15 Setembro 2015
Numa ensolarada manhã no início deste ano uma trupe televisiva entrou num apartamento bem mobiliado um pouco fora das antigas portas da Cidade do Vaticano. Perfeitamente vestido nas vestes negras e faixa escarlate dos princípios da Igreja católica romana, o cardeal Raymond Burke, nascido no Wisconsin, sentava em sua poltrona esplendidamente revestida e parecia exprimir uma advertência ao Papa Francisco.
A reportagem é de Anthony Faiola, publicada por Washington Post, 07-09-2015. A tradução é de Benno Dischinger.
Convicto conservador e burocrata vaticano, Burke fora deixado de lado pelo Papa alguns meses antes, mas a batalha não era por nada. Francisco defendia uma época mais democrática, dava espaço a vozes progressistas sobre os católicos divorciados, bem como sobre gays e lésbicas. Diante da telecâmara, Burke disse que se teria oposto às mudanças progressistas – e parecia por em guarda Francisco sobre os limites de sua autoridade. “É preciso ser muito atentos quanto ao poder do Papa”, disse Burke à troupe televisiva francesa.
O poder do Papa, advertia Burke, “não é absoluto”. E acrescentava: “O Papa não tem o poder de modificar a doutrina”.
As palavras de Burke escondiam um crescente sentido de alarme entre os severos conservadores, evidenciando aquela que rapidamente apareceria como uma guerra de civilização sobre o pontificado de Francisco e a poderosa hierarquia que governa a Igreja católica romana.
Neste mês, Francisco fará sua primeira viagem aos Estados Unidos, num momento no qual os seus aliados progressista o saúdam como um revolucionário, um homem que somente na semana passada ampliou o poder dos padres de perdoar as mulheres que cometem aquilo que o ensinamento católico define como o “pecado mortal” de aborto, durante o recentemente anunciado ano de misericórdia” que iniciará em dezembro. No domingo, fez apelo a “cada” paróquia católica da Europa para que ofereça acolhida a uma família de refugiados entre os milhares que requerem asilo e que arriscam tudo para escapar da Síria devastada pela guerra e por outros saques de conflito e pobreza.
Todavia, enquanto subverte as convenções eclesiais, Francisco se encontra às voltas com reações conservadoras relacionadas com o crescente impulso progressista no interior da Igreja. Em numerosas entrevistas, incluindo aquelas com sete outros expoentes eclesiais, os bem informados dizem que a mudança deixou a hierarquia mais radicalizada sobre a direção da Igreja do que sobre qualquer outro ponto da época dos grandes papas reformadores dos anos sessenta.
A rebelião conservadora se exprime de muitas formas – seguramente em comentários públicos, mas também na crescente popularidade de sites web católicos conservadores, que sustentam aqueles que dissentem de Francisco; em livros e material promocional difundido pelo clero conservador que procura combater a tendência progressista; e em indiscrições na mídia de informação direcionadas contra os reformadores vaticanos.
Nos seus comentários mais recentes, Burke se limitava a constatar fatos. Não obstante os amplos poderes do Papa, a doutrina da Igreja serve como uma espécie de constituição. E para os reformadores o brutal contra-ataque teológico da parte dos conservadores complica os esforços para traduzir em mudanças tangíveis o estilo inovador do Papa.
“Pelo menos não nos envenenamos mais reciprocamente os cálices”, disse Timothy Radcliffe, um padre britânico progressista e aliado de Francisco, nomeado em maio a um influente cargo no Vaticano. Radcliffe disse ter acolhido positivamente a possibilidade do debate aberto, e até do dissenso crítico no interior da Igreja. Mas disse que ele próprio experimentava temor por “algumas das coisas que estamos vendo”.
Testar a reencontrada liberdade
Antes do que reivindicar tomadas de posição claras, o Papa está mais subtilmente e com frequência implicitamente defendendo os líderes progressistas da Igreja que premem por mudanças radicais e, além disso, ampliando decididamente os parâmetros do debate sobre as reformas e sobre sua extensibilidade. Por exemplo, por ocasião da abertura de um encontro de bispos anciãos no ano passado, Francisco disse às pessoas presentes:
-“Não permitais a ninguém dizer: Isto não o podes dizer”.
Desde então, os progressistas testaram os limites de sua nova liberdade, com um bispo belga que chegou a solicitar que a Igreja católica reconheça formalmente os casais do mesmo sexo. Os conservadores alegam que, no clima de crescente pensamento progressista, eles têm sido impelidos para uma posição na qual “defender a verdadeira doutrina da Igreja te faz aparecer como um inimigo do Papa”, declarou um ancião expoente vaticano a propósito da necessidade do anonimato para poder falar livremente.
“Temos agora um sério problema, uma situação muito alarmante onde os padres e bispos católicos dizem e fazem coisas que são contra aquilo que a Igreja ensina, falando de uniões homossexuais, de comunhão para aqueles que vivem em adultério”, disse aquele expoente do Vaticano. “No entanto, o Papa nada faz para fazê-los calar. Por isso se deduz que é isso que o Papa quer”.
