27 Agosto 2013
O teólogo moral italiano Enrico Chiavacci faleceu no último domingo, 25 de agosto. Como homenagem, a revista Adista relembra um artigo publicado em seu número 89, de 23-12-2006. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
Eu li com estupor e profunda dor a carta do cardeal Arinze sobre a tradução das palavras da Consagração, publicada pela Adista no dia 9 de dezembro. Eu não sou biblista, mas sou pároco há mais de 45 anos e sacerdote há 56 anos. A fidelidade material ao texto latino trai "a intenção do Senhor expressa no texto. É um dogma da fé que Cristo morreu na Cruz por todos os homens e as mulheres": são as palavras do cardeal Arinze. E, por isso, ofereço a ele e aos seus colaboradores alguns pontos para se refletir.
1 – A versão latina segue o original grego, mas, em grego, o termo "muitos" também tem um significado inclusivo (como em oi polloi = as pessoas em geral). Assim como em latim, no italiano também o termo "muitos", ao invés, normalmente tem apenas o significado exclusivo: por muitos, mas não por todos: a BJ [Bíblia de Jerusalém] expressa tal significado inclusivo traduzindo "pour une multitude" e, em nota de rodapé, explica que, com a "nova aliança", Jesus se atribui uma redenção universal. Assim também a TOB [Traduction Oecumenique de la Bible], assim como todos os mais renomados comentários hoje disponíveis.
Não se trata, por isso, de uma maior fidelidade ao texto revelado grego, mas sim de uma infidelidade: o "muitos" latino tem um valor semântico redutivo com relação ao "muitos" grego. A observação do cardeal Arinze (no ponto 3, d, e) é verdadeira exatamente no sentido oposto ao que disse acima: um comentário catequético ou espirituais seria necessário diante da tradução "por muitos", não, ao contrário, diante da "por todos".
O ouvinte italiano pensaria automaticamente em um sentido exclusivo – por muitos, mas não por todos – e seria preciso explicar que Jesus se ofereceu por todos, mas que o homem, cego pelo pecado, pode recusar tal oferta divina.
2 – Eu não sei se o cardeal Arinze e os seus colaboradores jamais fizeram uma experiência pastoral continuada em uma mesma paróquia. Nesse caso, deveria ser fácil para eles entender que todos os fiéis com menos de 50 anos nunca conheceram outra fórmula consacratória do que a atual, e os mais idosos – em sua maior parte – nunca entenderam a fórmula anterior, seja porque bem poucos conheciam o latim, seja porque a fórmula era pronunciada em voz baixa. Ouvindo de repente a passagem do "todos" para "muitos", eles certamente comentariam: "Veja, a Igreja deu marcha à ré. Jesus não morreu por todos, mas apenas por alguns", apesar de serem muitos. Os problemas pastorais para o pobre pároco são fáceis de imaginar.
3 – Eu considero que surgiria em muitos, imediata e espontânea, a ideia de uma Igreja que dá marcha à ré com relação à abertura de João XXIII e do Concílio, e se precavê contra possíveis e hipotéticas "poluições". Deve-se lembrar a afirmação conciliar – na Gaudium et Spes, n. 22: "Cum enim pro omnibus mortuus sit Christus cumque vocatio hominis ultima revera una sit, tenere debemus Spiritus Sanctus cunctis possibilitatem offerre ut, modo Deo cognito, huic paschali mysterio consocientur" ("Com efeito, já que Cristo por todos morreu, e a vocação última de todos os homens é realmente uma só, a saber, a divina, devemos considerar que o Espírito Santo dá a todos a possibilidade de se associarem a este mistério pascal por um modo só de Deus conhecido").
Se depois refletirmos – com ou sem razão – sobre uma possível conexão com a liberalização da missa pré-conciliar em latim e com os frequentes elogios da celebração de costas para o povo e voltada para o leste, isso pode insurgir o temor de que se ofusque totalmente o forte "sinal" da comunidade que renova a Ceia com plena compreensão e participação, reunida em torno do presbítero, que age in persona Christi.
Todas as grandes Constituições conciliares apareceriam – com ou sem razão – postas novamente em discussão. E, no plano pastoral, isso seria, em todo caso, um dano dificilmente reparável. Não basta não fazer: é preciso não dar a impressão ou despertar suspeitas de que se pretende fazer. Por esses motivos, teológicos e pastorais, considero o procedimento indicado na referida carta totalmente anormal e prejudicial para o anúncio do Evangelho. Confio que essas observações, mesmo que provenham de um modesto pároco, possam levar a repensar o procedimento.
Padre Enrico Chiavacci
Florença, 15 de dezembro de 2006.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
A instituição da Eucaristia e o ''por muitos''. Artigo de Enrico Chiavacci - Instituto Humanitas Unisinos - IHU