19 Agosto 2013
Bastou uma música para desencadear uma onda de violência contra os cristãos coptas e anglicanos de Bani Ahmad. Uma canção, mas qual? As múltiplas versões dos acontecimentos do sábado, 3 de agosto, nessa cidade ao longo do Nilo, 260 quilômetros ao sul do Cairo, alimentam todas as fantasias, nesse Egito profundamente dividido depois que, no dia 3 de julho, o presidente Morsi foi deposto pelo Exército.
A reportagem é de Serge Michel, publicada no jornal Le Monde, 13-08-2013. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
O inspetor de polícia enviado aos locais no dia seguinte é formal. O seu relatório, retomado por toda a imprensa egípcia, afirma que um jovem cliente cristão de um pequeno café, na entrada da parte oriental da cidade – 10 mil habitantes, cuja esmagadora maioria é cristã –, continuava tocando no seu smartphone o canto Benditas sejam as tuas mãos, Exército do meu país, composta em julho de 2013 por Mostafa Kamel e cantado por uma dezena de estrelas egípcias em homenagem à intervenção militar contra o presidente vindo das fileiras da Irmandade Muçulmana.
O filho do dono do bar, um muçulmano que jogava dominó com aquele cliente amante da música, teria lhe pedido para desligar o seu telefone. Com a recusa do interessado, os dois jovens foram às vias de fato.
Os testemunhos concordantes dos vizinhos do café nessa tua de Bani Ahmad-Leste, já ocupada pelas forças de segurança, pontilhada de carcaças de carros queimados, com lojas saqueadas e paredes enegrecidas, permitem que se compreenda que essa versão é falsa. Ela definitivamente tem o objetivo de jogar a responsabilidade sobre a Irmandade Muçulmana, que, entrincheirados nos seus acampamentos improvisados no Cairo e nas grandes cidades do país, desafiam as novas autoridades.
Para o farmacêutico, o açougueiro e os seus primos, a canção era Islameya, um hino à sharia (lei islâmica) e ao presidente Morsi, composta pela Irmandade Muçulmana depois da queda do seu poder e que é transmitida continuamente por TVs e rádios islamitas. "Egito islâmico, Egito islâmico, diga ao mundo que o Egito é islâmico, não secular, não secular".
O dono do café, um certo Abdu Moneim Radi, tinha colocado o volume da TV no máximo. Um jovem cristão de 19 anos, Hanna Dos, que comprava material agrícola na loja ao lado, pediu-lhe para diminuir o volume.
"Ele falou com arrogância", deploram pudicamente os seus correligionários. Chérif, o filho do dono do café, então, o agarrou pela camisa, logo ajudado pelo pai. Os transeuntes intervieram, tudo durou 15 minutos. Eram as 17 horas. Duas horas depois, circulava um boato nas mesquitas de Bani Ahmad-Oeste – 50 mil habitantes, de maioria muçulmana –, do outro lado do Estado: dizia-se que os cristãos do Leste haviam incendiado uma mesquita e matado 70 fiéis.
Algumas centenas de muçulmanos, então, correram para o Leste, e a eles se juntaram os habitantes de outros vilarejos mais ao Sul. Os cristãos, que tinham sido avisados, tinham fechado as lojas, preparado coquetéis molotov, carregado as espingardas, construído às pressas uma barricada e esperavam os adversários em cima dos telhados.
Os agressores, bem equipados, dispararam contra os tanques dos caminhões estacionados na entrada do vilarejo, que se incendiaram. Explodiram as correntes da farmácia, do açougue e de outras sete lojas para saqueá-las. Identificar as lojas de cristãos não foi difícil: à noite, em Bani Ahmad, assim como em toda a região, desconhecidos traçam cruzes nas fechaduras de ferro das lojas cristãs e a expressão "Allah Akbar" nas dos muçulmanos.
Os agressores provavelmente teriam penetrado mais a fundo no vilarejo, se não fosse a intervenção tardia, mas maciça, da polícia. Nos dias seguintes, cerca de 15 pessoas das duas comunidades foram presas.
"Colocaram na prisão os nossos jovens mais bonitos, aqueles que fazem atividades físicas", chora uma mãe, abrindo pela primeira vez em uma semana a porta da igreja evangélica do Messager. Entre os cristãos, a teoria da conspiração é a mais difundida. "Eles tinham preparado o seu ataque há muito tempo", continua a mulher. "Levaram embora as mulheres e as crianças dos seus vilarejos antes de vir aqui. Eles queriam nos degolar".
