26 Julho 2012
O prédio da Daimler é o de cor amarelada e a textura do revestimento não revela que aquilo é cerâmica. No interior do edifício, o pé direito altíssimo termina em teto transparente. Cada feixe de luz natural é bem-vindo, o clima é agradável e não se vê sinal de ar-condicionado. No subsolo, 19 materiais diferentes são reciclados rotineiramente e, da cobertura, 20 andares acima, a visão dos arredores é de jardins suspensos: há verde em cada teto de edifício, um sistema natural de coletores de água da chuva. Os prédios dessa praça são ícone de sustentabilidade exibido com orgulho pelos alemães - trata-se da lendária Potsdamer Platz.
A reportagem é de Daniela Chiaretti e foi publicada pelo jornal Valor, 24-07-2012.
Em "Asas do Desejo", o clássico de Wim Wenders sobre a Berlim de 24 anos atrás, com Muro e dividida, Potsdamer Platz é um pedaço de terra arrasada no meio do nada. O retrato da desolação da Alemanha dividida tornou-se o maior canteiro de obras da Europa logo depois da unificação. No final dos anos 90, era símbolo da modernidade.
Depois de passar pela prancheta de um grupo estelar de arquitetos coordenados pelo italiano Renzo Piano - dez anos de construção e centenas de investidores -, a Potsdamer Platz na versão moderna virou um complexo de 19 prédios, 10 ruas, mais de 130 lojas, dois hotéis, cinemas, três teatros, cassino e shopping. Tem uns 30 restaurantes, bares e cafés. Vivem ali pelo menos dez mil pessoas. Foi inaugurada há 12 anos e é modelo de eficiência energética, reuso de água, materiais sustentáveis e reciclagem de lixo tocada como um negócio lucrativo.
No subsolo, por exemplo, há um labirinto de cinco quilômetros por onde chegam os artigos das lojas, os mantimentos dos restaurantes, os equipamentos dos escritórios. São 160 a 180 vans todos os dias deixando materiais em 90 rampas. É lá também onde todos depositam restos de comida, pilhas, papéis, vidros. São 19 tipos de lixo diferentes administrados pela empresa Alba. Só de papéis, são seis tipos diversos. Os contêineres têm balanças automáticas - recebem e pesam, automaticamente, todo o lixo depositado ali. Os clientes não pagam por aquilo que pode ser reciclado, como vidros, plásticos e papéis, mas têm que desembolsar quando deixam material orgânico ou baterias.
A fachada de cerâmica do prédio da Daimler não é apenas um capricho arquitetônico, mas um recurso que garante umidade e boa temperatura ambiente. Lamelas espalhadas por todo o interior do edifício funcionam como escamas que refletem a luz natural e a levam aos escritórios. "É por recursos assim que a construção consome a metade da energia de um edifício convencional nessas dimensões", explica o geólogo Felix Eisenhardt, do OrganisationsBureau Berlin, que faz visitas guiadas a grupos de turistas interessados em conhecer exemplos de construções eficientes na cidade. "Sustentabilidade também é uma solução de arquitetura", diz ele.
A tinta das paredes que foi utilizada no prédio não podia ter poluentes que comprometessem a qualidade do ar. Uma usina a 300 metros dali produz calor e eletricidade a partir de gás natural e aquece ou resfria as lojas e os escritórios do complexo. Grandes janelas garantem que a atmosfera de fora se reproduza no interior dos escritórios. Um sistema elétrico inteligente indica quando é preciso acender a luz. A ventilação é natural e totalmente regulada por computadores.
A sustentabilidade obtida em Potsdamer Platz é um modelo que os alemães estão tentando espalhar pelo país. A previsão é que, nas próximas duas décadas, metade das moradias alemãs irá passar por uma reforma com o objetivo de conseguir uma grande melhora na eficiência energética. O estoque atual de casas a serem repaginadas é estimada em 38 milhões de unidades - o que significa uma média de 950 mil casas reformadas ao ano. O governo oferece uma linha de crédito subsidiada - um fundo total estimado em € 1,5 bilhão gerido pelo banco de desenvolvimento alemão, o KfW- para a reforma. Mais de 5.000 casas já usaram o benefício. Os resultados são uma redução no consumo de energia de cerca de 85%.
As reformas das moradias compreendem melhorar o isolamento térmico das paredes, dos telhados, dos sótãos e porões, substituir velhas janelas por opções modernas com vidros duplos que isolam o ambiente, ter sistemas de aquecimento conectados a algum tipo de energia renovável, promover o máximo de ventilação natural.
