Por: André | 07 Março 2013
“Na minha opinião, quando se fala de reformas na Igreja é preciso distinguir, em primeiro lugar, entre reformas mais urgentes e menos urgentes (que podem não coincidir com as que nós mais gostaríamos). Em segundo lugar, é preciso distinguir também entre reformas que vão requerer tempo (talvez muito) e outras que parecem ser de fatura imediata, bastando para isso o papa querer”. A reflexão é de José Ignacio González Faus, em artigo postado no seu blog Miradas Cristianas, 07-03-2013. A tradução é do Cepat.
Eis o artigo.
Na minha opinião, quando se fala de reformas na Igreja é preciso distinguir, em primeiro lugar, entre reformas mais urgentes e menos urgentes (que podem não coincidir com as que nós mais gostaríamos). Em segundo lugar, é preciso distinguir também entre reformas que vão requerer tempo (talvez muito) e outras que parecem ser de fatura imediata, bastando para isso o papa querer. Tendo isto presente, esbocei o seguinte programa:
1. A reforma mais urgente na Igreja de hoje (embora seja uma reforma lenta e constante) é que apareça como “Igreja dos pobres”. Se Deus se revelou em Jesus como Deus dos pobres e das vítimas deste mundo, uma Igreja que não tornar visível essa revelação será sempre infiel a Jesus Cristo. O novo papa, na minha opinião, deveria retomar e propor aos poderes econômicos deste mundo o ensinamento (tão simples quanto inaceitável) de Jesus de que “é impossível servir a Deus e ao dinheiro”. Ao menos para alertar tantos seres humanos que pretendem crer em Deus, mas buscam um deus compatível com o culto ao Dinheiro que o nosso mundo professa. Esta será uma reforma constante e difícil como disse, mas a Igreja deveria ter muito claro e não esquecer nunca que (como disse João Paulo II) aqui está em jogo a sua fidelidade a Cristo.
2. Em segundo lugar, é muito urgente uma reforma da cúria romana, tão reclamada pelo Vaticano II e que a cúria sempre bloqueou. Nessa infidelidade está, para mim, uma das raízes da atual crise da Igreja. A cúria não é o órgão diretor da Igreja, mas um instrumento a serviço da autoridade eclesiástica que não reside na cúria, mas em todo o colégio apostólico, com Pedro à cabeça. Ao contrário do que disse no número anterior, aqui seriam possíveis reformas imediatas que, no meu modo de ver, são urgentes. Enumerarei algumas:
2.1. Os membros da cúria deveriam deixar de ser bispos, porque a existência de bispos sem Igreja é contrária à mais originária tradição da Igreja, legislada já no cânon 6 do Concílio de Calcedônia. A hipocrisia de torná-los titulares de uma diocese inexistente, só evidencia a má consciência com que se desobedece aqui a Tradição. Tenho dados para afirmar que essa era a mentalidade de Bento XVI quando chegou à cadeira de Pedro; mas a cúria o impediu.
2.2. Derivado do anterior, Roma deveria reinstaurar a participação das igrejas locais na escolha de seus pastores, obedecendo assim também a toda a tradição que enche o primeiro milênio e que só foi quebrada devido à necessidade de impedir que os poderes civis interviessem na designação dos bispos.
2.3. E em terceiro lugar, devem desaparecer do entorno do papa todos os símbolos de poder e de dignidade mundana que ofuscam a revelação da dignidade de Deus consistente no seu aniquilamento em favor dos homens. Seria preciso suprimir os chamados “príncipes da Igreja”, título quase blasfemo para uma instituição que se funda em Jesus como sua pedra angular. O bispo de Roma deveria ser escolhido (por exemplo) pelos presidentes das diversas Conferências Episcopais, acrescentando, talvez, um grupo de religiosos e de leigos homens e mulheres. Esta reforma pode ser mais lenta que as duas anteriores. Mas a comissão de canonistas encarregada de dar caráter jurídico tem tempo para trabalhar até o próximo conclave. E entre esses títulos de poder mundano alheios a Cristo, o sucessor de Pedro deveria deixar de ser um chefe de Estado, porque isso envergonharia o seu predecessor.
