Depois de 25 anos de governos civis, a
Guatemala, com sua longa e perversa tradição de ditaduras sanguinárias e genocidas, volta a ter um militar na presidência. Desta vez não será um general escorado no poder dos fuzis:
Otto Pérez Molina foi eleito por 54% dos votos. E não será um general qualquer: trata-se de um profissional com sólida formação nos centros de treinamento dos Estados Unidos, especializado em contrainsurgência e de trajetória amplamente reconhecida.
A reportagem é de Eric Nepomuceno e publicada por
Carta Maior, 08-11-2011.
Aliás, tão reconhecida que mereceu uma dura condenação da
Corte Interamericana de Direitos Humanos, pelos crimes de lesa-humanidade que cometeu enquanto comandou um destacamento militar na região de
Quiché, na década de 80, quando se registraram na região matanças massivas de indígenas. Mais tarde, numa irônica coincidência,
Otto Pérez Molina foi o representante do Exército nas negociações com a guerrilha da
Unidade Revolucionaria Nacional Guatemalteca (URNG), de onde saíram os acordos de paz firmados em dezembro de 1996, e que deram início a esses 25 anos de presidentes civis.
O discurso de campanha do general vencedor, hoje na reserva, se baseou em dois pontos. O primeiro: é preciso acabar com o crime e a violência. O segundo: é preciso fortalecer as instituições e salvar as finanças.
Ele tem razão: com a média de 52 assassinatos para cada cem mil habitantes, a
Guatemala é um dos países mais violentos do mundo. Quanto às instituições e às finanças, melhor nem mencionar. Depois da guerra civil que se estendeu por 36 anos e deixou mais de 200 mil mortos, o que emergiu dos acordos de paz de 1996 foi um país em frangalhos, com instituições em ruínas e finanças devastadas por gastos militares e corrupção crônica. Os tais vinte e cinco anos de governos civis foram um tempo de incapacidade. A situação só fez piorar, com alguns breves instantes de trégua que logo foram sucedidos por outros de mais afundamento.
Resta saber o significa, para
Pérez Molina, aplicar mão de aço para acabar com a violência. Será que tentar trucidar as quadrilhas de delinqüentes juvenis – as
maras – e os cartéis do narcotráfico irá solucionar a epidemia de violência? Aliás, será que as forças de segurança pública, despreparadas e desorganizadas, conseguirão alguma eficácia contra quadrilhas bem preparadas, bem organizadas e bem armadas? Não haverá outros flagelos, além da violência, que sejam ao mesmo tempo causa e efeito dessa brutalidade toda?
O quadro social da Guatemala é, mais que desalentador, desesperante. O país está à beira da bancarrota absoluta – econômica, política, social, moral. Ao longo de seu governo que termina agora em janeiro, o frágil social-democrata
Álvaro Colom bem que tentou que o Congresso aprovasse um projeto de reforma fiscal. Enfrentou a dura resistência do próprio Partido Patriota do general vencedor. A arrecadação fiscal mal chega a 10% do PIB. A evasão se alastra das grandes e poderosas empresas aos trabalhadores da economia informal, que são a metade da força de trabalho do país.
Há dívidas, mais dramáticas – as dívidas sociais. Metade dos 14 milhões de guatemaltecos vive abaixo da linha da pobreza. Entre os indígenas do altiplano, essa proporção é mais assustadora: 80%. Os desnutridos chegam a dois milhões, ou seja, 15% da população. Entre crianças menores de oito anos, a proporção cresce para 30%.
Os corredores do tráfico de droga são cada vez mais movimentados. Segundo cálculos de Washington, 80% da cocaína que o México exporta para os Estados Unidos passam pela Guatemala. A ineficácia fantasmagórica das forças de segurança guatemaltecas tem seu justo reflexo no sistema judiciário do país: 98% dos crimes cometidos ficam olimpicamente impunes. O desprestígio das instituições é gritante, a começar pela Polícia Nacional Civil, que inspira menos respeito que um caroço de manga.
De cada cem mil guatemaltecos, 52 são assassinados. Nessa contabilidade de pesadelo, perde para El Salvador, com 69, e Honduras, com 72. Mas é um índice suficiente para que a Guatemala seja um dos oito países mais violentos do mundo.
Esse pobre país de violência e miséria será presidido, a partir do dia 14 de janeiro de 2012, por um general acusado de crime contra a humanidade. Para os que acreditam na redenção absoluta de alguém com esse passado, resta alguma esperança. Para os que teriam preferido ver
Otto Pérez Molina numa cela de prisão e não num palácio presidencial, resta uma desesperança gelada.
Em seu discurso da vitória,
Pérez Molina disse que a partir de seu primeiro dia de mandato o povo perceberá que tem um presidente comprometido em defender a vida. Dito por quem foi treinado para matar – e matou e mandou matar centenas de pessoas –, não deixa de ser engraçado.
Desgraçadamente engraçado.
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Guatemala: pobre país miserável - Instituto Humanitas Unisinos - IHU