19 Agosto 2013
Há alguns meses, depois da renúncia de Hosni Mubarak e da eleição de Mohamed Morsi para a presidência do Egito, muitos governos ocidentais, incluindo o dos Estados Unidos, acreditaram que a Irmandade Muçulmana finalmente tinha amadurecido, no decorrer da sua longa história, um projeto político compatível com os princípios das sociedades democráticas. Havia sinais promissores.
A reportagem é de Sergio Romano, publicada no jornal Corriere della Sera, 17-08-2013. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Nos países muçulmanos, a Turquia, de Recep Tayyip Erdogan, havia se tornado popular até mesmo aos olhos daqueles ambientes islâmicos que tinham um passado jihadista. No Marrocos e na Tunísia, os partidos filiados à Irmandade (Partido Justiça e Desenvolvimento, Ennahda) pareciam dispostos a respeitar as regras do jogo democrático. Na Tunísia, em particular, o Ennahda havia demonstrado estar pronto para liderar um governo de coalizão com os maiores partidos seculares. Na Jordânia, o xeique Hamzeh Mansour, líder da Frente de Ação Islâmica, parecia pronto para percorrer o mesmo caminho.
Até mesmo o surgimento, principalmente no Egito, de um movimento salafista, muito mais radical e intransigente, deixava esperar que a Irmandade se livraria do seu componente integralista e se tornaria, consequentemente, menos perigosa. Quem acreditava indubitavelmente nisso era a senhora Anne Paterson, embaixadora dos EUA no Cairo, quando começou a frequentar Morsi publicamente e o líder supremo dos Irmãos, Mohamed Badie.
Hoje, o quadro mudou. Mesmo aqueles que desaprovam os métodos do general Al-Sisi e condenam o banho de sangue dos últimos dias admitem que a linha política adotada pelos Irmãos depois da conquista do poder se tornou inquietante. Alcorão demais, sharia demais, muitas tentações autoritárias, muita hostilidade para os costumes seculares de uma grande parte da classe média e dos jovens da Praça Tahrir.
Depois de ter prometido moderação e compreensão, Morsi pareceu, com o passar do tempo, cada vez mais prisioneiro da facção agressiva e militante. Hipocrisia? Duplicidade? Maquiavelismo islamista? A resposta a essas perguntas está, ao menos em parte, na história da Irmandade e das suas experiências.
Origens
O movimento nasceu em Ismailia, no Canal de Suez, em março de 1928. O seu fundador, Hassan Al-Banna, era um piedoso professor de escola, crescido em uma família que tinha militado devotamente em uma fraternidade mística. Era nacionalista e anticolonialista, mas profundamente convencido (contrariamente aos nacionalistas liberais do Wafd) de que somente a religião abriria ao povo egípcio o caminho da redenção e da salvação.
Quando ele falava aos seus compatriotas, ele dizia: "Nós desprezamos esta vida, uma vida de humilhação e de escravidão. Os árabes e os muçulmanos, aqui neste país, não têm espaço nem dignidade, e não fazem nada para se opor ao seu status de assalariados, à mercê dos estrangeiros".
Essa mensagem social e espiritual logo teve um sucesso extraordinário. Massimo Campanini e Karim Mezran, autores de Arcipelago Islam (Ed. Laterza, 2007), lembram que, quatro anos depois, em 1932, Al-Banna levou a direção do movimento ao Cairo, difundiu o seu verbo em todo o país, criou uma sólida organização que podia contar com 150 filiais em 1936, 216 em 1937, 20 mil seguidores em meados dos anos 1930, talvez 500 mil em 1944, um milhão depois do fim da Segunda Guerra Mundial.
Nos mesmos anos, a Irmandade atravessava as fronteiras do Egito e começava a criar as suas filiais nos outros países do norte da África e do Levante. Já era um movimento político, com os seus filiados e os seus congressos, mas também uma associação humanitária capaz de gerir escolas, hospitais, organizações juvenis.
A verdadeira reviravolta, no entanto, ocorreu no fim dos anos 1940, quando um ramo da Irmandade se tornou o seu braço armado, um aparato secreto pronto para se engajar nas lutas políticas e nacional-religiosas, como o conflito contra o novo Estado de Israel em 1948 . Preocupado com as dimensões e com a crescente agressividade do movimento, o primeiro-ministro egípcio, Fahmi al-Nuqrashi, decidiu bani-lo e morreu, vítima de um atentado, em dezembro de 1948. Três meses depois, veio a vingança das autoridades: Al-Banna foi ferido no decorrer de uma manifestação e "deixado exangue à beira da morte pela polícia". A Irmandade tinha perdido um líder e ganhado um mártir.
A queda da monarquia e a proclamação da República em 1952 pareceram marcar o início da reconciliação e da convivência. Elevado à presidência pelos jovens oficiais, o general Mohamed Neghib não era hostil à Irmandade, e esta, por sua vez, tinha saudado com alegria o fim da dinastia e o exílio do rei Farouk.
Mas, quando se livrou de Neghib e herdou a presidência, o coronel Nasser não quis concorrentes. Um atentado fracassado contra a sua pessoa em outubro de 1954 deu-lhe a oportunidade para decapitar, literalmente, a Irmandade. Os seus líderes e os seus militantes foram presos, torturados, enforcados: uma purga que durou ininterruptamente até a morte do superior em 1970.
Esse confronto entre as duas almas do Egito – a secular e socialista de Nasser contra a espiritual e social dos sucessores de Al-Banna – teve o efeito de tornar a Irmandade ainda mais militante e alternativa. Campanini e Mezran assinalam sobretudo o papel de um intelectual, Sayyid Qutb, executado em 1966, que enviou da prisão, onde passou os últimos 12 anos da sua vida, uma mensagem cada vez mais subversiva e radical.
Durante as presidências dos sucessores de Nasser – Anwar Al-Sadat e Hosni Mubarak –, as relações entre o governo e a Irmandade foram menos tensas. Os presidentes desconfiavam dos Irmãos, mas se aproveitaram das suas atividades sociais, e Mubarak, em particular, permitiu que eles tivessem uma presença limitada no Parlamento.
De dentro do movimento, enquanto isso, continuavam saindo sinais diferentes, ora reconfortantes, ora indicativos da existência de um componente radical que não estava disposto a depor as armas. A eleição de Morsi e os erros da sua presidência demonstrado que o movimento ainda não conseguiu superar as suas contradições. O que aconteceu nas últimas horas só poderá exacerbá-las.
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Os dois rostos da Irmandade Muçulmana: caridade social e Islã radical - Instituto Humanitas Unisinos - IHU