12 Mai 2016
Os últimos: uma categoria da humanidade, que deveria ter um lugar de privilégio, terra sagrada, na vida de cada verdadeiro discípulo do Evangelho. Poderíamos arriscar algumas perguntas: vamos ao encontro da sabedoria dos últimos? Colocamo-los na cátedra nos nossos conselhos pastorais, nas nossas assembleias eclesiais? A quem damos a voz nos nossos grandes congressos, nas imponentes e faraônicas manifestações eclesiais? Encontramos presentes os seus rostos? Somos tomados pelo temor de que, na ausência dos seus rostos, em uma medida não indiferente, Deus também se esconde?
A reflexão é do teólogo e padre italiano Angelo Casati, em artigo publicado na revista Esodo, n. 4, de dezembro de 2015. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
O divino e os rostos. Obrigado pela conjunção – pelo "e" da conjunção entre o divino e os rostos. Eu sofri longamente, muito longamente, pela esquizofrenia de um divino que me era contado como tomar distância do humano, e a sede do rosto de Deus contada como purificação da sede do rosto das mulheres e dos homens do meu tempo, e isso nos dias em que eu andava cada vez mais me apaixonando. Apaixonando-me pelos rostos. Vinha a noite, e eu escrevia:
Os rostos dos amigos
são como Terra Prometida:
poucos metros
de terra preta e fecunda
que eu conheço palmo a palmo,
como a ramificação
das veias em uma mão.
Os rostos dos meus amigos
são como o espelho do tempo.
Eu os interrogo em silêncio à noite:
nos olhos, fixou-se
e ainda vive, toda,
a aventura de um dia:
ainda perseguem
incômodas imagens,
como bitucas
que ninguém ousa apagar
em cinzas de indiferença.
Difunde-se na prega
dos olhos
a luta dos desesperados,
o amor dos tolos,
este nosso esperar
contra toda esperança.
Nos rostos dos meus amigos
percorro de novo a cada dia
o sendeiro inquieto
das nossas perguntas
sem resposta.
Única certeza
- entre areias e desertos
de escolhas provisórias -
o Cristo Presença e Ausência,
próximo como a carne
de um esposo
e esperado na noite
com tochas
que fadigam ao vento
quase como se estivessem
prestes a morrer.
E nós, amigos?
Nós, chamados
a arriscar a noite,
a decidir no escuro
- quando fraca é a luz -
por um caminho ou por outro.
Por que não falas, ó Senhor?
Nossa nova condição
é não saber e esperar
contra toda esperança.
Rostos dos meus amigos
rostos sem presunção,
imagem
da esperança dos tolos.
Rostos dos meus amigos,
a terra do amanhã.
A convivência com Paola criava conjunção de divino e de rostos. Fascinava-me e me intrigava a imagem de um Deus que se deixava tomar pelo estupor diante daquilo que Lhe tinha escapado das mãos: "E viu que era bom, belo". Ele, no auge do estupor, quando conseguiu criar um homem e uma mulher: "E viu que era muito bom, muito belo". Parte d'Ele habitava aquele rosto de mulher, aquele rosto do homem, os tinha criado à Sua imagem, segundo a Sua semelhança. E a palavra imagem, na língua antiga, não fala de uma fotografia, mas de uma conservação da presença, da presença do divino no rosto.
Às vezes, o afresco falava nas suas cores. Às vezes, infelizmente – e foram séculos! – o afresco era esquecido ou pesado com sobrecarga. Houve dias em que nos esquecemos do afresco das origens, que falava de rostos habitados. Novos mestres, chamados do espírito, me falavam de um Deus de quem se apaixonar, contemplar, e de mulheres e homens a se relativizar, de se tirar os olhos.
Também houve dias em que, no seminário – e eu estremecia – me traziam como exemplo de virtude São Luís Gonzaga, pelo fato de que não olhava a sua mãe no rosto, por ser mulher. Parecia-me pura esquizofrenia. Como se amar a vida fosse tirar algo de Deus. Um desapaixonamento chamado virtude.
