15 Julho 2013
A uma certa altura de minha infância no oeste do estado de Kansas, embora eu realmente não me lembre exatamente de quando, assistimos a um curso básico sobre a história do Kansas. Ele se concentrou em personalidades famosas ligadas ao estado: Dwight D. Eisenhower, por exemplo, e Amelia Earhart, e William Allen White (um famoso jornalista de Emporia e líder do movimento progressista do século XIX).
Um nome do qual nunca ouvi falar na época em que me criei, entretanto, foi o do Pe. Juan de Padilla, que muitas pessoas creem ser o primeiro mártir das Américas.
O missionário franciscano e companheiro de Coronado morreu nas mãos dos indígenas Quivira em 1542, a apenas cerca de 160 km em linha reta do lugar onde me criei. Coronado e seus soldados já tinham abandonado o Kansas, frustrados por não ter encontrado uma cidade de ouro, mas o Pe. Padilla ficou para trás crendo que o verdadeiro tesouro era o povo do Novo Mundo.
De acordo com o arcebispo José Gómez, de Los Angeles, presidente do Comitê de Migração da Conferência dos Bispos dos Estados Unidos, essa omissão em minha formação escolar ilustra um defeito grave na forma como a história nacional americana é transmitida e compreendida.
Gómez acaba de lançar um novo livro intitulado Immigration and the Next America: Renewing the Soul of Our Nation [Imigração e os próximos Estados Unidos: a renovação da alma de nossa nação], publicado por Our Sunday Visitor. Grande parte de seu argumento é que a ambivalência dos Estados Unidos para com a imigração se baseia em uma memória seletiva, especificamente na maneira como a história dos Estados Unidos geralmente começa com estadistas anglo-protestantes, e não com os missionários católicos hispânicos.
A reportagem é de John Allen Jr. e publicada por National Catholic Reporter, 12-07-2013.
Natural de Monterrey, no México, e cidadão americano naturalizado, Gómez insiste que “a presença hispânica tem raízes profundas neste solo”.
“Muito tempo antes de que os Estados Unidos tivessem um nome, muito tempo antes de que houvesse Washington D.C. ou Wall Street, esta terra era espanhola e católica”, diz Gómez no livro. “Todo americano atualmente, de alguma forma, tem uma dívida espiritual para com esses grandes missionários católicos hispânicos dos séculos XVI e XVII”.
Como parte desse cenário, Gómez lembra os católicos americanos de suas raízes imigrantes e sustenta que as pessoas católicas têm uma obrigação especial de promover a compaixão.
No nível de política pública, Gómez admite a necessidade de maior segurança nas fronteiras e concede que “não há uma única ‘posição católica’ sobre a imigração”. Tendo dito isso, ele expõe um programa de quatro pontos para definir o que seria uma abordagem mais sensata da imigração.
• Dar aos imigrantes sem documentação a chance de obter a residência permanente e, por fim, a cidadania, especialmente à maioria que já está no país há cinco anos ou mais.
• Estabelecer uma moratória para as deportações, exceto no caso de pessoas que tenham cometido crimes graves.
• Promover a reforma e o desenvolvimento econômicos na América Latina, especialmente nos países mais pobres da região, para reduzir o incentivo à migração.
• Proteger os mais vulneráveis migrantes, especialmente mulheres e crianças, contra o tráfico de seres humanos e outros abusos.
O cerne do argumento de Gómez, que ele repete como um mantra ao longo do livro todo, é que “a imigração tem a ver com mais do que apenas com a imigração”.
Na verdade, ele crê que os debates sobre a imigração representam tensões mais amplas em torno dos “próximos Estados Unidos” que estão tomando forma atualmente, destinados a ser significativamente menos brancos e menos europeus, moldados por novas chegadas de pessoas da América Latina, África e Ásia.
Em sua opinião, a questão é a seguinte: o que vai prevalecer na moldagem das políticas públicas referentes a essas transições: os temores e o preconceito nativistas ou os ideais nacionais americanos de igualdade e oportunidade?
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Por falar em imigrantes, o papa Francisco dedicou sua primeira viagem fora de Roma na segunda-feira a uma vigorosa declaração de solidariedade.
