25 Fevereiro 2016
"Precisamos redescobrir o que é essencial ao modo de viver cristão, reinventar os modos de ritualizá-lo e reformular o que aqueles ritos significam em termos que sejam fiéis tanto ao ensinamento de Jesus como a uma experiência de vida conforme a tal ensinamento", diz Joseph Martos, autor de vários livros e artigos sobre os sacramentos. O presente artigo é baseado na pesquisa publicada no livro Deconstructing Sacramental Theology and Reconstructing Catholic Ritual (Wipf and Stock, 2015). (Desconstruindo a Teologia Sacramental e reconstruindo o ritual católico, em tradução livre).
Artigo de Joseph Martos, publicado por National Catholic Reporter, 20-02-2016. A tradução é de Benno Dischinger.
Eis o artigo.
Nos primeiros dois séculos do cristianismo, a teologia se assentava na experiência. As palavras usadas mais tarde para referir-se a coisas situadas fora do campo da experiência eram tentativas originais de falar de coisas das quais os fiéis de Jesus faziam experiência. Por exemplo, quando Paulo escrevia sobre a justificação pela fé, não estava falando do modo de se por em forma com Deus crendo em Cristo. Estava falando como fazer, sim, que a própria vida fosse orientada pelo crer que o que Jesus ensinava é verdadeiro. Quando o livro dos Atos fala de ser salvos através do batismo, não pretende lavar o pecado através de um rito, mas ser salvos do egoísmo através da imersão numa comunidade de amor recíproco.
Pesquisadores que estudam outros documentos antigos, como “O ensinamento dos doze apóstolos” (com frequência chamado Didaché, da palavra grega que significa ensinamento) descobrem que estes escritos eram também tentativas de dizer claramente aquilo que os seguidores de Jesus experimentavam nas suas vidas. Mas, no terceiro século as coisas começaram a mudar. Com o tempo, a experiência que estava por trás dos primeiros escritos foi esquecida. Os escritos eram reconhecidos como preciosos e chamados de Sagradas Escrituras.
Os intelectuais cristãos do terceiro século, chamados apologetas, procuraram explicar a sua fé ao povo no vasto mundo pagão que suspeitava que os seguidores de Jesus fossem membros de um culto perigoso.
Um apologeta, Justino, comparou a refeição da comunidade cristã a um sacrifício no templo, onde os pagãos compartilhavam a comida na presença do seu deus, para mostrar que os cristãos eram religiosos também se não adoravam no templo. Mas outros apologetas começaram a falar de sua fé como um conjunto de crenças antes do que de um modo de viver. As palavras começavam a ser desconectadas da experiência.
No quarto século, Constantino quis unificar o império Romano com uma só religião, e assim legalizou e promoveu o cristianismo. Quando os cristãos começaram a viajar livremente através do império, descobriram que povos em regiões diversas tinham diversas teologias. Ao invés de unir o império de Constantino, os cristãos discutiram entre si e o dividiram ainda mais.
Constantino reuniu todos os bispos na sua vila em Nicéia, e os obrigou a permanecer ali enquanto não produzissem um documento sobre o qual todos pudessem estar de acordo. Resultou disso o Credo de Nicéia, uma declaração de fé que não dizia nada sobre o modo de viver segundo o exemplo de Jesus, mas falava somente de Deus e da Igreja. A primeira remoção da teologia da experiência da vida cristã estava completa.
Na Idade Média a tentativa dos imperadores de evitar o desmoronamento do império faliu e no quinto século a metade ocidental caiu diante dos invasores bárbaros do norte. Os assim chamados séculos escuros duraram até o X século. O pensamento teológico era bloqueado, o povo devia lutar para sobreviver. A vida da Igreja, ao contrário, evoluía e prosperava. A elaborada liturgia eucarística foi reduzida a uma missa que podia ser dita por missionários que levavam a fé às tribos que estavam se estabelecendo no continente, e era definida como um sacrifício, embora ninguém se recordasse por que.
O batismo tornou-se um breve rito realizado sobre criancinhas numa igreja ou sobre adultos convertidos num rio. A crisma podia ser dada por um bispo a cavalo a crianças que eram erguidas para que ele as tocasse. Foi introduzida a confissão privada por monges para as pessoas que sentiam a necessidade de ser asseguradas sobre o perdão de Deus.
As núpcias se tornaram cerimônias em igreja para serem um reconhecimento público do matrimônio. A ordenação se transformou numa série de ritos para aprendizes que aprendiam como ser clérigos enquanto passavam através de uma série de ordens sacras. A unção dos enfermos começou como um serviço às pessoas doentes, mas em ausência de medicina moderna se tornou um rito chamado extrema unção.
No século XI o caos tinha diminuído. Estava-se melhor, a agricultura prosperava, o comércio se expandia, as cidades cresciam, eram construídas catedrais e fundadas escolas. Os monges desviaram a sua atenção da cópia dos antigos manuscritos ao seu estudo. A filosofia e a teologia renasceram. Entre outras coisas, os estudiosos dirigiram a sua atenção aos ritos religiosos, especialmente aos sacramentos.
Como o pão e o vinho se transformavam no corpo e no sangue de Cristo? Por que o batismo e a crisma podiam ser recebidos uma só vez? Como atuavam os sacramentos da penitência e da extrema unção? Quais eram os diversos poderes de padres e bispos? Por que o elo do matrimônio era indissolúvel?
Mas os estudiosos não se davam conta que grande parte de sua linguagem teológica era já algo de removido da vida. Pensavam que salvação significava ir ao paraíso, que os dons do Espírito Santo não eram sentidos e vivenciados, que os pecados eram remetidos também se eram cometidos de novo, que o elo do matrimônio era indissolúvel, que os poderes dos padres não eram correlatos com o ministério sacerdotal, e que a extrema unção podia ser recebida por pessoas que não eram mais conscientes.
