Por: Cesar Sanson | 22 Setembro 2015
"No fundão desse Brasil, que é fruto do sangue indígena, as gentes seguem resistindo. No Mato Grosso do Sul os Guarani Kaiowá mantêm a promessa feita em 2012: lutarão até o último homem e a última mulher". O comentário é de Elaine Tavares, jornalista, em artigo ´publicado no portal do Conselho Indigenista Missionário - Cimi, 21-09-2015.
Eis o artigo.
Outro dia vi o vídeo no qual uma fazendeira do Mato Grosso do Sul dizia que eles eram os donos daquelas terras porque foram os "desbravadores". Estranhei o depoimento, pois, ali, naquela fala, ela mesma afirmava que seus antepassados foram os que conquistaram a área para que, naqueles longínquos dias, pudessem levantar suas casas e iniciar suas lavouras.
O que, então, significa isso? Se eles desbravaram significa que limparam a passagem, tornaram mansos, civilizaram. É o que diz o dicionário. Se assim é, só tornamos mansos ou civilizamos alguém. E quem era esse alguém? Os índios. Esse é resumo da ópera bufa dos fazendeiros do Mato Grosso do Sul. Logo, ela mesma confirma que o território hoje ocupado por seus familiares e por ela mesma era originalmente dos Guarani.
A fala da fazendeira é bastante esclarecedora da situação que vivem os Guarani Kaiwá naquela região. Para ela e para seus amigos, os indígenas nada mais são do que um atrapalho, uma incomodação, uma desordem no mapa tão bem construído por eles. Se um dia a gente branca invadiu as terras e limpou a área dos índios, agora eles que não venham reivindicar posse de nada. Foram destruídos, que sumam dali.
Essa é a verdade dos fazendeiros. Eles se dão ao direito de pensar que a matança dos índios do passado foi uma coisa boa, um passo no avanço do progresso. Mas, a senhora do vídeo se esquece que quando seus antepassados "desbravaram" aquela região, muitos dos povos que ali viviam não morreram. Eles fugiram, empurrados pela violência e pela ponta dos mosquetes.
Só que para os indígenas a terra não é um pedaço de chão que se pode comprar ou desbravar. É parte viva da cultura. Assim, mesmo tendo fugido ou se escondido, os indígenas ficaram por ali e, com o passar do tempo, foram voltando, exigindo o direito de viver naquele território que ocupavam originalmente.
Essa é a verdade dos indígenas. Eles insistem em ver garantido o seu direito de estar nas suas terras. Querem uma pequena parcela, nem exigem o espaço todo. Só um espaço digno para vivenciar sua cultura.
Mas, a história dos homens é a história da luta de classe, já disse alguém um dia. E nesse combate, a classe dominante é a que tem as armas e o estado. Os oprimidos só têm os seus corpos e a vontade de viver na justiça. Então, aparentemente, não há saídas. Já dizia o filósofo austríaco Ludwig Wittgenstein: "o mundo dos felizes é diferente do mundo dos infelizes". Como então fazer com que esses mundos dialoguem? Tivéssemos um Estado ancorado na justiça, seria ele o responsável por garantir que essas duas verdades pudessem ser debatidas na serenidade. Mas não. No caso dos conflitos no Mato Grosso do Sul, o estado ainda aporta as armas e a proteção ao campo dos "felizes", os fazendeiros.
Na madrugada dessa sexta-feira a gente da tekoá Pyelito Kue/Mbarakay, que fica no município de Iguatemi, sofreu mais uma violência, das inumeráveis violências que vem sofrendo desde que os indígenas decidiram reivindicar sua morada. Jagunços armados desfilaram pelo acampamento onde estão instalados os Guarani e Kaiowá dizendo que todos seriam mortos. Segundo relato do Conselho Indigenista Missionário, houve um ataque e dez indígenas ficaram feridos, incluindo uma gestante e um rezador. Foram usadas balas de borracha, que são de uso restrito das forças policiais, e armas de fogo. Desde alguns dias, dizem as lideranças, que o Departamento de Operações de Fronteira (DOF) vinha fazendo ‘visitas’ ostensivas aos indígenas, inclusive levando embora suas coisas. Também denunciaram que os capangas dos fazendeiros bateram em uma mulher há alguns dias, agressão que foi confirmada pela Funai.
O clima é de perplexidade na tekoá Pyelito Kue. Já vai longe o processo de sistemática agressão a essa gente que, inclusive, em 2012 chegou a lançar um pungente documento ao mundo, dizendo que estavam todos dispostos a morrer na defesa do direito de permanecer na terra que lhes é de direito. Por conta da mobilização causada por esse clamor os Guarani Kaiowá retomaram a Fazenda Cambará, na qual ocupavam 100 hectares. A fazenda inteira é um latifúndio de 2.000 hectares. Desde a retomada, o processo de acosso e violência contra os indígenas não para. Jagunços rondam fazendo ameaças, pessoas são atingidas por arma de fogo, agressões são praticadas, sem que o estado brasileiro tome qualquer providência.
A área reivindicada pelos indígenas já foi indicada pela Funai como tradicional e mesmo assim o estado não toma uma atitude concreta de demarcação das terras, sendo, portanto, conivente com todo o massacre vivido pelas gentes Guarani Kaiowá. Prefere mantê-los nas beiras de estradas, em situação de miséria e abandono. Assim, a única saída que encontram é retomar os lugares que historicamente sempre foram seus, enfrentando aí a fúria e as armas dos fazendeiros. O Mato Grosso do Sul é uma terra na qual a lei estoura do cano das armas. E quem tem as armas não são os índios.
A dolorosa resistência do povo Guarani Kaiowá muito pouco espaço ocupa nos jornais ou na TV. Não interessa ao sistema de interesses que rege o país alfabetizar as gentes na verdade histórica. Como poderiam explicar o fato de que os fazendeiros podem matar e manter milícias privadas à margem da lei? Como explicar que para os poderosos a lei não vale? Melhor seguir malhando o velho discurso de que os índios atrapalham o progresso, que deviam se integrar à cultura branca, que deviam parar de encher o saco de quem quer produzir. Criar estereótipos e preconceitos mantendo a imagem de selvagens ou de preguiçosos. Assim, quando um deles cair morto, não causará comoção.
Mas, no fundão desse Brasil, que é fruto do sangue indígena, as gentes seguem resistindo. No Mato Grosso do Sul os Guarani Kaiowá mantêm a promessa feita em 2012: lutarão até o último homem e a última mulher.
A questão que temos de colocar é: E nós, permitiremos o massacre?
Desde os nossos lugares teremos de usar nossos instrumentos de luta. Eu, tenho a palavra, e cada um pode aportar o seu. O que não podemos é deixar que siga a matança. Já basta. Que se pressione o estado para demarque as terras imediatamente, garantindo o espaço que é direito dos Guarani Kaiowá. Um pequeno espaço no meio do latifúndio. A parte que lhes cabe.
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A dolorosa resistência dos Guarani Kaiowá - Instituto Humanitas Unisinos - IHU