O pontífice viajou para a ilha de Lampedusa, no sul do Mediterrâneo, que é um importante ponto de chegada para migrantes provenientes da África e do Oriente Médio que tentam entrar na Europa. Ele queria honrar a memória das cerca de 20 mil pessoas que morreram tentando cruzar o mar e mostrar compaixão para com as que sobreviveram.
Ao chegar lá, Francisco entrou num barco para jogar uma coroa de flores no mar em honra dos mortos. Ouviu-se por acaso que ele expressou preocupação com a possibilidade de que as pessoas não entendessem o espírito de sua visita. A intenção era que esse fosse um ato penitencial, disse ele, não um encontro de animação.
Se alguém não entendeu isso, não foi porque Francisco não houvesse tentado. Os sinais visuais eram impressionantes: o papa vestiu roxo penitencial para o dia e celebrou missa em um altar feito da madeira de um barco usado por migrantes que atravessaram o mar. Ele falou de um púlpito que mostrava seu leme e tinha uma cruz pastoral e usou um cálice também feito da madeira do barco.
Francisco se postou junto aos imigrantes e escutou suas histórias, e a uma certa altura parou debaixo de um banner que dizia: “Você é um de nós!”
(É claro que Jorge Mario Bergoglio é filho de imigrantes italianos na Argentina. Na noite de sua eleição ao papado, ele disse que os cardeais o tinham convocado para ir a Roma vindo “do fim do mundo”, o que fazia dele mesmo uma espécie de imigrante).
O cerne de sua mensagem na segunda-feira foi uma forte condenação do que Francisco chamou de “globalização da indiferença” em relação ao sofrimento das pessoas que deixavam suas casas em busca de uma vida melhor.
Sua homilia culminou num mea culpa explícito.
“Senhor, imploramos perdão por nossa indiferença para com tantos de nossos irmãos e irmãs”, disse Francisco. “Pai, pedimos teu perdão para as pessoas que são complacentes e se fecham entre confortos que amorteceram seus corações; imploramos teu perdão para aqueles que, por suas decisões em nível global, criaram situações que levam a essas tragédias.”
Mais tarde naquele mesmo dia, ele enviou um tuíte que resumia o espírito da viagem: “Oramos por um coração que abrace os imigrantes. Deus nos julgará com base na maneira como tratamos os mais necessitados.”
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Depois de um silêncio diplomático de cerca de 24 horas, as forças políticas italianas associadas com uma linha mais dura quanto à imigração começaram a reagir à viagem do papa. Algumas foram educadamente nuançadas; outras expressaram desprezo explícito.
Fabrizio Cicchitto, líder do partido direitista Povo da Liberdade no parlamento italiano, disse que “pregação religiosa” é uma coisa, ao passo que “lidar com um problema difícil por parte do Estado” é outra bem diferente. Ele disse que os comentários do papa ilustram a necessidade de uma “autonomia verdadeira e real do Estado em relação à igreja”.
Erminio Boso, porta-voz da Liga Norte de extrema direita, foi consideravelmente menos comedido. Anunciando que ficava contente quando um barco cheio de pretensos imigrantes soçobra, Boso disse: “Estou me lixando para o papa [...] o que eu pediria é que ele providencie dinheiro e terra para esse pessoal de fora da Comunidade Europeia”, referindo-se aos migrantes que tentam entrar na Europa.
Roberto Calderoli, outro membro da Liga Norte e ex-ministro do governo de Silvio Berlusconi, observou que o próprio Vaticano tem uma força policial que expulsa fisicamente as pessoas que tentam entrar sem autorização.
Calderoli disse que as observações feitas pelo papa em Lampedusa foram “belas e tocantes, mas as leis são outra história, como demonstram aquelas que estão em vigor no Vaticano”.
Giuliano Ferrara, uma autoridade conservadora popular, repreendeu Francisco por não ser suficientemente entusiástico em relação à globalização. Aliás, Ferrara também disse que Bento XVI é “o mais extraordinário pensador cristão do século”, enquanto que Francisco fala de coração. (Na verdade, Ferrara usou uma expressão idiomática imprópria em italiano que significa, grosso modo, que Francisco fala com franqueza, sugerindo que seus comentários muitas vezes carecem de precisão).