Uma publicação da Agência de Energia Alemã (Dena, na sigla em alemão), informa que a energia que se gasta para aquecer casas e esquentar a água representa 40% do total de energia consumida no país, mas só uma parte disso é realmente necessária. O estudo diz que ¾ das moradias alemãs foram construídas antes das primeiras legislações sobre o assunto, e que essas habitações consomem, em média, 245 kWh/m2 ao ano. Os novos prédios gastam a metade disso. As casas modernizadas de acordo com a cartilha da eficiência energética conseguem resultados duas vezes melhores do que os registrados pelos prédios novos.
O governo alemão tem várias metas de eficiência energética para as próximas décadas. As construções existentes têm que reduzir sua atual demanda por aquecimento em 20% em 2020, além de diminuir a demanda em 80%, em energia primária, em 2050. A taxa de reformas sob o prisma da eficiência - conhecidas por "retrofit", no jargão do setor - têm que saltar dos atuais 1% para 2,5% nos próximos anos.
"Trata-se de um setor de grande potencial", diz Henri Lukas, especialista em eficiência energética em edifícios da Dena. A agência, constituída no ano 2000 e que hoje tem 150 funcionários, é uma companhia mista metade do governo e metade de empresas como a seguradora Allianz ou o Deutsche Bank. Lukas cita, por exemplo, que cerca da metade das construções na Alemanha terá que ser reformada nos próximos 20 anos por motivos técnicos e que 75% das moradias foram construídas antes das primeiras legislações sobre economia energética, de 1978. As fachadas de 80% das casas não têm isolamento, mais de 30 milhões de janelas não possuem vidros duplos e só 12% dos sistemas de aquecimento existentes são modernos.
"Mas poderíamos ser muito mais eficientes", rebate Martin Bornholdt, do conselho executivo da Deneff, uma associação alemã para eficiência energética. "As pessoas preferem economizar para comprar um carro bacana do que para investir em sistemas melhores de energia para suas casas", afirma. Bornholdt trabalha em uma entidade formada em 2010 e que faz lobby pelas energias renováveis e por programas de eficiência energética. Na sua opinião, faltam políticas públicas que estimulem os consumidores a poupar energia. "A Alemanha não conseguirá cumprir sua meta de eficiência energética em 2020 sem instrumentos mais atraentes que convençam as pessoas a investir, por exemplo, em sistemas melhores de isolamento térmico em suas casas", ilustra. Na sua opinião, falta mais intervenção estatal e um pacote de estímulos. "Esse é um debate difícil", reconhece.
Trata-se, também, de um ponto estratégico, em sua visão, para que o governo alemão alcance os objetivos de seu plano energético de longo prazo, lançado em setembro de 2010 e revisto em 2011, depois do acidente nuclear em Fukushima, no Japão. Na ocasião, o governo de Angela Merkel decidiu voltar atrás em uma decisão anterior e definiu que o país não terá mais energia nuclear depois de 2022. "Eficiência energética é a peça-chave nessa equação", acredita Bornholdt, referindo-se à rota que a Alemanha terá que seguir para conseguir substituir a energia nuclear. Segundo ele, para dar impulso à maior eficiência energética, é preciso desenvolver um mercado de serviços de energia, promover campanhas que eduquem os consumidores, desenvolver selos e lançar mecanismos financeiros que estimulem as reformas.
Nos edifícios da Potsdamer Platz, o sofisticado sistema de ventilação consegue reduzir pela metade o uso de energia primária. Não se usa ar-condicionado convencional. Por ali, a sustentabilidade vai além do uso energético mais racional. Os jardins que existem em cada teto servem para coletar milhões de litros de água que vão parar em oito grandes cisternas e economizam 20 mil metros cúbicos por ano. Cerca de 80% da água da chuva coletada acabam evaporando, mas o resto vai para as cisternas que estão a oito metros da superfície, explica o geólogo Eisenhardt. A água pluvial é tratada e usada nos espelhos d'água do complexo. Depois é reutilizada nos banheiros e entra nos sistemas que aquecem ou resfriam os andares dos escritórios.
Mais de 100 mil pessoas passam pela Potsdamer Platz todos os dias e não há congestionamentos nas redondezas, mesmo com as centenas de vans que abastecem o complexo, um sintoma que a logística do subsolo funciona bem. As construções sustentáveis da região também têm outros ganhos, além da conta da luz e da água: as emissões de CO2 foram reduzidas em 70% em comparação às estruturas similares erguidas pela cartilha arquitetônica convencional.