Não viam nada de incorreto numa missa que era pronunciada por um padre usando palavras que o povo não podia escuta e muito menos entender e que prestava atenção somente quando era soada uma campainha. De muitos modos, o ministério sacerdotal se transformava numa magia sacramental na tarda Idade Média, mas as autoridades da Igreja repetidamente recusavam exigências para uma reforma, até o século XVI, quando metade da Europa se convertera ao protestantismo.
O Concílio de Trento reformou o sistema sacramental, eliminando a maior parte das práticas supersticiosas, insistindo que os bispos fossem verdadeiros pastores de sua grei e que os padres fossem preparados em seminários. Do século XVI à metade do século XX a prática sacramental católica e a teologia sacramental católica foram uma o reflexo da outra. O caráter batismal e o caráter da ordenação explicavam por que os católicos jamais deixavam a Igreja e por que os padres não deixavam jamais o ministério.
A eucaristia era realçada durante a missa e colocada num ostensório para a exposição do Santíssimo Sacramento, e era recebida só raramente, em geral após uma sincera confissão dos pecados a um padre. O elo indissolúvel do matrimônio explicava por que os católicos não se divorciavam jamais. A crisma e a extrema unção não tinham efeitos visíveis, mas os católicos acreditavam confiantemente que fosse bom que a primeira fosse recebida na adolescência e a segunda antes da morte. A Igreja católica permaneceu medieval na forma e no modo de pensar até boa parte do século vinte.
O Vaticano II e o período subsequente
No Concílio Vaticano II os bispos católicos de todo o mundo solicitaram um ‘aggiornamento’ [uma atualização] das práticas sacramentais da Igreja. Historiadores e liturgistas recuperaram as formas primitivas da missa e de outros ritos que se tinham perdido nas épocas obscuras – coisas como orar na língua do povo, receber a comunhão sob a espécie do pão e do vinho, repensar a relação entre pecado e confissão, e restituir a unção ao contexto do ministério aos enfermos.
Inesperadamente, a unidade de prática e teologia começou a dissolver-se. O povo deixou de confessar-se regularmente. Os padres começaram a deixar o presbiterado e o número dos seminaristas se reduziu. Os católicos casados começaram a divorciar-se em número crescente e até a redesposar-se sem esperar a anulação.
O principal efeito da crisma pareceu ser aquele de fazer abandonar a Igreja. Até o batismo não era mais uma garantia que o povo permanecesse católico, e sequer cristão, dado que aqueles que deixavam a Igreja talvez se tornavam agnósticos ou ateus, hebreus ou muçulmanos.
Alarmados por esta aparente defecção, os Papas João Paulo II e Bento XVI insistiam numa estrita adesão a regras eclesiásticas, reafirmando as doutrinas tradicionais, reprimindo o dissenso e negando qualquer ulterior desenvolvimento na prática sacramental, como permitir aos diáconos a unção dos enfermos ou aos padres de se desposarem.
Mas, as doutrinas tradicionais não correspondem mais à experiência contemporânea dos católicos em termos de pertencimento, de matrimônio e de ministério, para não falar de seu sentido do pecado e de sua experiência da enfermidade. Até o culto católico não é mais sentido como nos dias da missa em latim e do canto gregoriano, e o precedente forte sentido da presença de Cristo na eucaristia é difícil de recuperar.
Como no terceiro século, há uma disparidade crescente entre a teologia e a experiência, só que hoje a teologia é duplamente removida da vida. O ensinamento oficial sobre a missa e sobre os sacramentos só é desconectado da vida cotidiana do povo, mas com frequência também é desconectado da experiência do culto do povo. Para muitas pessoas, a liturgia não é a fonte primária de seu nutrimento espiritual, nem o momento culminante de sua semana.
No período do Vaticano II, os pensadores católicos como Edward Schillebeeckx, Karl Rahner, Bernard Cooke e Louis-Marie Chauvet procuraram interpretar os sacramentos de modos mais próximos à realidade contemporânea. Cinquenta anos após, no entanto, ao seu trabalho não é prestada grande atenção porque ele sofria de um fatal defeito.
Ao invés de refletir sobre as experiências dos ritos de culto, eles refletiam sobre as doutrinas sacramentais da Igreja e procuravam traduzi-las em categorias de pensamento derivadas do existencialismo e da fenomenologia, da psicologia e sociologia da religião, e até da filosofia pós-moderna.
Todavia, sendo ligados às doutrinas medievais, estes teólogos deviam explicar por que o batismo é permanente, como a crisma dá força espiritual, por que a confissão é necessária, como a unção ajuda os enfermos, por que o matrimônio é indissolúvel, e por que o presbiterado é para sempre.
Mas, estas ideias não correspondem mais ao mundo habitado pela maioria dos católicos, para os quais as teologias contemporâneas são removidas da vida real precisamente como a teologia escolástica que haviam esperado substituir.
Existe um modo para sair da confusão atual? Existe, mas não é nem uma reafirmação dogmática do passado nem uma queda no relativismo cultural. Precisamos redescobrir o que é essencial ao modo de viver cristão, reinventar os modos de ritualizá-lo e reformular o que aqueles ritos significam em termos que sejam fiéis tanto ao ensinamento de Jesus como a uma experiência de vida conforme a tal ensinamento.
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Uma dupla remoção: eis porque frequentemente os nossos sacramentos não estão conectados com a nossa vida real - Instituto Humanitas Unisinos - IHU