O La Repubblica, principal jornal de centro-esquerda da Itália, mal e mal conteve sua alegria.
Depois de anos em que a centro-direita podia se fiar no apoio do Vaticano por causa de suas posições sobre assuntos “não sujeitos a negociação”, como, por exemplo, aborto, eutanásia e casamento entre pessoas do mesmo sexo, os conservadores se encontram subitamente “órfãos” sob um papa que enfatiza “a proclamação do evangelho sem falso verniz, o que significa atenção aos mais pequeninos e pobres”.
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Como quer que os italianos tenham reagido, provavelmente ninguém nos Estados Unidos vibrou mais com o desempenho do papa do que Gómez, que disse esperar que isso ajude a convencer a base dos católicos americanos de que a imigração não é meramente um assunto econômico ou político, mas uma “questão moral”.
(Gómez, aliás, é visto convencionalmente como bastante conservador em questões doutrinárias e morais, o que é outra ilustração de que ver tudo pelo prisma de esquerda versus direita muitas vezes não nos leva longe. Digamos assim: se ele fosse italiano, provavelmente não seria um grande fã da linha editorial do La Repubblica).
Na terça-feira, consegui fazer contato por telefone com Gómez em El Paso, no Texas, onde ele participava da missa de instalação do bispo Mark Seitz. Falamos sobre seu livro, as perspectivas para a reforma da imigração em 2013 e a visita do papa a Lampedusa.
O que se segue são trechos da entrevista.
Eu me criei no Kansas e frequentei escolas católicas, mas nunca ouvi falar da história do Pe. Juan de Padilla. Suponho que o senhor diga que isso ilustra um problema com a forma como ensinamos a história dos Estados Unidos?
Gostaria de ressaltar que nossa história nos Estados Unidos é incompleta, e há muitas razões para isso. Uma delas é que a história geralmente é escrita pelos vencedores, e outra é que nossa compreensão foi condicionada por uma “lenda negra” contra os católicos, que, por sua vez, refletia problemas existentes entre a Inglaterra e a Espanha na época em que o país foi fundado. Qualquer que seja a explicação, essa é uma parte importante da história que as pessoas geralmente não conhecem, e nós precisamos conhecê-la.
O senhor acredita que isso influenciaria a maneira como pensamos sobre a imigração?
Quando se pensa sobre o esforço que essas pessoas fizeram para trazer os frutos do evangelho para este país, é simplesmente assombroso. Pensemos em Antonio Margil de Jesús [missionário espanhol no México e no Texas no início do século XVIII]. Ele fez sete viagens entre o México e Houston no início do século XVIII, fazendo sacrifícios incríveis para trazer a civilização e o cristianismo para estas terras. Creio que o apreço que os americanos têm pelos hispânicos seria muito diferente se soubessem que eles estiveram aqui desde o início e foram muito importantes no desenvolvimento deste país.
Outra parte da história é a seguinte: Jean-Baptiste Lamy se tornou o primeiro arcebispo de Santa Fe depois de se mudar de Cincinatti para o que agora é o Novo México em 1850. [Nota: Lamy inspirou a obra Death Comes for the Archbishop, de Willa Cather]. Quando chegou a Santa Fe, ele teve de aprender espanhol. Começou falando francês e mais tarde aprendeu inglês, mas em Santa Fe o povo falava espanhol, e todas as homilias dele eram em espanhol. Missionários como Lamy não tinham outro objetivo senão construir uma grande civilização nestas terras, e acho que nos dá uma outra compreensão reconhecer o quanto disso foi feito em espanhol.
Quanto à questão da língua, a propósito, não precisamos nos preocupar com o desaparecimento do inglês como língua nacional. Os filhos dos imigrantes de hoje vão se criar falando inglês.
O senhor afirma que a imigração é diferente do aborto e do casamento porque não há uma única posição católica correta. Gostaria de lhe perguntar se o senhor acha que um católico pode, em sã consciência, apoiar o status quo.