Eu pensava na encarnação. Não era a superação da esquizofrenia, entre Deus e o homem? Deus se fez homem. Onde você encontra Deus? Onde Ele foi se esconder? Na carne, na história dos humanos. Ele não é contra a vida, Ele está na vida.
Hoje, diante da pergunta sobre aonde Deus foi se esconder, acende-se no meu coração a indicação de uma preferência que urge como um aviso. A não se esquecer. Sob a pena de perder o compromisso. Ele já ressoa insistentemente no primeiro Testamento, em que Deus, em páginas e páginas, é evocado como o defensor do órfão, da viúva, do estrangeiro, daqueles que trazem escrita na pele uma ausência que grita, ausência de defesa, de afetos, de terra. Deus conjugado com eles.
Onde Deus se escondeu? Ao meu coração, retorna um conto, o conto bíblico que narra sobre Moisés que, nos arredores de um monte, para além do deserto, viu uma sarça que ardia e não se consumia. Moisés se aproximou, mas Deus lhe falou a partir da sarça, pedindo-lhe para parar: "Não se aproxime mais! Retire as sandálias dos pés, porque o lugar em que tu estás é terra santa!". Portanto, deveríamos nos deixar conduzir pela suspeita de que o lugar que pisamos é sagrado, mistura de humano e divino. Onde Deus se escondeu?
Um midrash da tradição rabínica tenta explicar a imagem da sarça que arde e não se consome. Eis como ele a interpreta: "O Santo, bendito seja, disse a Moisés: 'Você não sente que eu estou na dor, assim como Israel está na dor? Veja de que lugar eu falo com você: dos espinhos! Se assim se pode dizer, eu compartilho a dor de Israel'. Por isso, também se lê (Is 63, 9): "Em todas as suas angústias ele foi afligido'" (Êxodo Rabá 2, 5).
Onde está o divino, onde Deus se escondeu? Fiel à sua tradição, com a sua vida, ainda antes que com as suas palavras, Jesus ensinou onde Deus se esconde hoje, onde ele mesmo está presente hoje: "Então o Rei dirá aos que estiverem à sua direita: 'Venham vocês, que são abençoados por meu Pai. Recebam como herança o Reino que meu Pai lhes preparou desde a criação do mundo. Pois eu estava com fome, e vocês me deram de comer; eu estava com sede, e me deram de beber; eu era estrangeiro, e me receberam em sua casa; eu estava sem roupa, e me vestiram; eu estava doente, e cuidaram de mim; eu estava na prisão, e vocês foram me visitar'. Então os justos lhe perguntarão: 'Senhor, quando foi que te vimos com fome e te demos de comer, com sede e te demos de beber? Quando foi que te vimos como estrangeiro e te recebemos em casa, e sem roupa e te vestimos? Quando foi que te vimos doente ou preso, e fomos te visitar?' Então o Rei lhes responderá: 'Eu garanto a vocês: todas as vezes que vocês fizeram isso a um dos menores de meus irmãos, foi a mim que o fizeram'" (Mt 25, 34-40).
Parece possível entender o porquê da preferência de Deus e, consequentemente, o porquê da opção preferencial pelos pobres – pelos pobres de todas as categorias – a que somos chamados urgentemente pela Palavra de Deus. Uma opção a que o Papa Francisco nos chama muitas vezes.
Por que a preferência? Certamente não é porque Deus tenha preferência entre pessoas, mas porque, desses Seus filhos, Ele vê os rostos violados, profanados, empobrecidos da Sua imagem divina. Outros têm meios e estratagemas para se defender, têm acólitos e aliados que os defendem. Estes não. Deus os defende, defendem-nos os verdadeiros crentes em Deus. E quando acontece que quem os defende são os ateus, Deus se sente defendido pelos ateus. E quando acontece que os crentes não os defendem, Deus se sente abandonado e repudiado pelos crentes. Paradoxos da história!
