11 Novembro 2015
"Apesar de todas as limitações próprias da previsão de um dever ser expresso constitucionalmente, que nunca chega a ser porque está bloqueado pelo que já é, há necessidade de um novo modelo paradigmático de interpretação da nossa Constituição e das leis", escreve Jacques Távora Alfonsin, procurador aposentado do estado do Rio Grande do Sul e membro da ONG Acesso, Cidadania e Direitos Humanos.
Eis o artigo.
São bem conhecidas as críticas contrárias aos direitos humanos. De uma parte significativa dos ideólogos de esquerda, eles não passam de fachada para dois dos seus perversos efeitos, por melhores que sejam as intenções de quem defende esses direitos: o primeiro, o de não passarem de “invenção da burguesia para apelegar a luta popular contra a dominação, a opressão e a injustiça social que ela cria”. O segundo, o de tais direitos somente alcançarem as garantias efetivas dos seus efeitos refletidos em “políticas meramente compensatórias, assistencialistas, assim deixando livres os abusos do capital”
Da unanimidade dos ideólogos de direita, a crítica é mais grosseira, menos elaborada, e bem mais agressiva: os direitos humanos mais não servem do que para proteger bandidos, criar obstáculos ao progresso, inibir a liberdade de iniciativa dos agentes econômicos em favor do mercado, favorecer a intervenção do Estado onde ele não deve se meter.
Nas duas críticas da esquerda, a liberdade e a vida das/os trabalhadoras/es pobres seriam as verdadeiras vítimas dos direitos humanos. Na crítica da direita, a segurança dos direitos econômicos e patrimoniais é que estaria sob permanente risco.
Numa entrevista recente do Dr. Fabio Konter Comparato, concedida á Carta Maior, edição de 10 de novembro, este conhecido advogado e professor de direito, cuja história, se não impede, dificulta bastante qualquer crítica de uma e de outra dessas ideologias, examina a crise atualmente vivida pelo Brasil em chave de leitura própria de quem sabe separar o joio do trigo. Para ele, a causa principal dessa crise está na consolidação mundial do capitalismo financeiro:
“Se até o último quartel do século passado os empresários industriais comandavam a vida econômica, hoje são os bancos que ditam as regras, não só nessa área, mas também no campo político.” {...} “É bem provável que se instaure desde logo, no mundo todo, uma fase de estagnação econômica generalizada, justamente devido à implantação mundial do capitalismo financeiro, em substituição ao capitalismo industrial. E a razão é óbvia: enquanto a essência da atividade industrial é a produção de bens, a atividade financeira por si mesma não produz nenhuma riqueza concreta de base. Como se vê, a celebrada eficiência do sistema capitalista na produção de riqueza vê-se hoje totalmente desmentida. Com isso, a fantástica desigualdade social, por ele criada no mundo inteiro, já não tem a menor condição de ser reduzida, menos ainda eliminada. No início da Revolução Industrial, estimou-se que entre o povo mais rico e o mais pobre do planeta a diferença em termos econômicos era de 2 para 1; atualmente, ela é estimada em 80 para 1! Levando-se em conta o crescimento inexorável da população mundial e a estagnação geral da produção de bens, notadamente de alimentos, não é difícil visualizar o prognóstico sombrio de Malthus, feito no final do século XVIII. E as vítimas serão, como sempre, as camadas mais pobres do mundo todo.”
O desafio dessa ameaça motiva um redirecionamento constante de defesa dos direitos humanos, já que urgente ele sempre é. Além de chegar atrasada a sua previsão, como acontece com os direitos sociais, sabidamente são eles os mais ameaçados por esse poder de violação planetária, anônimo, clandestino, inatingível e, consequentemente, inimputável.
