Por: Ricardo Machado | 13 Setembro 2016
Um dos grandes desafios do mundo contemporâneo é que ele não mais “cabe” em si próprio. As sociedades hegemônicas, do modo como funcionam em termos sociais, políticos e econômicos, requerem muita energia, o que leva a uma intensiva exploração ambiental. O problema é que a extração ambiental provocou transformações das quais as pessoas não são capazes de se adaptar. Do apocalipse literal da racionalidade contemporânea, a construção do Comum emerge como alternativa.
“Uma coisa se torna um bem comum se decidirmos politicamente, se definirmos que algo é um bem comum, que nunca é privado ou público. Essa transformação depende de uma decisão política e comunitária que transforma um determinado ‘bem’ em comum e em recurso ao mesmo tempo”, explica Gaël Giraud, professor doutor e pesquisador em Economia, durante sua conferência Financeirização e suas estruturas a transição ecológica para uma sociedade dos comuns, que integra a programação do IV Colóquio Internacional IHU - Políticas Públicas, Financeirização e Crise Sistêmica.
Gaël Giraud explicando as engrenagens da economia (Foto: Cristina Guerini Link/IHU)
Na perspectiva de Gaël, o Estado deve ser protagonista na construção de novas sociabilidades baseadas no Comum, mas isso deve ocorrer de modo que se possa garantir uma organização que parta da própria sociedade civil. “O Estado tem um papel fundamental a desempenhar na construção do Comum. Isso só poderá ser feito se o Estado criar condições para que a sociedade civil, ela própria, possa criar esses comuns. Isso porque o Estado é incapaz de imitar a sociedade civil”, propõe o conferencista. Nesse sentido, a renda universal tem um papel fundamental. “O trabalho pode ser tornar um bem comum a partir da renda básica, pois se eu não preciso vender meu trabalho para sobreviver, eu mudo radicalmente a relação com minha produção e com os meus colegas”, avalia.
As engrenagens do sistema econômico mundial “justificam-se” como propulsores sociais, mas na prática funcionam mais aos moldes dos sistemas de travas. “O argumento dos economistas dos bancos é que cada vez que o banco central cria um euro, criam-se x euros na economia real, mas isso não é verdadeiro. O neoclassicismo econômico não explica o mundo atual. A ideia de que a geração de moeda é sempre inflacionista é falsa”, coloca Gaël como o primeiro paradoxo.
O segundo ponto contraditório está relacionado à dívida pública. “A explosão da Dívida Pública, que aumentou muito desde 2008, não aumenta os juros e, além disso, diminui o spread (a diferença entre o preço de compra e de venda dos produtos)”, pondera.
A falácia do crescimento a qualquer custo é outro ponto muito falado, mas mal explicado. “Sabemos que há 40 anos o único meio de criar emprego é o crescimento do Produto Interno Bruto - PIB. Porém, não há relação direta entre desemprego e PIB, porque pode haver um índice do PIB que aumenta e do emprego que cai, assim como o contrário, que ocorreu nos EUA em 1991, quando eles retomaram o crescimento do emprego, mesmo não crescendo o PIB”, sugere o professor ao apontar um terceiro paradoxo.
O maior paradoxo, no entanto, é que os processos de financeirização a que a economia foi submetida não salvam nem a economia nem quem aposta nos ativos financeiros. “A pessoa que compra ativos e faz isso via financiamento bancário espera que o preço aumente no futuro. No entanto se os juros para pagamento sobem eles precisam vender os papéis. O problema é que é preciso pagar a dívida da economia monetária com a renda da economia real e em algum momento as pessoas se tornam incapazes de pagarem os débitos”, esclarece Gaël.
Gaël Giraud em conferência no IHU (Foto: Cristina Guerini Link/IHU)
“No momento que os investidores estão endividados e precisam recuperar a liquidez para pagar a dívida, os ativos caem e entramos na deflação. Foi isso o que aconteceu nos EUA, em 1930, no Japão, em 1990, e agora na Europa. E o que causa isso não é dívida pública, mas a dívida privada”, provoca. Todavia, a única forma de sair desse ciclo que escravização imposta pela dívida não é por meio da austeridade, mas pelo seu contrário o investimento público. “O único meio de sair desse ciclo é que haja um ator social que continue gastando. Mas qual o único ator que pode fazer isso, adiar o pagamento sem morrer? É o Estado”, responde.
Um dos efeitos práticos desta lógica econômica é que ela tende a jogar a população a um espaço sem horizontes. “A extrema direita e a população está crescendo em um marasmo econômico sem horizontes, muito similar a década de 1930 na Alemanha. Sabemos o que aconteceu e foi um horror”, aponta.
“Precisamos pensar modelos econômicos que não passe por crescimento. A deflação é uma doença que vem da crise financeira, pois ela nos impede de encontrar os bons sinais (a necessidade de transformação) sobre a rarefação dos produtos naturais”, critica. “Em 1972 foi entregue um relatório ao Clube de Roma com o seguinte título: Limites para o crescimento. Esse relatório continha grandes modelos e simulações dos parâmetros para as décadas seguintes. A equipe de Meadowss identificou dez grande cenários, dos quais dois concluíam sobre uma colapso para a economia. Os economistas do mundo todo desprezaram o estudo, mas os dois cenários que correspondem à trajetória seguida pelo planeta são, justamente, os que levam ao colapso”, relembra o economista.
O fato concreto é que a desregulação climática oriunda do aquecimento global resultante de uma economia baseada em um gasto intensivo de energia atinge diretamente as populações mais pobres do Sul global. Some-se a isso o fato de que 80% da energia consumida no mundo é originária de combustíveis fósseis. Adicione as novas estratégias de extração de gás de xisto, com fracking, que, ainda por cima, usa água potável no processo. O cenário não tem outra saída senão a incapacidade do mundo de se sustentar. “Mesmo que consigamos ser virtuosos, nada impede que tenhamos problemas grandes no final do século, porque os impactos ambientais têm uma grande inércia”, analisa Giraud.
No fundo, nunca corremos tanto sem saber exatamente onde queremos chegar. Somos como a Rainha de Copas de Lewis Caroll, sem nunca parar de correr, mas sempre sem sair do lugar. Crescer é decrescer. Os horizontes de saída, como sugere Gaël Giraud, ao que parece, estão na construção do Comum.
Gaël Giraud é conhecido como o “jesuíta que enfrenta os bancos”, é economista, diretor de pesquisa do Centre National de la Recherche Scientifique – CNRS, membro do Centro de Economia da Sorbonne e da Escola de Economia de Paris e professor associado na ESCP-Europe. Como economista faz parte do conselho científico do Laboratório sobre Regulação Financeira e do Observatório Europeu Finance Watch. Além disso, leciona no Centre Sèvres de Paris e é membro do conselho científico da Fundação Nicolas Hulot para a Natureza e o Homem.
O trabalho de Gaël Giraud pode ser visto em seu site www.gaelgiraud.net. É autor de vários livros, entre eles, Illusion financière (Paris: Les Éditions de l’Atelier, 2014), Le facteur 12. Pourquoi il faut plafonner les revenus (Paris: Carnets Nord-Montparnasse éditions, 2012) e Vingt propositions pour réformer le capitalisme (Paris: Ed. Flammarion, 2009).
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Comum – A força da transição, da transformação, da salvação - Instituto Humanitas Unisinos - IHU