Não, acho que não. Acho que todos sabemos que o sistema está falido. Ele tem consequências horríveis para as pessoas que já estão aqui, criando uma sensação de medo e uma classe baixa permanente. Também está falido para as pessoas que ainda não estão aqui porque não oferece uma forma legal de entrar no país e as obriga a arriscar sua vida. Não é moralmente certo.
O senhor quer dizer que pode não haver uma única solução católica, nas nenhum católico pode, em sã consciência, negar que há um problema?
Sim. Não podemos ignorar o sofrimento dessas pessoas porque elas são filhos e filhas de Deus.
Os pastores muitas vezes dizem que não gostam de pregar sobre a imigração porque seu povo está dividido. Como o senhor percebe a opinião na base católica?
Na Conferência dos Bispos temos estatísticas que mostram que cerca de 70% dos católicos americanos concordam que precisamos de uma reforma da imigração, mas sabemos que esse assunto causa divisão. Acho que uma parte do problema é que muitos católicos não sabem exatamente o que a igreja apoia ou o que nós bispos estamos dizendo. Por exemplo, ninguém está apoiando a imigração ilegal. Somos a favor da imigração legal.
Sempre que me manifesto publicamente, recebo e-mails e cartas furiosas, e esta é uma parte da razão pela qual escrevi o livro. Não estamos defendendo a violação de leis, mas temos 11 milhões de pessoas neste país agora, e precisamos encontrar uma solução. Temos de encontrar formas de as pessoas se mudarem legalmente de um país para outro. O que estamos criando é um sistema que deixa todo um grupo de pessoas sem igualdade, sem acesso à cidadania.
Sei que a reação [a posições a favor dos imigrantes] entre muitos católicos é negativa, mas se eles realmente soubessem o que está acontecendo e refletissem sobre isso, creio eu mudariam de opinião.
Quais são, em sua opinião, as perspectivas políticas atualmente para a reforma da imigração?
Tenho a esperança de que algo vá acontecer. Há um movimento político, como vimos no Senado, para chegar a uma solução envolvendo os dois partidos. Por outro lado, também tenho a preocupação de que, por causa das realidades políticas, eles não consigam terminá-la. Se não conseguirem terminar até o final do verão ou o início do outono, o assunto provavelmente vai ficar morto durante dois anos, porque estamos entrando em outro ciclo eleitoral.
O que o senhor acha da visita do papa a Lampedusa?
Acho que o Santo Padre mostrou sua preocupação indo até lá e dizendo claramente que isso não está certo. Precisamos ajudar as pessoas a entender que não estamos falando apenas sobre políticas públicas, mas sobre a vida de homens, mulheres e crianças que são iguais a nós. Vamos divulgar uma declaração na Conferência dos Bispos dizendo que o papa Francisco foi [a Lampedusa] para honrar as pessoas que morreram fazendo a travessia para a Europa, e a mesma coisa acontece no nosso país com pessoas que atravessam a fronteira no sul.
Acho que a decisão dele de fazer a viagem, e depois o que ele disse, pedindo perdão pela forma como negligenciamos as pessoas que entram em nossos países, mostra que abrir nosso coração para os imigrantes é uma parte essencial da fé católica. Lembremos que o próprio Jesus e a Sagrada Família eram imigrantes. Cuidar do estrangeiro e do imigrante é um elemento central da fé, e o papa nos lembrou disso de uma maneira vigorosa.
Da próxima vez que o senhor receber uma ligação ou carta furiosa, ficará tentado a dizer “Olhe para o papa”?
Com certeza! A viagem foi surpreendente e reveladora. Ele salientou que esse debate não tem a ver só com a economia e que essas pessoas não são apenas outro número ou algo que se deva temer. São irmãos e irmãs nossos. Sua primeira viagem foi para ir ao encontro dessas pessoas e pedir perdão por não abrirmos nossos corações, nossas almas e nossos países para elas. Espero que ela ajude os católicos a perceber que essa não é apenas uma questão econômica e jurídica, mas uma questão moral e de fé. Ela tem a ver com a essência do cristianismo.
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Francisco e arcebispo combatem a indiferença aos imigrantes - Instituto Humanitas Unisinos - IHU