18 Fevereiro 2016
"Sem desejarmos aqui levantar falsas profecias, lamentavelmente parece que ainda haverá muito mais desigualdade a ser gerada e perpetuada no seio de um sistema capitalista que valoriza a mercadoria, não as pessoas (exceto as que possuem elevado poder de compra)", escreve Marcus Eduardo de Oliveira, economista e ativista ambiental.
Eis o artigo.
À semelhança dos mais sérios problemas ambientais, a crise de civilização (confluência de todas as outras crises) parece ser fruto do descompasso e da perda de noção do lugar que ocupamos junto à natureza, desde que herdamos do século XVI os ensinamentos de Francis Bacon, que enxergava a natureza como uma “prostituta de todos”, seguido por René Descartes, o qual preconizava que “o homem deveria dominar, apossar e ser soberano do mundo físico”.
Desde a formação dos primeiros núcleos populacionais, por volta do ano 8.000 a.C, obtemos da natureza o indispensável para nossa sobrevivência, no entanto, não tratamos a relação homem-natureza com acuidade; ao contrário, na natureza interferimos de modo a desequilibrá-la, quer pela extração descontralada de recursos naturais, quer pelo acúmulo e despejo de rejeitos e poluição gerados.
Pelo paradigma dominante da cultura tecnocientífica, de igual modo somos dominados pela prevalência do interesse individual, sempre situado acima do coletivo. Dessa maneira, lamentavelmente, muitos seguem subjugando a natureza, à lá orientação da filosofia decartiana, fazendo assim jus a separação homem-natureza, base da filosofia do sistema social de Bacon.
Pelo fato de a humanidade estar dissociada da natureza, coube para muitos a tarefa de desvalorizá-la, a ponto de não haver, sequer, devida preocupação com o esgotamento atual dos principais serviços ecossistêmicos.
Separados do “mundo natural”, restou à humanidade mergulhar de cabeça no “mundo material”. Assim, em pouco tempo, o “ter” conquistou privilégio sobre o “ser” e, desde então, é a conquista material, grosso modo, que determina o status social.
Dominados por um fetichismo consumista sem precedentes, não raras vezes a civilização de hoje tende a achar normal que tudo se transforme em mercadoria. Condicionados ao consumo, conduzidos pelo fascínio da moda e do “moderno”, os vorazes consumistas não percebem com clareza a prática da obsolescência programada, e assim tudo aquilo que tem preço, e é ditado pelo marketing, passa a comandar suas ações.
Com isso muitos desaprendem a olhar para o “valor” - não no sentido monetário - das coisas; uma vez que, para os consumistas de plantão, importa mais a etiqueta, a grife de sucesso. Seduzidos, pois, pela indústria da publicidade que recomenda a todo instante a prática do “compre mais”, o que se presencia é a segregação daqueles que têm dos que não detém poder de compra.
Consoante a isso, é consensual afirmar que falta à civilização um projeto ético de igualdade, de humanização, firmando as bases de uma economia de partilha, de comunhão, baseada na cooperação (que soma e inclui), e não na competição (que divide e exclui).
De igual modo, falta à civilização desenvolver uma íntima relação de harmonia, de parceria e de convivência fraternal com todos os elementos da natureza, da maneira ensinada por Francisco de Assis, nas primeiras décadas do século XIII.
O que predomina atualmente é o modelo de frenética produção e consumo nascido da Revolução Industrial que desembocou, logo a seguir, na Revolução Científica e Tecnológica.
Eficiência ambiental, desde essa época, se tornou um conceito herético, à medida que lucro e produtividade passaram a ser as palavras de ordem, pouco importando se isso custa – no sentido de desgaste e depleção – a dilapidação dos recursos da natureza.
Num mundo marcado por abusivas formas de desigualdade sócioeconômica, na total impossibilidade de universalizar o excesso de bens produzidos, é aviltante pensar que a medida (indicador) de felicidade “encontrada” por uma parte da civilização (os 20% dos mais abastados) é ter mais bens, é adquirir, comprar e acumular, enquanto metade exata da população mundial encontra-se à margem de qualquer possibilidade de consumo, mesmo de itens básicos à sobrevivência.
