01 Abril 2014
Em 2014, o jornalista Nicolás Castellano completa 15 anos reportando notícias sobre a imigração. Originário das Ilhas Canárias, arquipélago espanhol próximo ao continente africano, Castellano viu, durante toda a vida, dezenas de pessoas se aventurarem pelo oceano Atlântico rumo às praias espanholas, muitas das quais morreram pelo caminho. E foi justamente a partir da morte de um grupo que se afogou a apenas 10 metros das areias canárias que o jornalista começou a investigar os motivos que levavam tanta gente a arriscar-se nestes trajetos.
A entrevista é de Rafael Duque, publicada por Opera Mundi, 30-03-2014.
Desde então, Castellano já viajou a trabalho a diversos países da África, entre eles Marrocos, Mauritânia, Mali e Senegal. Sempre trabalhando para a principal cadeia de rádio na Espanha, o jornalista ganhou a Medalha de Ouro da Cruz Vermelha e o Prêmio de Direitos Humanos do Conselho Geral da Advocacia Espanhola por reportagens especiais sobre as dificuldades dos países africanos. Junto com a jornalista Carla Fibra, publicou o livro “Meu nome é ninguém”, no qual contam os problemas que enfrentam as pessoas que migram da África à Europa.
Em entrevista a Opera Mundi, Castellano reflete sobre o papel da imprensa ao publicar notícias sobre a imigração. Ele critica o uso de termos que criminalizam os imigrantes e questiona a política migratória praticada pela Espanha e pela União Europeia.
Eis a entrevista.
No começo deste mês, o ministro de Interior da Espanha afirmou que pretende investir mais dinheiro nas cercas da fronteira de Ceuta e Melilla. Você acha que isto vai diminuir o número de pessoas que tentam entrar no país por estas duas cidades?
Não, eu acho que os últimos acontecimentos em Ceuta, a morte das 15 pessoas, deveria ter sido investigada e esclarecida já que aconteceu há mais de um mês e aqui ninguém fala de nada. Do meu ponto de vista, isto evidencia o fracasso absoluto de todas as políticas repressivas e securitárias da Espanha e da União Europeia em relação à imigração. Cada vez que se produz um aumento no número de pessoas que tentam entrar na Europa ou na Espanha ou cada vez que se produz um fato como este [a morte de 15 pessoas] sempre os políticos de todas as vertentes, ou seja, deste partido ou de outro, sempre anunciam um reforço nas medidas de segurança, falam de luta contra a imigração, este tipo de linguagem.
Agora se fala em reforçar a cerca outra vez. É absolutamente absurdo. Eles seguem trabalhando na barreira do muro, mas não compreendem que as necessidades que existem do outro lado do muro são muito maiores que qualquer muro que queiram construir. Colocaram navios patrulheiros no estreito [de Gibraltar] [...], colocaram navios patrulheiros nas Canárias, em Marrocos, no Senegal, na Mauritânia. Pelo deserto continuam morrendo milhares de pessoas que tentam chegar ao Norte para logo cruzar, por exemplo, à Itália através de Lampedusa ou a Malta, nos barcos que saem de Tunes ou da Líbia. Parece incrível que as autoridades europeias e espanholas não se deem conta de que suas políticas militaristas, repressivas, de segurança estão matando as pessoas. Há mais de 20 mil mortos de imigrantes que tentam, pelo Mediterrâneo, cruzar a fronteira em busca de felicidade. E aqui ninguém repara que deveríamos mudar o discurso e articular outras medidas. As pessoas sempre se moveram. A viagem mais antiga do mundo é migrar. Colocar todas estas dificuldades, a única coisa que se está causando são mortes e sofrimento. Por tanto, estas medidas de agora para reforçar a segurança da cerca, desde o meu ponto de vista, servem para tentar legitimar o discurso fácil [...] de criar um inimigo exterior, que supostamente seria um grupo muito grande de subsaarianos e a Espanha tem que se defender desta suposta ameaça.
