18 Fevereiro 2014
No verão mais quente em Curitiba em quase uma década, um grupo de torcedores busca a sombra de uma árvore para colocar o papo em dia e tomar caldo de cana para aliviar o calor de mais de 30 graus. O pano de fundo é a Arena da Baixada, estádio mais atrasado entre os 12 que sediarão a Copa do Mundo no Brasil. Em meio ao ruído incessante de serras e guindastes, a conversa recai, como não podia deixar de ser, sobre o andamento das obras. Esbanjando otimismo, um deles concorda que o ritmo está mais acelerado em relação à semana anterior. “Ficará pronta a tempo”, aposta.
A reportagem é de Frederico Rosas, publicada no jornal El Pais, 15-02-2014.
Mas o “debate” sobre as infraestruturas previstas para o Mundial, no entanto, vai além do bairro Água Verde, onde está localizado o estádio, próximo ao centro da cidade. No trajeto entre o aeroporto, que fica na região metropolitana, e a arena, uma grande ponte ainda incompleta domina parte da paisagem. Cones de sinalização desviam o tráfego que se prolonga entre máquinas e tratores. “Enquanto a ponte estaiada não fica pronta, o jeito é lidar com essas complicações”, resigna-se o taxista.
O cenário é Curitiba, capital do Estado do Paraná (região Sul), que abrigará a seleção espanhola durante a Copa. Mas os moradores de outras cidades-sedes do Mundial deste ano se deparam com o mesmo dilema. Tudo vai funcionar a contento durante a Copa? Isso porque o sentimento entre a população nas ruas é de que pouca coisa mudou desde 2007, quando o país foi anunciado como sede do torneio. Passaram-se sete anos e quase a metade dos estádios falta ser concluída. “É a primeira vez que um país tem tanto tempo para organizar uma Copa e tem atraso”, lamentou o presidente da Fifa, Joseph Blatter, em entrevista à France Football.
A escolha de 2007 não só colocava à prova a capacidade do Brasil de organizar um grande evento esportivo internacional. O país assumiu também uma responsabilidade de confirmar sua condição de potência emergente. Embalado por um crescimento de 5%, tinha-se tempo suficiente para se preparar dentro e fora dos estádios. “Queremos deixar um legado de melhoria nas condições de vida do nosso povo”, dizia o então presidente Luiz Inácio Lula da Silva sobre as infraestruturas para o Mundial.
A pouco menos de 120 dias para o jogo de abertura, faltam ser entregues 5 dos 12 estádios, cuja construção, aliás, consumiu mais dinheiro que o previsto, enquanto a lista de projetos para melhorar a mobilidade urbana, que ajudariam a compor o legado prometido, foi desinflando. O entusiasmo diminuiu, assim como a euforia pelo desempenho da economia. Desde maio de 2012, o orçamento para as infraestruturas de transporte e melhorias viárias no projeto do Mundial caiu de 11,5 bilhões de reais (4,8 bilhões de dólares) para 8,020 bilhões (3,3 bilhões de dólares), segundo dados do Sindicato da Arquitetura e da Engenharia (Sinaenco).
Coube a Porto Alegre a maior retirada de projetos da lista. Em São Paulo, como em Manaus, o monotrilho, por exemplo, deixou o programa. Não poderia deixar de ser citado ainda o tão propagado trem-bala que interligaria São Paulo e Rio de Janeiro durante o Mundial, e que foi praticamente deixado de lado no discurso das autoridades dos mais diferentes níveis, embora nunca tivesse feito parte oficialmente das responsabilidades para a Copa.
O custo dos estádios disparou, no caminho contrário ao das obras de mobilidade urbana na matriz da Copa
As exclusões da chamada matriz de responsabilidades do torneio não necessariamente significam uma interrupção nas obras. Os projetos podem ser retirados pelos seus responsáveis da lista oficial a fim de obter outras formas de financiamento, que não expirem até o período do evento. Mas há a preocupação também de que, passado o Mundial, o ritmo desses trabalhos de infraestrutura possa cair drasticamente, ou mesmo parar.