Nisso reside a armadilha da mistificação dos direitos humanos fundamentais sociais. Tolerando a sua previsão, expressa na lei do Estado, aquele poder mistifica os pressupostos legais da eficácia deles, como se tivessem capacidade para se autogarantirem. Isso só o poder econômico tem capacidade de fazer, o que lhe permite “legalmente” desobriga-lo de qualquer restrição à ampliação e reprodução do seu “crescimento”, tenha esse o efeito que tiver. Ainda quando violar implicitamente direito alheio, vai fazê-lo sob aparência explícita de respeitá-lo, pois, previsto em lei, a vítima está coberta pelo poder de ser protegido... Garantia para essa proteção? Bem, aí a conversa muda de rumo.
O professor Fabio oferece inspiração contrária a essa fonte de injustiça social, mostrando como a tradição histórica de superioridade do poder econômico oligárquico e cúmplice do capitalismo financeiro mundial sobre o poder político brasileiro, continua na origem da pouca ou nenhuma efetividade daquelas disposições da nossa Constituição Federal pretensamente capazes de enfrenta-lo. Algumas conclusões da sua advertência podem orientar ações futuras em defesa de direitos humanos fundamentais sociais, menos presas a ideologias e modelos de ação superados.
Apesar de todas as limitações próprias da previsão de um dever ser expresso constitucionalmente, que nunca chega a ser porque está bloqueado pelo que já é, há necessidade de um novo modelo paradigmático de interpretação da nossa Constituição e das leis, atento em distinguir o chamado programa das leis do âmbito contido nelas.
Friedrich Muller parece completar o pensamento do professor Fabio quando valoriza essa distinção, com o que ele chama de teoria estruturante do direito: “No direito, (ao contrário da lógica formal), não existe o dever-ser puro, por isso não há um fundamento sólido para a Teoria Pura do Direito de Kelsen. O que existe na realidade, na prática concreta, onde se encontra o fenômeno chamado “norma jurídica”, é sempre um conjunto de dados reais e dados (primariamente ou secundariamente) linguísticos. Em outras palavras, há sempre uma conexão entre um programa de norma e âmbito da norma. Por isso, não somente a antiga dicotomia entre “ser” e “dever-ser” está superada, como também a verdade que está contida nela (isto é, a que dados linguísticos e dados reais não são os mesmos) está, a partir de então, teoricamente modernizada e praticamente operacionalizada. Deste modo, a interdisciplinariedade (...) aparece como um elemento que se mostra incontornável na concretização do direito.” ( “O novo paradigma do direito”, São Paulo, 2012, RT, p. 250).
Além da conveniência, então, de as/os defensoras/es dos direitos humanos se dedicarem à conscientização do povo titular de direitos despidos de garantias, trabalhando próximo dele, é urgente empoderar a capacidade de esse sujeito de direito criar, ele mesmo, estruturar o seu direito e garanti-lo, naquilo que se insiste tanto constitui hoje o pluralismo jurídico, o direito achado na rua, em grande parte já refletido no novo constitucionalismo latino-americano. Está expresso sob variadas denominações, nem todas coincidentes nos seus métodos e estratégias, mas visivelmente sintonizadas, pelo menos, na identificação dos seus alvos, justamente aqueles, como o do capitalismo financeiro mundial, em tudo quanto esse viola direitos humanos.
Se a cabeça e o coração dessa besta apocalíptica parecem inatingíveis, os seus membros não, como a nova ecologia política integral da Laudato Si' também demonstra de forma convincente. O poder de ele empestar a terra e o meio-ambiente está intimamente ligado, ou melhor, é idêntico ao do que ele faz com a “ecologia social”, própria da dignidade e da cidadania de toda a humanidade. Em desvelar e enfrentar essa força reside mais uma das principais razões de redirecionamento da defesa dos direitos humanos. Essa não pode mais continuar distante de todas aquelas organizações e movimentos sociais e populares de defesa da terra e do meio-ambiente. O tempo urge e, sendo esse o criador do espaço, mais ainda.
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A urgência de se desmistificar os direitos humanos sociais - Instituto Humanitas Unisinos - IHU