Opera Mundi foi a Málaga para entender por que imigrantes arriscam a vida para chegar à Espanha
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E contra este inimigo se legitima um discurso para reformas a lei de imigração, para endurecê-la e fazer que seja mais difícil que os imigrantes entrem. Investir recursos em uma política que gera morte é, desde o meu ponto de vista, um fracasso como país e como conjunto de nação que é a Europa. [...] Eu acho que devemos mudar o discurso, não é possível que no século XXI as pessoas morram por cruzar uma fronteira.
É correto afirmar que existe uma pressão migratória em Ceuta e Melilla?
Do meu ponto de vista a migração não é uma pressão, é um movimento natural. A água corre, o migrante se move, as pessoas se movem. Ou eu tenho que falar que agora o Brasil sofre uma pressão migratória de espanhóis? Mas, respondo à pergunta: 2013 foi, em relação a chegadas de embarcações, o [com número] mais baixo desde 1999.
Em relação a Ceuta e Melilla, particularmente, houve um aumento em relação a 2010, mas, se tomamos em conta as cifras desde 2001, é o terceiro ano em número de chegadas, ou seja, não superou nenhum recorde. Não se alcançou nenhuma cifra escandalosa. Parece-me que o governo está utilizando a criação de um ambiente alarmista sobre a imigração para justificar um endurecimento nestas políticas.
Falar de 40 mil ou de 80 mil imigrantes e de uma suposta ameaça externa situa o foco midiático em outro lugar e os jornalistas e os meios de comunicação deveriam pressionar para que se esclareçam as circunstâncias. E digo mais, fontes bastante confiáveis da União Europeia classificam de desproporcional a cifra que a Espanha dá. Se no ano recorde de chegadas de imigrantes irregulares a Europa, por todas as fronteiras, chegaram 110 mil pessoas, que foi o ano da primavera árabe, [...] como se pode afirmar que em 2014 existam 80 mil que querem vir só para a Espanha? Qual o sentido disso? Se, no ano de 2006, que foi o ano recorde de chegadas de imigrantes em embarcações na Espanha, havia 10 mil pessoas esperando na Mauritânia para ir às Canárias, por que agora tem 40 mil? Se o ano de com maior entrada [de imigrantes] em Ceuta e Melilla foi 2005, quando cruzaram 5,6 mil pessoas e do outro lado dormiam outras 3 mil, por que hoje existem 40 mil? São cifras absolutamente exageradas de forma intencional para criar uma sensação de medo a um ser que está do outro lado do muro e que, para mim, parece perigoso.
Você acha que a imprensa deixou de levantar questões reflexivas para apenas relatar os fatos e divulgar as afirmações do governo?
Sim, mas não a imprensa. Não podemos qualificar todos os meios igualmente, existem meios que fizeram um trabalho muito bom, que contextualizaram, que foram ao terreno. E esta é outra questão, a maioria dos meios de comunicação está falando de Ceuta e Melilla e dos imigrantes desde Madri, sem falar com os imigrantes, sem vê-los, sem percorrer a fronteira ou bosques onde se encontram, a não ser alguns [jornalistas] free lancers que foram e venderam as reportagens. Felizmente, através deles, podemos ler estas histórias.
Mas você não acha que essas histórias estão longe das manchetes principais?
Sim, só [estão] nas editorias especiais. De qualquer forma, do meu ponto de vista, o grande problema que existe na percepção da imigração na sociedade é que ela é vista como um objeto eleitoral. O PP [Partido Popular] pensa que, com uma mensagem dura, está alimentando a sua base e envia uma mensagem dura contra a imigração. E o PSOE [Partido Socialista Operário Espanhol] não se atreve a ter um discurso mais aberto, mais social sobre o tema da imigração. E logo estão os interesses econômicos e editoriais dos meios de comunicação que se movem por tendências mais ou menos progressistas ou por tendências mais ou menos interessadas no momento. Por isso que se gerou tanta repercussão na Espanha a capa do El País que fazia referência à possível presença de 30 mil pessoas querendo entrar na Espanha. Principalmente pelo título e por como estava escrito o artigo. O El País é um jornal de referência que fez um bom trabalho sobre a imigração e por isso chamou tanta atenção este tipo de manchete. Mas ele não está sozinho, outros meios também estão nesta linha.