3. Roma e toda a Igreja devem sentir como uma ofensa a Deus a atual separação das Igrejas cristãs contra a vontade expressa do Senhor. Já não é tempo de acusações, mas de unidade. E embora este seja outro ponto que possa ser longo, o próximo papa poderia criar uma espécie de Sínodo ecumênico (paralelo ao atual Sínodo de bispos, mas menos descafeinado que este) que convocasse periodicamente todas as Igrejas cristãs para tratar e discutir livremente os caminhos para a unidade. Unidade na qual podem caber grandes doses de pluralidade, porque a verdadeira unidade não é a uniformidade do único, mas a comunhão do plural. Falei de um sínodo criado por Roma, mas que também poderia ser convocado pelo Conselho Ecumênico das Igrejas, somando-se a ele a Igreja católica.
4. Estas são as três reformas mais urgentes, no meu modo de ver as coisas. Há outras que ocupam mais espaço na mídia. Têm sua importância, mas podem não ser tão urgentes. E, na minha opinião, é importante fundamentar bem as razões que levam a elas. Dentre elas dou prioridade neste comentário à que me parece mais fácil e que requeriria menos tempo. Refiro-me à situação dos católicos que fracassaram em seu primeiro matrimônio e encontraram estabilidade em uma segunda união. Urge e é possível arbitrar uma solução como a que as Igrejas orientais chamam de “disciplina de misericórdia” e que a Igreja católica nunca quis condenar (apenas se limitou a ensinar que ela “não erra” quando não segue esse caminho). Mas se este “não errar” poderia ter sentido nos tempos de Trento pode ser que já não tenha vigência hoje. Não se trata de contradizer absolutamente as razões teológicas a favor da indissolubilidade do matrimônio. Trata-se antes de levar a sério aquela aguda observação de Pascal: que uma verdade pode converter-se em herética quando não deixa lugar para outras verdades, igualmente parciais, talvez, mas cuja parcialidade não os priva de seu caráter de verdade. A Igreja tem razão ao ensinar que o matrimônio é um sinal (sacramento) do amor de Deus à humanidade, que é um amor fidelíssimo e sem retorno. Mas (deixando de lado agora a importante consideração sociológica de que muitos falsos católicos se casaram sem ter a menor consciência do significado do que estavam fazendo), é preciso recuperar a consideração tão bíblica de que esse amor de Deus segue valendo mesmo quando a esposa tenha sido adúltera ou infiel. E que Deus está disposto a perdoar e reconquistar e voltar a chamar a esposa que o traiu. Nas repetidas e belas páginas dos profetas bíblicos sobre este ponto, há um fundamento teológico para essa “disciplina de misericórdia”.
5. Sem sair da disciplina matrimonial, a autoridade eclesiástica deveria tomar consciência de que o ensino de Paulo VI na Humanae Vitae não teve muita recepção entre o Povo de Deus; e não apenas em cristãos tíbios, mas em casais seriamente crentes, em presbíteros e até bispos da Igreja. Na minha humilde opinião, o novo papa deveria convocar uma nova comissão como aquela que Paulo VI nomeou para estudar este ponto. É do conhecimento de todos que aquela comissão foi quase inteiramente favorável à mudança do ensino da Igreja neste ponto. Mas o medo de que essa mudança desacreditasse o magistério eclesiástico, levou Paulo VI a não aceitar o veredicto da comissão. Quase 50 anos depois, cabe dizer que esse medo obstinado desacreditou mais o magistério eclesiástico do que se tivesse tido a humildade de mudar. E foi, além disso, causa de muitos abandonos da prática sacramental e que acabaram resultando em abandonos da fé.