Uma vez que essa civilização tem permitido o predomínio do mercado de consumo sobre as relações sociais, torna-se comum confundir necessidades com desejos. Por isso, seduzidos pelo canto da sereia, muitos acreditam que consumo em excesso é sinônimo de bem-estar.
O que esse modelo econômico faz conosco? Nos devora por dentro, deixando em todos nós o sentimento de que artificializamos o mundo, desde o momento em que o mercado de consumo, direta e indiretamente, criou condições para nos mercantilizar.
É chover no molhado afirmar que esse sistema econômico baseado na mercantilização de tudo é irracional, no entanto, nossa civilização tem sido completamente incapaz de dar o grito de alerta, livrando-se das amarras dessa sociedade de consumo.
De modo semelhante, incapazes de proporem uma radical ruptura, os governos mundiais, tanto os de “direita”, quanto os de “centro-esquerda”, quer tenham economias industrializadas ou em estágio de desenvolvimento, continuam fazendo o jogo do mercado, estimulando, via políticas econômicas expansionistas, mecanismos para aumentar a produção industrial, seduzidos constantemente pela ideia da economia do crescimento.
Todos – governos, empresas, consumidores - estão envolvidos nisso, não há escapatória. Por isso a crise de civilização é correlata à civilização em crise, “alimentada” pelos que estão “na parte de cima” da pirâmide social, esmagando os que se encontram “na parte de baixo”, porém refletindo em todos as consequências, uma vez que a crise ecológica, por exemplo, não diferencia cor, sexo, credo, nacionalidade ou condição financeira. Os riscos da devastação ambiental são os mesmos, afetando todos.
Cabe então indagar: mas quando é que isso terá fim? A resposta parece ser mais simples do que imaginamos. O sistema econômico de mercado não irá se desintegrar como preconizam – e desejam - alguns marxistas.
Sem desejarmos aqui levantar falsas profecias, lamentavelmente parece que ainda haverá muito mais desigualdade a ser gerada e perpetuada no seio de um sistema capitalista que valoriza a mercadoria, não as pessoas (exceto as que possuem elevado poder de compra); que enaltece o produto, não as relações humanas.
Por essa razão, aqueles que se encontram “na parte de baixo” sofrerão mais ainda as consequências dessa atual economia linear que extrai, produz, acumula e descarta, polui e degrada; dito de outra forma, de uma economia que, para garantir sua sobrevivência, tem que promover a acumulação, pautando-se, para isso, no crescimento econômico que, face aos privilégios, aumenta a riqueza de poucos em detrimento das enormes carências sociais de tantos outros.
Para comprovar isso, basta um único dado: são vergonhosos os recentes estudos divulgados pela Oxfam sobre os indicadores que medem a concentração de riqueza no mundo, mostrando que apenas 62 indivíduos detém renda equivalente a de 3,5 bilhões de pessoas, ou seja, de metade da população mundial.
Michael Löwy, professor emérito da École des Hautes Études en Sciences Sociales (Paris), destacou bem essa passagem: “a crise econômica e a crise ecológica resultam do mesmo fenômeno: um sistema que transforma tudo - a terra, a água, o ar que respiramos, os seres humanos - em mercadoria, e que não conhece outro critério que não seja a expansão dos negócios e a acumulação de lucros”.
É preciso, ademais, que a civilização desperte para uma racionalidade que a faça abandonar esse perverso modelo econômico, até mesmo porque, comprar coisas das quais não precisamos, com dinheiro que muitas vezes não temos, para impressionar unicamente outras pessoas, não nos levará a lugar algum, senão ao desespero existencial.
E antes que seja tarde demais, que cada um de nós adquiramos consciência suficiente para perceber que não é a aquisição material que nos proporcionará os mais felizes momentos em nossas vidas.
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Civilização em crise - Instituto Humanitas Unisinos - IHU