Por: Jonas | 19 Abril 2013
Chiapas é um território ocupado em uma extensão importante pelo Movimento Zapatista (MLNZ), por comunidades indígenas e camponesas. É um território político forte, mas ainda é um foco conflitivo, uma região que por suas riquezas naturais e sua localização interessa, especialmente, as transnacionais e o governo, que não economizam meios para a subordinação das comunidades donas da terra.
Alma Padilla (foto), coordenadora do Centro de Direitos da Mulher de Chiapas, trabalha conscientizando as mulheres sobre seus próprios direitos, sobre a relação que preservam com a história e com o contexto, tentando envolvê-las não apenas individual, mas coletiva e politicamente.
Fonte: http://goo.gl/gz1pm | |
Licenciada em Psicologia, pela Universidade de Guanajuato, México, atual doutoranda pela Universidade Complutense de Madri, Alma Padilla trabalha com mulheres que são vítimas de violência familiar, de um conflito armado alheio, a “guerra de baixa intensidade”, etc. Além de ser fundadora e colaboradora do Centro de Atenção e Prevenção da Violência Sexual e Maus-tratos, em Guanajuato, é uma grande defensora dos direitos humanos e, fundamentalmente, dos direitos da mulher.
Existe a ideia de que a terra não pertence às comunidades, mas elas que a pertencem. Alma Padilla destaca que os direitos humanos estão diretamente relacionados com a propriedade da terra. Assim como na modernidade, em que alguns pensadores sustentavam que a propriedade não é unicamente um bem que o homem possui e explora, mas é parte da vida, quase do corpo. Nesse sentido, a política da expropriação sistemática da terra, por parte do Estado, é considerada uma violação aos direitos humanos, uma ação direta contra a conservação da vida das populações indígenas.
Na zona rural se entrecruzam três sistemas legais: o tradicional das comunidades, as leis oficiais e as do zapatismo. As mulheres devem resolver suas problemáticas, sobretudo a violência de gênero, nesse contexto complexo.
A expropriação da terra, a monocultura promovida pelas transnacionais e a falta de políticas públicas em prol da saúde e educação estão fragilizando fortemente as comunidades indígenas e camponesas mexicanas. Alma Padilla insiste que o trabalho realizado com as mulheres busca fortalecer a ideia de que a violência sofrida por elas é parte de um problema estrutural. Assim, o centro é um espaço fundamental para abrigar, assessorar e inteirar as mulheres de Chiapas.
A entrevista é de Julia Goldenberg, publicada no jornal Página/12, 15-04-2013. A tradução é do Cepat.
Confira a entrevista.
O Centro de Direitos da Mulher de Chiapas nasceu como uma consequência da organização das mulheres ou reuniu uma reinvindicação dispersa?
A construção do Centro de Direitos da Mulher de Chiapas surge como uma forma de organização de vários grupos de mulheres já organizadas e algumas independentes. Em 2004, acontece uma assembleia de diferentes mulheres de Chiapas e de outros territórios. Aí, a partir da exigência das mulheres, surgem muitas denúncias de violações aos direitos das mulheres, sobretudo denúncias como formas de contra-insurgência que estavam ocorrendo a partir do Estado, na raiz do levantamento zapatista de 1994. Então, dão-se conta de que este espaço é construído pelas próprias mulheres e que abrigam numerosas reclamações, que de antemão não contavam com um espaço onde resolver ou construir alternativas. Disso surge a ideia de construir um Centro de Direitos Humanos que atenda e que possa trabalhar no processo de transformação da violação aos direitos das mulheres. Então, cria-se o Centro de Direitos da Mulher de Chiapas e, ao mesmo tempo, o Movimento Independente de Mulheres, que durante muito tempo gerou o processo de organização e de transformação do trabalho com as mulheres.
Como está organizado o Centro?
O Centro possui uma mistura de mulheres indígenas e de mulheres mestiças trabalhando, principalmente, defensoras dos direitos humanos, formando uma equipe de aproximadamente vinte pessoas. Além disso, existem diversas profissões e procedências. Temos um trabalho comunitário e cooperativo entre as diversas áreas. O Centro tem uma organização horizontal, guiada por uma consciência política que orienta o trabalho para a defesa dos direitos humanos, para a defesa de uma vida digna, para a transformação do lugar da mulher e a eliminação da violência. Este é um Centro construído teórico e politicamente em torno dessa questão.
Entendo que em Chiapas existem diferentes tipos de sistemas jurídicos. Quais são os que vocês contemplam no trabalho do Centro?
