentativa de se moldar rapidamente à instabilidade econômica.
Isto pode ser percebido através do fomento da auto-ocupação, nos casos de empreendimentos. Para Lúcia, esse modelo pode provocar uma reflexão sobre o trabalho independente em duas vertentes. “Um lado desse trabalho não se dá, necessariamente, sobre a organização produtiva de matriz capitalista e de matriz de reprodução das relações de poder dentro da fábrica. Há uma tendência a isso, vindo à linha da matriz de economia solidária. Mas pelo outro lado nós também temos uma saída bastante despolitizada, isenta de uma discussão de caminho de futuro econômico”. Ela acredita que ações, como feiras de economia solidária, por exemplo, necessitam estar articuladas com um projeto societário de desenvolvimento.
Ainda no mercado de trabalho brasileiro atual, desde 2011 até hoje, temos um conflito distributivo deflagrado. Lúcia afirma que a partir de 2014 existe um ataque muito forte do financeirismo ao resultado eleitoral do Brasil. Com isso ocorre crescimento do desemprego e destruição de postos de trabalho, declínio dos empregos protegidos/formais, elevação do tempo de desemprego e queda nas rendas do trabalho e massa de rendimentos. “Vivemos um processo da economia brasileira que vem de modo exógeno. Ela estava em um processo de estagnação, mas, após esse ataque de 2014, chegamos às situações em que nos encontramos hoje. O tamanho do mercado de trabalho no Brasil está bastante estabilizado, mas o emprego, a ocupação, está caindo. Ou seja, as taxas de desemprego estão aumentando – por exemplo, os dados do emprego em Porto Alegre, no mês de abril, caíram 5,5%. O maior problema disso é que essa queda vem de uma outra queda, de 7,3%, que ocorreu em 2016. Outra coisa que estamos vendo é que o desemprego vem crescendo de uma maneira muito larga, ou seja, ele está se tornando de longa duração e, se isso acontece, o desemprego é avassalador”, revela.
A economista do DIEESE também afirmou que as crises são extremamente prejudiciais às mulheres, pois é onde se perde mais o espaço que foi conquistado. Isso foi evidenciado através da análise Mulheres e Trabalho: evidências da desigualdade no Vale do Sinos, que apontou números reveladores em relação aos dilemas históricos e contemporâneos da desigualdade de gênero presentes na sociedade. Ela trouxe, ainda, a discussão sobre as reformas previdenciária e trabalhista, que compõem o quadro atual da política brasileira e apontam a ruptura com as políticas locais de trabalho e desenvolvimento.
Clique aqui para assistir o vídeo completo da oficina Trabalho e as Políticas Públicas, que foi transmitida ao vivo e gravada no canal do Youtube do Instituto Humanitas Unisinos. Recentemente o ObservaSinos também produziu notas sobre as diferentes realidades do Vale do Sinos, como a "Transparência de dados governamentais", "São Leopoldo e Vale do Sinos têm saldo positivo no mercado de trabalho formal em março" e "As realidades das mulheres no Vale do Sinos".