6. O celibato ministerial é um dos temas que ocupam mais espaço na mídia. Embora tanto neste ponto quanto no seguinte, compartilho a reivindicação que se faz. Devo acrescentar que ao tratá-lo em penúltimo lugar não o considero tão decisivo como os dois primeiros desta lista. Desde a minha experiência particular, devo dizer que as razões que me levam a pedir esta mudança não são reivindicações pessoais, mas de atenção ao maior bem das Igrejas. Toda comunidade cristã tem o direito (e o mandato) de celebrar a Ceia do Senhor da qual não pode ser privada pelo afã de manter uma disciplina eclesiástica. Se não se quer ler a atual crise de vocações como um sinal do Espírito (porque os sinais dos temos têm sempre sua ambiguidade), é preciso dizer que negar a eucaristia a milhões de cristãos pela obstinação de não mudar uma lei positiva da Igreja, é incorrer na dura repreensão de Jesus: “quebrantais a vontade de Deus por vos aferrares às tradições de vossos pais”. E como os obstinados nesta postura costumam ser amigos de leituras literais da Bíblia, pode-se responder a eles com a citação clássica de um dos documentos tardios do Novo Testamento: “o bispo seja varão de uma só mulher”... Dito isto, não tenho dificuldades em aceitar que esta reforma deveria ser feita com suma cautela e pouco a pouco, dado que o terreno é escorregadio, como todo o mundo reconhece.
7. “Last but no least”, reservo o último ponto para o tema da mulher não porque seja menos importante, mas para que não desapareça nos intervalos. É tema muito importante e em que há tarefas que podem ser mais imediatas e outras mais de longo prazo. Parece-me inegável que a situação da mulher na Igreja de hoje é um grave pecado estrutural, que deveria intranquilizar a consciência de quem seja o próximo papa. Creio, não obstante, que há pontos de lenta digestão e que a urgência inegável não está necessariamente na meta final. O próximo papa, no meu modo de entender as coisas, deveria preocupar-se por dar o quanto antes à mulher uma série de acessos que a tradição e a própria legislação eclesiástica não lhes negam: diaconisas, cargos na cúria reformada, participação na eleição do bispo de Roma... O ápice desta evolução seria o ministério feminino.
Roma deveria começar por não proibir que se fale dele e que se estude o problema, porque isso seria fechar os únicos caminhos pelos quais se abre passagem à verdade. Creio recordar que já em 1976 outra comissão de teólogos e biblistas escreveu um relatório para o papa sobre este ponto, cuja conclusão era que não se vê objeções na Escritura para o acesso da mulher ao ministério eclesial. Embora pessoalmente compartilhe desta opinião, posso compreender aqueles que não a compartilham e poderiam ter aqui uma autêntica objeção de consciência. Entre eles estariam todas as Igrejas orientais, criando assim uma grande dificuldade para o ecumenismo que é, para mim, um mandamento muito sério.
Por isso, propus outras vezes, e volto ao tema novamente aqui, que talvez o sucessor de Pedro deveria convocar a Igreja (e todas as Igrejas) para um período de oração que poderia durar entre um ou dois anos, no qual, em comunidades contemplativas, nas missas dominicais, na oração pessoal... todos os cristãos pedissem ao Senhor para que nos faça ver Sua vontade neste ponto. Por muito que se discuta sobre a oração de petição, sou dos que acreditam que quando pedimos precisamente isso, que se cumpra a Sua vontade em nós, manifestando-nos dispostos a aceitá-la, essa oração acaba sendo ouvida. Porque o que Deus mais quer de nós é essa disposição para fazer a sua vontade sem nos tirar a nossa liberdade.
Não preciso dizer que tudo o que disse anteriormente é opinião pessoal. Aceito, pois, que alguns discordem e que outros, talvez, se incomodem ou se irritem. Só pediria que me respondessem com argumentos que mostrem que o que aqui foi dito é contrário ao evangelho e à necessidade de “uma esposa de Cristo sem mancha nem ruga”. À acusação fácil de que o que disse brota da falta de amor à Igreja, posso responder o que há anos ouvi de Ratzinger e o li depois: “a Igreja de hoje necessita de pessoas que por amor a ela coloquem em jogo o seu futuro, e não de pessoas que utilizam o amor à Igreja como plataforma para a sua ascensão pessoal”.
E, evidentemente, não pretendo que com isso a Igreja deixará de ter problemas. Simplesmente, será mais evangélica e mais fiel à sua missão.
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