Chega o pastor e usa uma linguagem mais conciliadora. Fauzi Ibrahim Bolis, 75 anos, faz parte da delegação de dez sábios cristãos do vilarejo que negociaram durante toda a noite da sexta-feira, 9, ao sábado, 10 de agosto, um acordo de reconciliação com dez sábios do lado muçulmano. "É tudo culpa dos jovens, de ambas as partes. Estão ansiosos demais. Nós, anciãos, nos pusemos de acordo para tomar a situação nas mãos novamente".
De acordo com fontes bem informadas, as negociações haviam começado mal. Os muçulmanos tinham posto como condição o abandono de qualquer denúncia e de qualquer pedido de indemnização por danos, afirmando que os cristãos tinham interesse em aceitar, porque poderia haver outros ataques. Nessa região do Alto Egito, os cristãos, sobretudo coptas ortodoxos, mas também protestantes, representam uma parte importante da população (enquanto representam apenas entre 5% e 10% dos 83 milhões de egípcios). Aqui, as suas terras são mais extensas e mais férteis do que as dos muçulmanos.
A esses velhos ciúmes, somou-se, no dia 3 de julho, a presença do papa copta Tawadros II ao lado do general Sissi (e do grande xeique da universidade islâmica de Al-Azhar) no anúncio da destituição do presidente Morsi. Desde então, ataques contra os coptas têm ocorrido no Sinai, no Cairo e em Luxor, com uma dezena de mortos. A tal ponto que Tawadros cancelou no dia 8 de agosto a missa da catedral de São Marcos, na capital, não muito longe do lugar onde Jessica Boulos, uma menina copta de 10 anos, havia sido morta com um tiro no coração dois dias antes.
Nenhuma compensação pelos danos? Para o farmacêutico Georges Mounir, que perdeu todo o seu inventário e o seu computador, ou para o açougueiro Eshak Fenous Abd El-Malek, proprietário também de um restaurante destruído, a pílula é amarga. Nem um nem outro sabem como poderão retomar as suas atividades.
"O ressarcimento dos danos é a paz", retoma o pastor Faouzi Ibrahim Bolis. "O reembolso é Deus quem vai nos dar. Felizmente, não houve mortes. Não conseguiríamos consertar as coisas tão facilmente". Na realidade, houve um morto, mas todo mundo finge esquecer. No dia seguinte ao ataque, foi encontrado o corpo de um homem ao longo da rodovia estatal. Mas como não era da cidade, Bani Ahmad o fez entrar na conta de lucros e perdas, e agora, no lado cristão, falam em um politiquês composto por palavras de fraternidade e de serenidade reencontradas. Por exemplo, Azmi Mahrous Bilates, comerciante de grãos aposentado, recebe em sua casa uma delegação política que faz de tudo para tranquilizá-lo.
"É tudo culpa dos norte-americanos", diz um dos seus visitantes, membro do movimento Tamarrod ("rebelião"), que exigiu e obteve a destituição do presidente Morsi. "São eles – os norte-americanos – que apoiam esses terroristas da Irmandade Muçulmana e entregam a eles armas de origem líbia", acrescenta um dos seus colegas.
Um breve passeio por Bani Ahmad-Oeste permite relativizar esse otimismo. Certamente, ninguém conhece as pessoas que participaram do ataque: "Não foi nem um ataque", conta um homem em frente a um restaurante de rua, "apenas uma pequena briga entre dois jovens. Ninguém sabe por que nove lojas da parte Leste foram queimadas". "Certamente, incendiaram as suas lojas para poderem nos acusar", diz outro cliente, enquanto come sua porção de frango.
A tensão continua alta. "Os cristãos sempre querem queimar as nossas mesquitas e estuprar as nossas mulheres", afirma um terceiro, vestido uma longa djellaba azul. "Eles estavam todos armados, nós não. Há muitos terroristas entre os cristãos", retoma o segundo, que terminou o frango.
"Por enquanto, os nossos líderes estão no Cairo, nos campos de Rabiya e de Nahda, para exigir o retorno do presidente Morsi", conclui o homem com a djellaba. "Esperamos o seu retorno para saber como responder a todas essas provocações dos cristãos".
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Os coptas, vítimas da crise política egípcia - Instituto Humanitas Unisinos - IHU