Há uma conversão a ser realizada. Uma conversão de olhares e de coração. A quem normalmente vão os nossos olhares? Quem tem um lugar – e deveria ser um lugar de preferência – nos nossos olhares? E nas nossas assembleias pastorais? E nos nossos programas pastorais? Alguns de nós talvez se lembrem com comoção que a Didascália dos Apóstolos (século III) prescrevia no capítulo 12 que quem devia acolher os pobres, homens ou mulheres que fossem, nas assembleias devia ser o próprio bispo, e não os diáconos, e que o bispo também devia procurar um lugar para eles e que, se não fosse encontrado, devia ceder o seu e sentar no chão junto aos seus pés. "Isso é um sonho? – perguntava-se anos atrás o teólogo Pe. Pino Ruggieri – ou, ao contrário, são uma traição da eucaristia aquelas celebrações que repropõem, na disposição dos participantes e no estilo da participação, as hierarquias mundanas, mas também apenas o educado estar cada um por conta própria?".
Talvez não é verdade que reconsagramos o pão do Senhor todas as vezes em que nos deixamos arrastar pelo gesto, o último que o Senhor nos deixou como mandamento, naquela Sua última ceia, o gesto do servo que se inclina para lavar os pés cansados? E, portanto, remetidos também nós aos pés, empoeirados de fadigas, das mulheres e dos homens com quem caminhamos, no desejo de levantá-los dos cansaços e de elevá-los novamente à dignidade?
Um olhar de preferência aos seus rostos. Um olhar marcado pela ternura. Porque não basta ver. O sacerdote e o levita da parábola também viram, mas passaram adiante. Ao contrário do samaritano, que viu e sentiu as entranhas se revolucionarem dentro de si por causa da compaixão.
Existem modos e modos de ver os sofrimentos da humanidade, e há modos e modos de falar a respeito, nas nossas homilias e nos nossos encontros. Posso ver e posso falar sem "tocar", sem "deixar-me tocar" por aquilo que vejo, por aquilo de que se está falando. Posso olhar e falar com os olhos secos. Ou posso umedecer os olhos. Há um modo separado, profissional, asséptico de olhar e de falar. Posso olhá-lo como um caso a se resolver, como um caso que, se você lhe der atenção, rouba o seu tempo, um caso que, de algum modo, cria desconforto para você ou o contagia. Também há categorias hoje que nós suspeitamos de contágio, chamamo-las sumariamente de "irregulares", trazem feridas devastadoras para a alma, exclusões que são mortes civis. Talvez, o sacerdote e o levita tinham uma pureza a proteger, quem sabe, em vista de certas celebrações no templo! Eles tinham uma sagrada justificativa para "voltar-se para o outro lado".
Quantas vezes não paramos, invocando uma não oportunidade. Uma não oportunidade de acordo com as convenções codificadas. Mas uma oportunidade de acordo com o Evangelho. No dia 10 de julho de 2015, em Santa Cruz de la Sierra, Bolívia, falando de rostos aos movimentos populares, Francisco, o bispo de Roma, dizia: "Quando olhamos o rosto dos que sofrem, o rosto do camponês ameaçado, do trabalhador excluído, do indígena oprimido, da família sem teto, do migrante perseguido, do jovem desempregado, da criança explorada, da mãe que perdeu seu filho em um tiroteio porque o bairro foi ocupado pelo narcotráfico, do pai que perdeu sua filha porque foi submetida à escravidão; quando recordamos esses 'rostos e esses nomes', estremecem as nossas entranhas diante de tanta dor e nos comovemos... Porque 'vimos e ouvimos' não a fria estatística, mas as feridas da humanidade sofredora, as nossas feridas, a nossa carne. Isso é muito diferente da teorização abstrata ou da indignação elegante. Isso nos comove, nos move e buscamos o outro para nos mover juntos. Não se compreende essa emoção feita ação comunitária unicamente com a razão: ela tem um plus de sentido que só os povos entendem e que dá sua mística particular aos verdadeiros movimentos populares".
Descobrir o divino nos rostos significa, em certa medida, também, se perder. Perder-se contemplando – mesmo que através de uma fina fissura. Perder-se contemplando o além que habita os rostos. Algo que excede, algo que faz a dignidade daquele rosto, que, às vezes, foi curvado em um nome, em um gênero, em uma idade, em uma categoria, em uma profissão, em uma cultura, em uma religião. Se você se perder com os olhos no além que o habita, você toca o divino. Um além que se torna alimento para você. Muitas vezes, eu paro para pensar e também para agradecer pelos rostos. Eles foram a minha riqueza, o meu alimento.