Em Chiapas existem três tipos de sistemas jurídicos: o sistema tradicional, que é o que está dentro das comunidades indígenas e camponesas; o sistema autônomo, que é o que foi construído por meio do movimento zapatista, que tem sua base no sistema tradicional, e o sistema oficial ou positivo, por meio das instituições oficiais do governo mexicano. Então, o Centro de Direitos utiliza e valoriza, no mesmo nível de força política e de capacidade de resolução, todos estes sistemas. Assim, o Centro de Direitos utiliza os três sistemas de forma igual. Empregando estes três sistemas, são resolvidos os problemas de violação dos direitos das mulheres.
As mulheres realizam suas denúncias dependendo de sua própria experiência em cada sistema. Por exemplo, as mulheres que viviam em comunidades indígenas e camponesas, em sua maioria, resolvem suas problemáticas nos sistemas tradicionais que são de suas comunidades. No caso das mulheres que pertenciam ao Movimento Zapatista, resolviam internamente. Neste processo há uma participação e uma exigência própria de justiça. Uma coisa que é muito importante, que acontece tanto no sistema tradicional, como no sistema autônomo, é que se confere muito valor para a voz das partes envolvidas.
É muito interessante a mudança de uma posição subjetiva da vitimização para a posição mais relacionada com a que trabalham.
No Centro trabalhamos com seus próprios processos, para que elas busquem a justiça em primeira pessoa, ou seja, que consigam resolver seus casos como próprios. Neste sentido, o Centro se torna um acompanhante e um incentivador em relação a esta justiça. Este é o processo que chamamos de “defesa participativa”. É importante destacar o lugar de agente que as mulheres possuem, para tirá-las do lugar de vitimização, porque se nós ficamos com isso, não acontecerá nenhuma transformação. Então, elas precisam reconhecer qual foi a sua contribuição, nesse processo, para poder transformá-lo.
Em que consiste a “defesa participativa”?
Esta ideia consiste em que as mulheres sejam agentes de suas próprias vidas. Contudo, além disso, consideramos que a solução jurídica não é a única solução, mas que precisa haver uma transformação no que chamamos de autodeterminação. Ou seja, que o processo jurídico de solução de seu caso se torne um processo impulsionador da transformação de sua vida, de seu arredor, de seus afetos, em relação ao modo como se vive a vida. Se uma mulher vive uma situação de violência de gênero porque, por exemplo, seu parceiro a está violentando, o processo não se resolve com o homem na prisão. Então, a ideia é fazer uma transformação mais profunda, para que se modifique não apenas essa relação, em particular, mas o modo como se relacionar, o modo de viver dessa mulher. Após uma longa análise, as próprias mulheres atingidas determinam qual é a via jurídica pela qual o caso deve ser resolvido.
A defesa participativa implicaria no reconhecimento dos direitos violados, o reconhecimento de que as mulheres possuem direitos e devem lutar por eles.
Contudo, quero destacar que o Centro não vem para resolver problemas: assessora e acompanha as mulheres em seus processos de resolução de problemas. Inclusive, realiza denúncias jurídicas e políticas, denuncia os sistemas que não reconhecem os direitos das mulheres ou que decidem reproduzir a violência por meio dos próprios sistemas. A violência tem uma história e nós trabalhamos para que as mulheres sejam conscientes disso. Isto permite colocar a violência dentro do contexto e transformar o problema numa regra e não numa exceção. Acreditamos que esta violência está associada a problemas intrínsecos do sistema neoliberal, patriarcal, com uma base estrutural e histórica.
Qual é a relação do Centro com o Estado?
O Estado mexicano tem uma tendência neoliberal, portanto, todo o processo de construção de políticas públicas para a população depende da dinâmica do mercado neoliberal. Em 1994, quando é assinado o tratado de livre comércio (ALCA), emerge o Movimento Zapatista denunciando essa forma de política duríssima para a população. Por sua vez, certos métodos contra-insurgentes se generalizam, destacando as comunidades indígenas. Junto com isto se produz um auge de programas assistencialistas, com base contra-insurgente, que limita a organização política dos povos. Ou seja, estes organismos, ao invés de prover uma boa educação e uma boa saúde, optam por incentivar estes programas que não são a solução e o que as pessoas realmente necessitam. Isto gera pura dependência.
Na realidade, é necessário proteger o campo, os alimentos e a terra do avanço das transnacionais, com políticas públicas reais. Nós estamos em total desacordo com estas políticas e nosso trabalho busca informar a população sobre como esta políticas são completamente contra-insurgentes, são desmobilizadoras dos processos organizativos e, sobretudo, sustentam a economia das grandes transnacionais.
A partir do Estado, está se incentivando a produção da monocultura de palma africana, de soja e do uso dos agroquímicos que deixam, por muitos anos, a terra infértil. Isto traz como consequência a interrupção do auto-abastecimento das comunidades, colocando famílias inteiras na miséria. Então, um de nossos trabalhos fundamentais é a informação a respeito destas políticas estatais. Estes são processos de sensibilização e de formação das comunidades, que são paulatinos e que nós realizamos permanentemente.
