07 Novembro 2012
Deve-se admitir que não foi o Islã, mas sim um papa, Urbano II, que lançou a primeira "guerra santa", que a financiou, que a organizou. Foi um Concílio, o de Latrão IV, que forjou com os seus decretos os aspectos estratégicos e financeiros da Cruzada, como guerra "santa", dotada de indulgências plenárias. Não há dúvida de que os papas foram os protagonistas das primeiras guerras religiosas.
Publicamos aqui a sexta e penúltima parte do artigo do vaticanista italiano Giancarlo Zizola, falecido em 2011, que começou a sua carreira de jornalista escrevendo suas crônicas sobre o Concílio Vaticano II por indicação do próprio Papa João XXIII e de seu secretário, Loris Capovilla.
O artigo póstumo – originalmente uma conferência proferida em Assis, em 2004 – foi publicado na revista Rocca, n. 20, 15-10-2012. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
O papado e a paz depois do Vaticano II
Essa orientação permeou no período pós-conciliar a conduta do papado nas relações com os Estados e na promoção da cultura da paz no mundo católico, também através de prudentes mediações e apesar de algumas involuções teóricas. Nessa perspectiva, foram incisivas as iniciativas de Paulo VI para fazer cessar a guerra no Vietnã, mesmo com dramáticas objeções à política da Casa Branca. A viagem do Papa Montini à ONU, a instituição de um observador vaticano no Palácio de Vidro, o lançamento de uma Jornada da Paz, as intervenções magisteriais sobre o nexo inseparável entre paz e democracia, paz e justiça social internacional contribuíram decisivamente para a evolução do mundo católico rumo a uma cultura da paz que chegasse a se candidatar como título de legitimação do próprio sistema democrático.
Tratava-se de proceder a uma obra espiritual, cultural e política de longo prazo, capaz de purificar a cultura do mundo católico das febres virais do nacionalismo e do belicismo, e redirecioná-lo a uma melhor coerência para honrar a primazia do direito à vida como valor supremo não só no campo da sua proteção jurídica da "cultura da morte" nas escolhas individuais, mas também no campo público da preservação da vida humana da guerra e do terrorismo político.
Nesse sulco reconciliar, moveu-se o próprio João Paulo II, graças à sua intrépida oposição pública à guerra norte-americana contra Saddam Hussein, em 1991, e ainda mais à guerra preventiva desencadeada por Bush Jr. com a invasão do Iraque em 2003: uma guerra que, sendo invasiva, unilateral e ilegal, fundamentada em presunções que se revelaram falsas e sem passagens arbitrais suficientemente procuradas e perseguidas, a Santa Sé não podia remeter nem mesmo aos cânones clássicos da moral da "guerra justa".
Lembrarei unicamente a tomada de posição do papa no discurso dirigido ao presidente dos Estados Unidos, durante a audiência no Vaticano do dia 4 de junho de 2004: sem meios termos, o papa advertia o presidente a não se esquecer de que "os erros do passado, que deram origem a impressionantes tragédias (como a Segunda Guerra Mundial), não devem se repetir". E aludindo às manipulações propagandísticas, que, também por parte de setores católicos, continuavam a tentativa neoconservadora de homologar a posição da Santa Sé à da legitimação da ocupação do Iraque, o papa afirmava: "Vossa Excelência conhece a posição inequívoca da Santa Sé a este propósito, expressa em numerosos documentos, através de contatos diretos e indiretos, e nos inúmeros esforços diplomáticos que foram realizados, desde que o Senhor Presidente me visitou, primeiro em Castel Gandolfo, a 23 de julho de 2001, e de novo no Palácio Apostólico em 28 de maio de 2002".
Não podia faltar também a deploração pelos "deploráveis acontecimentos que vieram à tona" das práticas das torturas sobre prisioneiros iraquianos por mãos norte-americanas em Bagdá. E a advertência final: "Na ausência de um compromisso na partilha dos valores humanos comuns, jamais se vencerá a guerra e o terrorismo".
Deve-se dizer que a energia espiritual e política projetada sobre essas posições não diminuiu a solidão institucional de Karol Wojtyla com relação a alguns setores do mundo católico, em Roma mesmo, além de em países de tradição católica como a Itália, Polônia, Espanha. Apesar da prova de força oferecida pelas associações e pelas paróquias em favor do método do diálogo e da abolição da guerra pelo sistema jurídico internacional, alguns setores institucionais de filiação católica – além disso, dispostos a se professarem devotos ao papa de Roma – pareceram bastante sensíveis, ao invés, aos poderosos chamados do teorema do "choque de civilizações", até dar a sua contribuição teológica e política para o relançamento de um espírito de cruzada do Ocidente contra o mundo islâmico.