Foram programadas ainda melhorias em 13 terminais aeroportuários, com orçamento atual de mais de 6 bilhões de reais (2,5 bilhões de dólares). Dois projetos foram retirados, e outros registram ou registraram atrasos. Fortaleza é a cidade cuja demora mais preocupa o governo. A capital do Ceará não abrirá mão de estruturas provisórias até o término do evento. “Mas não tenho dúvidas de que teremos uma mudança de patamar na infraestrutura aeroportuária a partir de maio”, afirma o ministro da Secretaria da Aviação Civil, Moreira Franco.
O secretário-executivo do Ministério do Esporte, Luis Manuel Fernandes, afirmou que o governo não tem dúvida de que todas as obras que são consideradas “essenciais” para a realização da Copa estão ou estarão terminadas até o evento. Ele diz que as que não afetarão o Mundial e não ficarem prontas devem ser absorvidas pelo Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), do governo federal. “O Brasil é um país em desenvolvimento, com carências em infraestrutura. Sediar o Mundial e os Jogos Olímpicos nos dá a chance de acelerar as obras de que o Brasil precisa, mas, que, sem esses eventos, demoraria mais para implementar.”
Mas no que depender dos custos com a Copa até agora, sobretudo em estádios, lemas como “Copa do Mundo, eu abro mão – Quero dinheiro para saúde e educação” e Queremos hospitais e escolas padrão Fifa” poderão voltar a ser ouvidos nas ruas durante o Mundial, em junho e julho, apenas três meses antes das eleições presidenciais e legislativas no país. A presidenta Dilma Rousseff conta com ampla vantagem nas pesquisas de intenção de voto sobre os seus rivais, mas o governo federal não quer correr riscos de que os protestos causem danos eleitorais à imagem da administração ou mesmo ajudem a arrastar a disputa para um segundo turno.
O governo diz que as obras de mobilidade que foram excluídas serão absorvidas pelo PAC
A estimativa mais conservadora dos gastos da Copa aponta para um consumo total de 25,5 bilhões de reais (10,6 bilhões de dólares), em um país que ainda se esforça para oferecer serviços públicos de qualidade em áreas sensíveis. Desse montante, 14 bilhões de reais foram atribuídos a investimentos e empréstimos do governo federal, 7,8 bilhões às esferas estaduais e municipais, e apenas 3,7 bilhões à iniciativa privada. Logo, o poder público patrocina 85% dos gastos, ainda de acordo com os dados do Sinaenco.
Só as obras de construção ou reforma nas 12 arenas superaram 8 bilhões de reais (3,3 bilhões de dólares) até agora, batendo a soma dos dois últimos torneios, disputados na Alemanha (2006) e na África do Sul (2010). Em 2010, a previsão brasileira era de gastos de cerca de 5,5 bilhões de reais com os estádios, 45% menos. A própria escolha de 12 sedes pelo Brasil –após a candidatura de 18 cidades– contrariou a Fifa, que nunca escondeu sua preferência por oito, no máximo, dez municípios em um país de 8,5 milhões de quilômetros quadrados.
Entre os estádios que ainda não foram entregues está o que sediará a própria abertura do torneio, em 12 de junho: a Arena Corinthians, em São Paulo. Tampouco conseguiram sinal verde a Arena da Baixada, em Curitiba; a Arena Amazônia, em Manaus; a Arena Pantanal, em Cuiabá; e o Beira-Rio, em Porto Alegre. A presidenta Rousseff chegou a visitar as obras no estádio de Manaus nesta sexta-feira, cumprindo agenda oficial na cidade. A Arena, no entanto, segue em obras. O Beira-Rio, por sua vez, foi liberado pelo corpo de Bombeiros local para sediar um jogo-teste neste final de semana. Foi permitida a entrada de 10 mil torcedores, e a liberação ocorreu apenas para esse teste. O estádio também dará prosseguimento aos trabalhos para a conclusão de sua reforma.
Os motivos dos atrasos vão desde dificuldades para a obtenção de financiamento até paralisações de operários por reivindicações de reajustes ou melhores condições de segurança. Sete operários morreram nas obras: quatro em Manaus, dois em São Paulo e um em Brasília. Em Manaus, capital do Estado do Amazonas, dois perderam a vida no mesmo dia, um deles em plena madrugada, ao cair de uma altura de 35 metros enquanto trabalhava na instalação da iluminação do estádio.