O ministro de Interior do governo [Jorge Fernández Díaz] difunde este tipo de mensagem e, efetivamente, os meios aceitam sem contextualizar, sem explicar, sem dar outros dados, sem ir ao outro lado, sem questionar. Por que não vamos diretamente ao governo do Marrocos e perguntamos se ele pensa que há efetivamente 40 mil pessoas da África Subsaariana em seu território que querem entrar na Espanha? Não [vamos], porque iríamos ouvir que estes 40 mil cidadãos efetivamente são subsaarianos, mas moram no Marrocos há anos. Sim, talvez exista a possibilidade pequena que alguns queiram cruzar [a fronteira], mas a maioria está instalada lá, com trabalho. Os meios de comunicação estamos sendo cúmplices da criação de um estado de opinião muito perigoso sobre a imigração. E os jornalistas temos a responsabilidade, acima dos interesses dos meios, de sermos coerentes, éticos, honestos com o que acreditamos.
Não se pode permitir falar sobre assalto para falar de uma pessoa que está cruzando uma fronteira. Um assalto é uma palavra militar, de uma guerra. Não se pode falar de chegada em massa quando 100 pessoas tentam cruzar uma fronteira. ‘Assalto massivo’, ‘chegada massiva’, ‘avalanche’ são expressões criminalizam a imigração. Isto é tão velho como a política, o uso intencional das palavras. Não podemos cair nisso.
Você acha que os jornalistas pensam nisso com a rotina diária de trabalho ou simplesmente replicam o que agências, como a espanhola Efe, escrevem?
Sim, é verdade que existe uma dinâmica de precarização profissional. Muitas vezes por causa da pressa de se publicam na internet, nos meios digitais, os primeiros teletipos que saem de Ceuta e Melilla.
Efetivamente, a agência Efe, que é a agência espanhola mais importante do mundo, tem uma linguagem absolutamente vergonhosa sobre a imigração. Utilizam não apenas assalta, mas assaltantes. Como são assaltantes pessoas que tentam cruzar a fronteira? Ou ainda falam da violência de um imigrante porque supostamente os disse uma fonte oficial. Você já viu ou tem fotos de um imigrante atirando pedra ou agredindo um guarda civil? Se realmente existisse um imigrante que tivesse agredido um guarda civil e fosse detido, não seria julgado? Se você é uma agência com esta responsabilidade global, porque também publicam a mesma coisa na América Latina, tem uma responsabilidade muito grande. Ainda mais porque é uma agência pública. [...] Já lhe chamaram a atenção, há universidades espanholas que fizeram manuais sobre o uso correto da língua nos meios de comunicação para falar sobre imigração. Chamaram a atenção de todas as agências e de todos os meios, se reuniram com os diretores em um processo de muitos anos [...]. Entretanto, o manual que assina os meios e que se comprometem a utilizar dura muito pouco. Por que? Porque são os interesses políticos que acabam impondo a mensagem.
Do meu ponto de vista, a agencia Efe, que tem este efeito multiplicador nos meios, tem uma responsabilidade grandíssima nisto. Mas isto não justifica, não vamos colocar a culpa de tudo na Efe, que depois os editores ou os chefes de seção dos jornais, dos rádios, e das televisões não tenhamos um pouquinho mais de análise crítica para saber como utilizar a notícia. Mas se você vê os telejornais, escuta a determinadas rádios ou se lê alguns jornais, todo mundo faz o mesmo. E também tem o mal endêmico da profissão, que é seguir uma tendência. Cria-se uma linguagem ou se gera um formato para falar de imigração ou para falar de futebol ou para falar de violência de gênero e todo mundo segue o mesmo caminho. Repetem-se os mesmos clichês, repetem-se os mesmos conceitos. Eu falava sobre a chegada de embarcações nas Canárias, se fala o número [de imigrantes] e a nacionalidade, mas não se fala se têm direito ao refúgio ou porque vêm à Espanha. Então, este tipo de tendência, este tipo de modelo que vai se instalando acaba fazendo um desfavor ao jornalismo. O jornalismo tem que explicar tudo, incluindo o contexto das coisas. Não podemos falar de cifras brutas porque assim ninguém vai saber o que está passando.
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“Não é possível que no século XXI pessoas morram por cruzar uma fronteira”, diz jornalista espanhol - Instituto Humanitas Unisinos - IHU