A disputa no interior
Uma dose da longa história de intrigas da Igreja afluiu no pontificado de Francisco, particularmente quando o Papa ordenou uma reestruturação radical das obscuras finanças vaticanas. Sob Francisco, foram eliminadas as cúpulas do banco do Vaticano enquanto se tratava do comitê composto totalmente por italianos de sua agência de vigilância financeira.
Um dos modos de se contrapor foi aquele de indiscrições negativas feitas vazarem a favor dos meios de informação italianos. Os expoentes vaticanos estão agora convencidos que a última grande fuga de notícias em ordem de data – aquela da encíclica papal sobre o ambiente em junho – foi feita por avidez (foi vendida à mídia) antes do que por vingança. Mas, outras revelações têm tomado em mira figuras-chave da renovação introduzida pelo Papa – incluindo o conservador escolhido para dirigir as reformas das finanças papais, o cardeal australiano George Pell que, em março, esteve no centro de indiscrições referentes à sua tendência – se dizia – ao fausto.
Mais frequentemente o dissenso se desenvolve em terrenos ideológicos. A crítica a um Papa reinante é seguramente extraordinária – bispos progressistas têm algumas vezes desafiado [ou enfrentado] o predecessor de Francisco, Bento XVI. Mas, numa instituição que se esconde por trás do biombo de uma tradicional fidelidade ao Papa, o que choca muitos é quanto a crítica a Francisco se tenha tornado pública.
Numa carta aberta à sua diocese, o bispo Thomas Tobin, de Providence (RI) escrevia: “Procurando adaptar-se às necessidades da época, como sugere o Papa Francisco, a Igreja corre o perigo de perder a sua voz corajosa, profética, de contracultura, uma voz que o mundo necessita escutar”. De sua parte, Burke, o cardeal proveniente do Wisconsin, definiu a Igreja sob Francisco “um navio sem leme”.
Até Pell pareceu tolher-lhe autoridade sobre temas teológicos. Comentando o convite do Papa a uma forte ação sobre os temas climáticos, Pell disse em julho ao Financial Times: “A Igreja não recebeu mandato do Senhor para pronunciar-se sobre argumentos científicos”.
Nos ambientes conservadores, a palavra “confusão” também se tornou um eufemismo para censurar o papado sem mencionar o Papa. Por exemplo, 500 padres católicos na Grã Bretanha escreveram uma carta aberta neste ano, na qual se falava de “muita confusão” no “ensinamento moral católico”, após o sínodo dos bispos sobre a família do ano passado, no qual Francisco abriu as cataratas do debate, do qual derivaram propostas para uma nova linha nos confrontos de católicos divorciados ou gays.
Aquelas propostas foram, no final, amortecidas no texto votado, que mostrou o quanto ainda era amplo o poder dos conservadores. Isto colocou as premissas para uma prestação de contas no próximo mês, quando os bispos da Igreja se reunirão para a prossecução do Sínodo que se transformará, segundo os prognósticos dos observadores, num outro conflito violento. Competirá depois ao Papa a última palavra para qualquer mudança no próximo ano.
Os conservadores lançaram uma campanha contra uma possível mudança de linha que garantiria aos católicos divorciados e recasados o direito de acessar à comunhão durante a celebração da eucaristia. No ano passado, cinco expoentes, entre os quais Burke e o cardeal de Bolonha Carlo Caffarra, destilaram aquilo que se tornou conhecido como o “o manifesto” contra tal mudança. Em julho, um DVD distribuído a centenas de dioceses na Europa e na Austrália, aos cuidados de membros do clero católico conservador, sustentava a mesma linha. Nela Burke, que apresentou argumentos semelhantes em várias conferências católicas, punha dramaticamente em guarda contra um mundo no qual os ensinamentos tradicionais são ignorados.
Mas, estamos sempre na Igreja católica, onde o respeito hierárquico é uma tradição mais forte do que qualquer outra. Antes do que tomar em mira o Papa, os bispos e os cardeais conservadores miram os seus pares do campo progressista. Que inclui o cardeal alemão Walter Kasper, o qual tem ironizado dizendo ser um berço alternativo para os membros do clero insuficientemente corajosos para criticar diretamente o Papa.
Todavia, os conservadores respondem que os progressistas estão ultrapassando os seus limites, dando sua própria interpretação dos pronunciamentos do Papa, que foi mais ambíguo do que Kasper e os seus aliados estejam dispostos a admitir.
“Nasci como papista, vivi como papista e morrerei como papista”, disse Caffarra. “O Papa jamais disse que os católicos divorciados e redesposados poderiam receber a comunhão, e, todavia as suas palavras tem sido distorcidas para dar-lhes um significado errôneo”.
Alguns dos aliados do Papa insistem no fato de que o debate é precisamente o que Francisco quer. “Penso que as pessoas devam falar com franqueza porque se sentem fortemente e apaixonadamente convencidos de sua posição, e não penso que o Santo Padre o veja como um ataque pessoal contra ele”, disse o arcebispo de Chicago, Blase J. Cupich, considerado em estreito aliado do Papa. “O Santo Padre deu a possibilidade de discutir abertamente sobre estes problemas; não predeterminou aonde levará o debate”.
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Cresce o dissenso dos conservadores no Vaticano - Instituto Humanitas Unisinos - IHU