Curitiba tem até o dia 18 para convencer a Fifa de que a Arena da Baixada estará pronta até a Copa
A FIFA trabalhava com 31 de dezembro do ano passado como prazo final para a entrega de todos os estádios para o Mundial. A conclusão das obras da Arena das Dunas, em Natal, em 22 de janeiro último, contou até com a presença da presidenta Rousseff em uma grande festa entre os operários. Foi o primeiro estádio a ser concluído em 2014. Os outros seis que já estão prontos são os que sediaram a Copa das Confederações no ano passado: o Maracanã, no Rio de Janeiro; o Mineirão, em Belo Horizonte; o Estádio Nacional de Brasília (Mané Garrincha); a Arena Pernambuco, em Recife; o Castelão, em Fortaleza; e a Fonte Nova, em Salvador.
Em entrevista ao EL PAÍS em novembro, o diretor-executivo do Comitê Organizador Local (COL) da Copa, Ricardo Trade, destacou a importância de se ter as arenas concluídas até essa data. “Assim, teremos tempo para realizar eventos-teste para que a operação durante a Copa do Mundo seja como os torcedores, as delegações e a imprensa merecem”, disse, antes que a realidade desse de cara com o planejamento.
O secretário-executivo Luis Fernandes, também fala de legados porque estão sendo “construídos estádios modernos e sustentáveis”. O Mané Garrincha, em Brasília, é o mais caro. Com capacidade para pouco mais de 70.000 espectadores, a previsão de custo da arena aponta para menos que 1,4 bilhão de reais (581,4 milhões de dólares), mais que dobrando o orçamento inicial de 696 milhões (289 milhões).
A região está longe de ter qualquer tradição no futebol e não possui times nas primeiras duas divisões nacionais. Por isso, Brasília, que sediará sete jogos do Mundial, incluindo um do Brasil na primeira fase e a disputa do terceiro lugar, é uma das que têm o seu legado amplamente questionado, como também o tem Manaus.
O último campeonato amazonense apresentou como média de público menos de 2% da capacidade que a arena terá durante o Mundial
Perto da fronteira com Colômbia, Peru e Venezuela, a cidade está distante quase 2.000 quilômetros de qualquer time da primeira divisão brasileira. A Arena Amazônia sediará apenas quatro jogos da primeira fase, entre eles o duelo entre Itália e Inglaterra, polêmico desde já pelas declarações do técnico inglês referindo-se ao clima quente e úmido da cidade, de que preferia cair no grupo da morte da Copa do que jogar por lá –passado o sorteio, ele acabou ficando com os dois.
O legado certamente envolverá milhares de assentos vazios. O último campeonato amazonense apresentou como média de público menos de 2% da capacidade que a arena terá durante a Copa. Em entrevista ao EL PAÍS, o desembargador Sabino Marques, do Tribunal de Justiça amazonense, chegou a sugerir que o local servisse para a triagem de presidiários após o Mundial, sugestão prontamente rechaçada pela associação que representa os advogados no estado, em nome do “determinante motivo de sua construção (...) bem como seu legado ao esporte local e à cidade” de Manaus.
Mas é mesmo Curitiba que luta agora, quase no limite, contra a ameaça de ser excluída da lista de sedes do Mundial. O tempo está se esgotando. Na próxima terça-feira, 18 de fevereiro, a cidade deve ser submetida ao exame definitivo para convencer a FIFA de que o seu estádio pode ficar pronto a tempo. Essa é a data-limite fixada pelo secretário-geral da entidade, Jérôme Valcke, depois que há um mês, em sua última visita ao local, não escondeu sua insatisfação com o andamento das obras. “O estádio não só está muito atrasado. Está longe de qualquer bom cronograma de entrega para a FIFA”, disse na ocasião.