O que eu sou, em grande parte, eu devo a eles, ao além que os habitou. Se você se perder nos seus rostos, os crucificados da história, que na melhor das hipóteses são considerados como objeto a ser cuidado, são arrancados das suas periferias para reencontrar dignidade: de objeto, tornam-se sujeitos, protagonistas, portadores de dignidade e de riqueza, criaturas que podem dar, podem hospedar, podem ensinar.
Como não lembrar da mulher do Evangelho que Jesus, no fim da sua vida pública, convida a olhar? Quase como se nos dissesse: "Olhem para ela, aprendam com ela". É intrigante pensar que, no fim do Evangelho, Jesus deixa como herança um rosto. De uma mulher, viúva e pobre. Na sua pobreza, ela deixou escapar duas moedinhas para o tesouro do templo, era o que ela tinha para viver. E Jesus a coloca na cátedra, enquanto derruba outros das suas solenes e altivas cátedras; ele acabou de dizer: "Tenham cuidado com os doutores da Lei. Eles gostam de andar com roupas compridas, de ser cumprimentados nas praças públicas; gostam dos primeiros lugares nas sinagogas e dos lugares de honra nos banquetes. No entanto, exploram as viúvas e roubam suas casas, e para disfarçar fazem longas orações. Por isso eles vão receber uma condenação mais severa" (Mc 12, 38-40).
Do Evangelho, vem uma consigna, a de reconduzir da terra do exílio aonde foram deportados, das periferias da sociedade onde foram marginalizados, dos silêncios em que foram calados, os últimos da terra. Os últimos que, para o Evangelho, são os primeiros: aqui está a revolução do Evangelho, negada ou incompleta. Os últimos que Jesus defendeu às custas da morte, restituindo-lhes aquela dignidade de que muitas vezes eram ilegalmente expropriados. Os últimos, os esquecidos, engolidos pelas névoas da nossa galopante indiferença, nas nossas enregelantes leis de exclusão, exclusão ilegal em humanidade.
Os últimos, uma categoria da humanidade, que deveria ter um lugar de privilégio, terra sagrada, na vida de cada verdadeiro discípulo do Evangelho. Poderíamos arriscar algumas perguntas: vamos ao encontro da sabedoria dos últimos? Colocamo-los na cátedra nos nossos conselhos pastorais, nas nossas assembleias eclesiais? A quem damos a voz nos nossos grandes congressos, nas imponentes e faraônicas manifestações eclesiais? Encontramos presentes os seus rostos? Somos tomados pelo temor de que, na ausência dos seus rostos, em uma medida não indiferente, Deus também se esconde?
Uma revolução? Incompleta ou nem sequer iniciada? Entreveem-se inícios – e nem sequer tão tímidos, no alto, que mais alto não se pode –, quase como um sinal para toda a Igreja e não apenas para a Igreja. Talvez estas minhas palavras – as minhas muitas palavras – podem eficazmente ser encerradas em uma única imagem, a dos 150 desabrigados em visita aos Museus Vaticanos e à Capela Sistina no dia 26 de março de 2015, a convite do Papa Francisco. Oferecer uma janta, tudo bem! Mas oferecer uma visita aos museus e à Capela Sistina, com guia de especialistas? É um gesto que reivindica dignidade de olhos e de inteligência para aqueles que nós chamamos de "mendigos". Dignidade, inteligência, capacidade de desfrutar a beleza, um rosto!
Surpreendentemente, o papa apareceu no meio da visita deles, apertou as mãos de cada um, disse-lhes: "Bem-vindos. Esta é a casa de todos, é a casa de vocês. As portas estão sempre abertas para todos". Os seus olhos! Os seus olhos enquanto os olha. Ele os vê como que perdidos em um ícone, quase como se estivessem no limiar. No limiar do divino. Um convite a uma parada.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
O divino e os rostos dos últimos. Artigo de Angelo Casati - Instituto Humanitas Unisinos - IHU