Parceria busca soluções para o Brasil
É fácil de imaginar a cena: o escritório fica em um prédio que recebe muito sol pela manhã e, por isso, os funcionários trabalham com as persianas totalmente fechadas. Todas as luzes do ambiente estão acesas. O ar-condicionado vive ligado, mas há muitas janelas abertas, para ventilar o ambiente - um contrassenso completo. "Imagine a quantidade de energia desperdiçada", diz o arquiteto e urbanista Silvio Parucker, um especialista no estudo de construções sustentáveis. O ambiente desastroso em eficiência energética é um caso clássico em prédios de escritórios no Brasil.
O exemplo descrito acima é rotina nos andares do Ministério do Planejamento, em Brasília, e se reproduz nos outros icônicos edifícios da Esplanada. Escritórios ideais, em termos de percurso solar, "têm que ter insolação suficiente, nem muita, nem pouca", explica Parucker. Ministérios como o do Planejamento recebem muito sol pela manhã, o que provoca o uso excessivo de ar-condicionado e luzes artificiais, e o quadro é piorado pelo fenômeno conhecido como "pontes de calor". A radiação absorvida pela fachada passa para vigas e pilares e leva algumas horas para chegar ao interior. "Então, ao meio-dia, há mais calor ainda", diz Parucker.
À época em que Oscar Niemeyer e Lucio Costa projetaram Brasília, há mais de 50 anos, economizar água, coletar chuva, ventilar ambientes de modo natural, usar ao máximo a luz natural e tornar o consumo de energia eficiente, não eram parâmetros em voga como hoje. No Brasil, começaram a ganhar importância bem recentemente.
O acordo de cooperação tecnológica assinado em maio de 2011 entre os governos do Brasil e Alemanha contemplou também as áreas de eficiência energética e ambiente. Nasceu daí o programa "NoPa - Novas Parcerias Brasil & Alemanha", que reúne um grupo de especialistas preocupados em estimular técnicas mais eficientes nos edifícios públicos brasileiros.
Na prancheta de estudiosos brasileiros e alemães estão edifícios em Curitiba, no Rio e em Brasília. "Queríamos trabalhar com obras em regiões climáticas diferentes", explica Parucker, coordenador-adjunto do projeto.
Um dos estudos está sendo feito no Centro Politécnico da Universidade Federal do Paraná, em Curitiba, região de clima temperado. Outro ocorre no palácio Gustavo Capanema, o antigo Ministério da Educação e Cultura, no Rio, lugar de clima tropical úmido. E finalmente a análise do que ocorre nos dez andares do Planejamento, em Brasília, com seu clima tropical de altitude, bem seco. As simulações estão sendo feitas nos laboratórios das universidades federais do Paraná e do Rio, pelo lado brasileiro, e na Technische Universität München (TUM), na Alemanha. Nesse núcleo há também gente dos Ministérios do Planejamento e da Fazenda e pesquisadores do Instituto Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan).
A ideia é estudar o uso de ar-condicionado, a ventilação natural e apontar opções para melhorar o consumo de energia e água. Parucker já vinha trabalhando com esse tema em sua tese. "Minha ideia é explorar a eficiência energética no conjunto modernista de Brasília", explica.
As análises ainda estão na identificação dos problemas - e no caso de Brasília, as possíveis soluções têm que levar em conta também que os edifícios são tombados pelo Patrimônio Nacional e o plano piloto é Patrimônio da Humanidade da Unesco, o que limita alterações na fachada, no uso de materiais e cores, por exemplo. Mas Parucker dá algumas pistas de soluções usadas em outros lugares.
Edifícios na Alemanha usam em suas vidraças um sistema de células fotovoltaicas em adesivo. "É uma solução interessante porque, ao mesmo tempo, se consegue sombrear uma fachada e produzir energia para o edifício", diz o arquiteto. O uso de vidros duplos também possibilita que o primeiro absorva a radiação e o ambiente não fique superaquecido. O uso de um sistema geotérmico, que traz água quente do subsolo para serpentinas acopladas no piso, poderia ser usado para aquecer edifícios no sul do Brasil, no inverno.
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Para poupar energia, Alemanha investe em edifícios inteligentes - Instituto Humanitas Unisinos - IHU