O estádio já foi considerado o mais moderno do país na década passada. Nele joga o Atlético Paranaense, comandado pelo técnico espanhol Miguel Ángel Portugal. Mas teve atrasos sistemáticos pela letargia na liberação de financiamentos em suas obras de reforma para o Mundial. Precisou correr contra o tempo para corrigir a rota. Foram contratados cerca de 300 operários extras depois da visita de Valcke, que se somaram aos quase 1.000 que trabalharam ao longo da execução da obra.
Áreas de apoio, como elétrica e tecnologia, estenderam o horário de trabalho para dar conta do recado. Como resultado, as obras avançaram para garantir uma “grande surpresa à FIFA”, segundo o secretário municipal da Copa em Curitiba, o engenheiro civil Reginaldo Cordeiro. “O gramado já foi concluído, 15 mil assentos instalados, além da cobertura, que deve estará acabada nesta segunda-feira”, afirma Cordeiro. No início de fevereiro, 90% do estádio estava pronto, após ter chegado a 88% ainda no final de novembro.
Sete operários já morreram nas obras dos estádios: quatro em Manaus, dois em São Paulo e um em Brasília
Na organização da Copa, muitas são as entidades com responsabilidades e atribuições, e Curitiba sofreu especialmente com essa multiplicidade de vozes no cumprimento dos acordos. Um novo comitê formado por profissionais indicados pelos governos federal, estadual e municipal, além da Arena CAP (empresa criada pelo Atlético Paranaense para cuidar do projeto) faz agora um diagnóstico da situação. Antes, um modelo de autogestão era de responsabilidade da CAP, o que levou a uma situação em que 40 empresas trabalhassem na frente de trabalho no estádio, atuando em áreas específicas das obras, em vez de uma ou mais empreiteiras maiores assumirem as atividades.
Os governos e o Atlético também tiveram de se colocar de acordo para solicitar um novo e urgente refinanciamento. Até agora houve muitos mal-entendidos públicos sobre o tamanho da responsabilidade que cada uma dessas instituições tinha nas obras. A expectativa agora é de que sejam liberados até o fim deste mês mais 65 milhões de reais para que o cronograma atual para a conclusão do estádio, no fim de abril, seja cumprido e não haja mais atrasos.
Mas se a ameaça de exclusão da FIFA se concretizar, a alternativa seria distribuir os jogos que seriam realizados no estádio entre as outras 11 sedes. Isso, no entanto, causaria transtornos no planejamento das seleções, na hospedagem de torcedores e, claro, na venda de ingressos, já iniciada. Não há outros estádios no país construídos ou reformados segundo o padrão da FIFA exigido para uma Copa do Mundo.
E como não poderia ser diferente, o clima em Curitiba, cidade de cerca de 1,8 milhão de habitantes, é de apreensão. Muitos fizeram planos para aproveitar as expectativas criadas pelo Mundial. Como a professora de Inglês que ofereceu os seus serviços a uma cooperativa de taxi e que acabou por abandonar as aulas depois da diminuição do interesse de seus alunos. Ou a dos haitianos que tratam de buscar uma oportunidade a 8.000 quilômetros de suas casas destruídas pelo terremoto de 2010. Cerca de 65 trabalham no estádio.
O Sindicato dos Trabalhadores da Construção Civil (Sintracon) de Curitiba diz que, semanalmente, cerca de 15 haitianos recorrem à entidade com reclamações de baixos salários, precariedade dos alojamentos e falta de segurança nas obras da região metropolitana. “Os que levam sorte e são contratados por empresas grandes estão se dando bem. O problema não é na arena, é com as empreiteiras menores espalhadas pela região”, afirmou ao EL PAÍS o presidente do Sintracon regional, Domingos Davide.
O haitiano Anice Ulysse tem uma opinião diferente. Foi premiado com um ingresso para assistir a uma partida da Copa na Arena da Baixada que ajuda a construir. O motivo: seu excelente rendimento no canteiro. “Queremos cooperar no que for possível com o nosso trabalho. E ser capazes de compartilhar uma Copa com os brasileiros, e em Curitiba”, afirma. Nesta terça-feira deve-se saber se Ulysse poderá usar o ingresso para, por exemplo, assistir a um jogo da Espanha. A bola, agora, está com a FIFA.
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