Por: Jonas | 22 Mai 2013
Desde os anos 1980, o Chile é apresentado a partir dos centros do poder como o aluno destacado da região, o modelo que os demais países da América Latina deveriam imitar. Os dados macros do governo de Sebastián Piñera parecem acompanhar esta tese: crescimento de 5,8%, baixa inflação, baixíssimo desemprego. Porém, nem tudo o que brilha é ouro. O mal-estar social – manifestações estudantis, greves portuárias e do cobre, entre outras coisas – possui um correlato econômico.
Segundo o economista chileno da Universidade de Cambridge, José Gabriel Palma, tudo está por um fio muito fino: o alto preço do cobre. “Se esse fio arrebenta, podemos cair mais fundo do que na crise de 1982, quando o Produto Interno Bruto (PIB) caiu 20%, entre o terceiro trimestre de 1981 e de 1983, o desemprego chegou a 30% e a população no nível de pobreza duplicou. Mesmo se isso não acontecer, não vejo como poderemos sustentar a atual bonança, que não foi usada para o investimento, mas no consumo”.
Um sinal deste desequilíbrio econômico profundo é a conta corrente da balança de pagamentos que, segundo Palma, passou de um excedente de 3,2 bilhões de dólares, em 2009 (e 7,1% em 2007), para um déficit de 9,5 bilhões de dólares, em 2012; ou seja, uma deterioração de quase 17 bilhões de dólares em cinco anos, equivalente a 8% do PIB. “Esta economia em expansão, precariamente sustentada por uma bonança temporal no preço do cobre, é o grande “Cavalo de Troia” que Piñera generosamente deixará para o próximo governo”, destacou para o jornal Página/12, numa entrevista na qual analisou, profundamente, a precária saúde do modelo chileno.
A entrevista é de Marcelo Justo, publicada no jornal Página/12, 19-05-2013. A tradução é do Cepat.
Eis a entrevista.
Criticou-se a dívida social do Chile, mas raramente seu modelo econômico foi questionado. Quais são as deficiências da estratégia econômica?
Há dois temas. O primeiro é que mesmo que o Chile teve com um período de crescimento rápido de 1984 até 1998, 6,9% por ano, não foi capaz de sustentá-lo. Em 1998, o investimento privado, o crescimento e a produtividade caíram, e não voltaram a se recuperar até 2010. Ou seja, o Chile ficou estancado economicamente, em 1998, e depois cresceu dentro da taxa típica da América Latina, 3,6% por ano, na década seguinte. No entanto, nos últimos três anos, a economia voltou a ganhar dinamismo e cresceu 5,8%.
Aqui vem o segundo tema. Este crescimento, dos últimos três anos, depende de um fio: o alto preço do cobre. Na América Latina, o Chile é o país que mais se beneficiou com o aumento das commodities. E a sociedade chilena não somente está consumindo, como se este preço do cobre fosse permanente, como também já está, inclusive, gastando muito mais do que tem. De tal forma que não apenas está consumindo as rendas desta bonança temporal no preço do cobre, ao invés de investi-las, como também a expandiu. O resultado é que a conta corrente da balança de pagamentos, que até muito pouco tempo atrás tinha um superávit de quase 5% do PIB, hoje, possui um déficit de 4%, que continua aumentando. E isso com um preço altíssimo do cobre.
De fato, se no ano passado o preço do cobre tivesse sido o que era antes do boom das matérias-primas, que começou em 2003, a conta corrente da balança de pagamentos teria ficado com um déficit de 18% do PIB, maior do que em 1981 e 1982, com a grande crise que o governo de Pinochet sofreu. Em números redondos, em 2012, o Chile gastou quase 50 bilhões de dólares a mais do que poderia gastar se o cobre estivesse em seu preço histórico normal e sua conta corrente equilibrada; isto equivale a 3 mil dólares por habitante, ou o PIB por habitante do Paraguai, Guatemala ou El Salvador.
Então, em nível de modelo econômico, pode-se dizer que há uma perfeita continuidade entre a ditadura de Pinochet e os governos da Concertación e o atual de Piñera.