No entanto, merece especial reflexão o fato de que uma convergência fundamental ocorreu na madrugada tingida de sangue e de terror do século XXI entre as opções de paz de um grande líder espiritual mundial como o papa da Igreja Católica e o movimento coletivo que veio à tona nas praças das capitais mundiais para defender o valor supremo da vida humana diante da guerra e invocar a sua revogação pelo sistema jurídico internacional.
Os líderes espirituais do movimento da paz, de Francisco de Assis a Erasmo, de Bento XV ao Pe. Luigi Sturzo, de Gandhi a Martin Luther King, de Martin Niemoeller a Dietrich Bonhoeffer, passando por Giorgio La Pira, não estavam mais sozinhos.
As prioridades do programa de João Paulo II – esconjurar uma guerra de civilizações, opor ao terrorismo não um outro fundamentalismo agressivo, mas sim o diálogo entre as religiões e as culturas e a força da razão, proteger as comunidades cristãs nos países muçulmanos – fizeram do papa um aliado natural do Islã e um líder espiritual do movimento pacifista global. Com a sua firmeza diante das lógicas unilaterais da Casa Branca, o papa se tornou na hora mais crítica do mundo o salvador dos melhores valores do Ocidente. Ele testemunhou com a sua própria pessoa como a fraqueza material pode liberar uma lição moral de força incomparável e que justamente nessa inversão repousa o fundamento da identidade cristã do Ocidente e do próprio sistema democrático.
Não se tratou de um pacifismo exangue, mas sim de uma opção fundamentada em uma doutrina orgânica da interdependência entre os povos e do valor do Outro. Também esta deve muito à consciência autocrítica da Igreja Romana, que, da reviravolta constantiniana em diante, colecionou uma série de tristes primados, teológicos e políticos, na elaboração dos paradigmas estratégicos da "guerra santa"; primeiro dentre todos a homologação do Outro à sua própria verdade. O fundamentalismo islâmico, com os feitos infernais do terrorismo, só pode se afirmar como o último aluno dessa escola, o que alguns expoentes do pensamento secular, cantores da supremacia da civilização ocidental, parecem inclinados de bom grado a esquecer na embriaguez do seu realismo pragmático.
Mas por que se deveria distorcer o realismo político, obstinando-se a soldá-lo aos banhos de sangue? Por que só Caim deveria ditar a norma do poder político? O próprio Maquiavel não estaria de acordo, lendo O Príncipe sem antolhos deformantes. Como um lembrete fundamental, deve-se admitir que não foi o Islã, mas sim um papa, Urbano II, que lançou a primeira "guerra santa", que a financiou, que a organizou. Foi um Concílio, o de Latrão IV, que forjou com os seus decretos os aspectos estratégicos e financeiros da Cruzada, como guerra "santa", dotada de indulgências plenárias – a salvação eterna assegurada mediante os assassinatos dos sarracenos – para cobrir novamente os interesses da primeira multinacional das armas.
Não há dúvida de que os papas foram os protagonistas das primeiras guerras religiosas. E depois de ler a Brevíssima relação sobre a destruição das Índias, de Bartolomé de Las Casas, nenhum delito terrorista dos nossos dias, nem mesmo aquele horrendo massacre da escola de Beslan, pode ser considerado sem precedentes nas obras dos soldados de Colombo, de Hernán Cortés, de Alvarado e de Pizarro nos massacres cometidos em nome da Cruz de Cristo nas aldeias inermes dos índios, incluindo a horrenda carnificina das crianças postas em fogo baixo entre os gritos das mães para aterrorizar as aldeias, ou jogadas ao ar às dezenas para os jogos dos conquistadores, competindo entre si entre aqueles que espetavam com mais destreza antes que rolassem no chão. Foi a primeira guerra preventiva e nascia na área cristã, com características quase definitivas: o primeiro golpe, a invasão militar, o objetivo da acumulação de ouro, a máscara do sagrado.
E é precisamente a consciência penitencial do volume de violência e de morte produzido em nome da fé cristã ao longo dos séculos que deu um vigor dramático ao "não" pronunciado pelo papa contra a guerra, assim como contra o terrorismo fundamentalista. Não há dúvida de que a oposição pontifícia, a qual se associaram quase todas as Igrejas cristãs do mundo ortodoxo e protestante, reforçou a exigência de uma teologia da paz mais coerente que permita iluminar um programa de reeducação à paz em toda a Igreja Católica e que permite reconduzir a um grau suficiente de compacidade os saberes e as políticas da Santa Sé e dos Episcopados.
(Continua...)
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Vaticano II: uma etapa decisiva de um caminho que deve continuar. Artigo de Giancarlo Zizola – Parte 6 - Instituto Humanitas Unisinos - IHU