A lei agrária não concede o direito da mulher ter a posse da terra?
Existem processos de discriminação dentro das comunidades, já que as mulheres são as que menos vão à escola, as que em geral não sabem falar espanhol. Isto leva a um processo de discriminação de gênero, como também de classe. Da mesma forma, elas não podem herdar a terra, nem possuí-la, porque é o homem o que a trabalha. A lei agrária reconhece o direito das mulheres de possuir a terra, mas na prática isto não acontece. Os núcleos “ejidales” não são capacitados para que estes direitos sejam reconhecidos. Isto está claramente ligado ao desejo do Estado de realizar um plano de privatização de grande escala.
Quais são as estratégias de expropriação da terra?
Nós consideramos que o exercício dos direitos humanos está relacionado com a natureza. A educação está associada com a soberania alimentar, com a agroecologia, etc. Se não existe isto, dificilmente poderá se fazer valer os direitos humanos. Então, trabalhamos muito relacionando a terra com os direitos humanos. É preciso levar em consideração que as mulheres historicamente foram excluídas da propriedade da terra, por isso, para nós é tão importante colocar na base o direito destes povos de usufruir a terra, subsistir cultivando e, fundamentalmente, não ceder jamais neste direito. De outro lado, a privatização é o objetivo último, que muitas vezes acontece por meio de estratégias legislativas, educativas e outras. Junto com isto, apresentam-se formas de paramilitarização, que são grupos da própria população indígena que são preparados pelo exército para atacar seus próprios vizinhos. Então, aparentemente é o próprio povo indígena que está atacando. Isto dilui a organização política e gera um duplo dano, pois é uma matança entre os próprios povos.
O que chamam de “guerra de baixa intensidade”?
Eu acredito que já não é mais de “baixa” intensidade, mas é o termo que se utiliza. Este termo se refere ao fato de que não existe uma permanente guerra de enfrentamento armado, mas existem ações que vão minguando a vida e a possibilidade de transformação, com diferentes estratégias. O escasso investimento em saúde e em educação produz uma fragilização muito forte da sociedade. Ao mesmo tempo, são incentivados programas assistencialistas, que propõem ajuda econômica às famílias, desde que estas se distanciem do Movimento Zapatista, ou cooptando o seu tempo para que não participem das reuniões. Assim, estas políticas assistencialistas escondem a falta de investimento em saúde e educação. Como consequência, por exemplo, em Chiapas as pessoas ainda morrem por doenças gastrointestinais que, de um modo geral, são muito fáceis de curar em nossa época.
Nos últimos anos, foram registrados muitíssimos desaparecidos. Quais são as causas?
No México, existe o Tribunal dos Povos, local onde são denunciadas as várias violações aos direitos humanos, na base da guerra contra o narcotráfico, que foi estimulada pelo governo de Calderón. As forças da ordem e os narcotraficantes desapareceram com milhares de pessoas, deixando desamparados milhares de órfãos. Existem comparações estatísticas, que agora não possuo em mãos, que mostram que a guerra contra o narcotráfico provocou muito mais mortes do que as guerras realizadas abertamente. Na realidade, isto não foi mais do que uma guerra contra o povo, baseada no terror. Estas formas de políticas apontam, fundamentalmente, para a desterritorialização dos povos, expulsando as pessoas de suas terras para poder usá-las em benefício do mercado. E, neste contexto, os meios de comunicação, cuja linha editorial em geral está abalizada pelo Banco Mundial e os grandes poderes transnacionais, não informam claramente com números, com estatísticas, sobre o que acontece.
Que relação o Centro possui com o MZLN? Desde o início, o Movimento Zapatista incluiu mulheres em seu exército.
Eu acredito que nisso existe um processo muito interessante, pois é o próprio povo se organizando. Nós acompanhamos o processo, mas não somos as agentes deste processo, eles é que são. O Movimento Zapatista é uma organização independente. Nós somos adeptas da Outra Campanha, assumimos a sexta declaração da selva Lacandona. Obviamente, acreditamos na transformação que o movimento está realizando. Mesmo assim, temos nossa própria linha de trabalho. Retomamos e concordamos com os fundamentos do movimento, alinhando-nos num processo antissistêmico, anticapitalista e antipatriarcal. Apoiamos o processo que estão realizando com a agroecologia, e apoiamos a autonomização que eles incentivam. O Centro trabalha de maneira independente, fundado numa linha claramente feminista e em defesa dos direitos humanos.
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A violência contra a mulher “está associada a problemas intrínsecos do sistema neoliberal”. Entrevista com Alma Padilla - Instituto Humanitas Unisinos - IHU