Sem dúvida, em nível de política econômica, há uma grande continuidade. A lógica de funcionamento do setor público, a falta de concorrência no privado, a política monetarista do Banco Central, o crescente grau de financeirização da economia, a ausência de política industrial e comercial, o sistema impositivo altamente regressivo, refletem as mesmas regras do jogo da ditadura na democracia. Os royalties na mineração são um exemplo. O royalty que Ricardo Lagos inventou para a mineração é apenas para dizer que no Chile há royalty. Na atualidade, este equivale a menos de 2% dos lucros das mineradoras privadas. Com o passado, a ruptura que houve é que a Concertación buscou implementar o mesmo modelo com um rosto mais humano, com um maior gasto social. O nível de pobreza baixou de 40 para 15%, mas na distribuição de renda o efeito foi mínimo. Hoje, 1% do Chile ainda concentra 30% da renda nacional. E na saúde e educação houve uma grande melhora quantitativa, com um aumento, por exemplo, do número de estudantes com acesso à universidade, mas a qualidade dessa educação e seu custo deixam muito a desejar.
Com a derrota da Concertación, nas últimas eleições, pode-se dizer que este modelo econômico com rosto humano entrou em crise?
Não resta dúvida de que tiveram grupos no Chile, como os estudantes, que disseram chega, nós não queremos mais isto. Entretanto, não foi por isso que a Concertación perdeu as eleições em 2010. Ela perdeu porque apresentou um candidato muito ruim e porque existia um cansaço generalizado, após quatro governos consecutivos, o que fez com que as pessoas buscassem algo diferente. No entanto, as coisas mudaram tão pouco no Chile, que se diz que Piñera é o quinto presidente da Concertación.
Os protestos estudantis, as greves mineiras e portuárias, não são justamente sinais de esgotamento do modelo econômico-social?
Esse modelo claramente começa a virar água. Os estudantes disseram um basta a esta educação de qualidade muita duvidosa e de custo altíssimo. No Chile, a matrícula universitária é a mais cara da OECD [Organização de Cooperação e Desenvolvimento Econômico], uma vez que relaciona o custo com a renda por habitante. Muitos trabalhadores, como na mineração, também disseram um basta à subcontratação e ao abuso do trabalho e baixos salários – de acordo com os números oficiais, dois terços dos trabalhadores não especializados, 60% dos trabalhadores jovens e mais de 40% de todos os trabalhadores da economia ganham um salário e meio ou menos -. E isto numa economia que, segundo o FMI, tem uma renda por habitante de 18 mil dólares. Há um descontentamento social, mas não significa que haja uma crise institucional ou política. Nas eleições, o mais provável é que a Concertación retorne com Bachelet.
Você acredita, então, que a crise poderia ser originada mais pela mão da economia?
Ninguém tem uma bola de cristal, mas o que diria, minimamente, é que a atual economia, baseada no preço do cobre, é o grande Cavalo de Troia que este governo deixará para o próximo. O Chile gastou todo o excedente destes anos no consumo, em particular, via importação, sem fazer os gastos produtivos e sociais que tanto são necessários, da forma como o presidente José Manuel Balmaceda fez, no século XIX, com a bonança do salitre.
Balmaceda investiu os lucros tanto em capital físico, como humano, para criar capacidades produtivas que assumiram o lugar do recurso natural quando este se desinflou. Durante seu governo, criou um imposto para as exportações de salitre, que chegou a um terço do valor das exportações, e com esses recursos dobrou o número de estudantes na educação primária e secundária e desenvolveu um grande programa de obras públicas, especialmente estradas de ferro. O investimento público no capital físico foi quadruplicado, em termos reais, e a de educação foi incrementada oito vezes mais. Para fazer isto hoje, primeiro, seria necessário aplicar um royalty verdadeiro nas mineradoras privadas de cobre, que constituem as duas terceiras partes da exportação, e, em seguida, usar estes recursos para o investimento em capital humano e físico. Porém, nada disso está sendo feito.
O contra-argumento é que este preço do cobre pode ser mantido.
O que realmente explica o preço do cobre é a especulação, porque os mercados financeiros internacionais estão tão líquidos e com tão poucas alternativas relativamente seguras onde especular, que as commodities, que ao menos crescem 3 % ou 4%, passam a ser muito atrativas. Hoje, as Bolsas de comércio de Nova York, Londres e Frankfurt voltaram novamente aos níveis mais altos que tiveram antes da crise. Existe alguém que realmente acredita que isto reflete algum fundamento em economias estagnadas ou semi-estagnadas, com investimento no solo, setores públicos endividados até a alma e com a zona do euro em perigo de implodir? Todos os fundamentos da economia mundial são um desastre e, apesar disso, as ações estão em níveis recorde. O mesmo acontece com o cobre, onde a demanda mundial cresce de 3 a 4% anualmente – o mesmo que a média de há 200 anos -, mas, o preço do metal está três vezes o histórico. Neste fio nos apoiamos.
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“O Chile gasta muito mais do que tem”, afirma economista - Instituto Humanitas Unisinos - IHU