16 Novembro 2011
Oprimido pelas críticas ao documento da Justiça e Paz sobre a crise financeira mundial. O secretário de Estado o desconhece. O L’Osservatore Romano o massacra. De agora em diante, cada novo texto do Vaticano deverá ter a prévia autorização do cardeal.
A reportagem é de Sandro Magister e está publicada no sítio Chiesa, 10-11-2011. A tradução é do Cepat.
Justamente enquanto em Cannes o G-20 chegava às suas frágeis e incertas conclusões, nessa mesma sexta-feira, 4 de novembro, no Vaticano, uma pequena reunião convocada pela Secretaria de Estado buscava colocar remédio em um enésimo momento de confusão na cúria romana.
No banco dos réus estava o documento sobre a crise financeira mundial divulgado 10 dias antes pelo Pontifício Conselho Justiça e Paz, que havia desconcertado a muitos, fora e dentro do Vaticano.
O secretário de Estado, o cardeal Tarcisio Bertone, lamentava não ter sido informado. E precisamente por isso havia convocado uma reunião na Secretaria de Estado.
A conclusão da reunião foi transmitir a todos os escritórios da cúria romana esta ordem taxativa: não divulgar mais nada dali em diante por escrito que não tenha o controle prévio e a autorização da Secretaria de Estado.
* * *
Certamente, o fato de Bertone e os seus terem visto esse documento apenas depois de sua publicação é algo que também assombra.
Com efeito, já em 19 de outubro, com cinco dias de antecedência, a Sala de Imprensa vaticana – que está diretamente subordinada à Secretaria de Estado – havia anunciado a entrevista coletiva para apresentar o documento, na qual tomaram a palavra o cardeal Peter Kodwo Appiah Turkson, presidente do Pontifício Conselho Justiça e Paz, e D. Mario Toso, seu secretário.
Toso, salesiano como Bertone e seu amigo íntimo há muito tempo, foi buscado para esse cargo justamente pelo cardeal secretário de Estado.
Quanto ao texto do documento, a Sala de Imprensa havia avisado que já estava pronto em quatro idiomas e teria sido entregue aos jornalistas credenciados três horas antes de sua publicação.
No dia 22 de outubro, um posterior aviso acrescentava o nome do professor Leonardo Becchetti à lista dos apresentadores.
Becchetti, professor de Economia da Universidade de Roma Tor Vergata e especialista em microcrédito e comércio justo e solidário, é considerado o principal divulgador do documento.
E, com efeito, no dia 24 de outubro, na entrevista coletiva para a apresentação do documento, sua intervenção foi a mais específica, orientada particularmente para reclamar a introdução de uma taxa para as transações financeiras, chamada de forma diferenciada de "Taxa Tobin" (pelo nome do seu criador) ou também de "Taxa Robin Hood".
No G-20 de Cannes a hipótese desta taxa apareceu em algumas alusões retóricas de Barack Obama e de Nicolas Sarkozy, mas não teve nenhum outro tratamento concreto.
Outra asseveração do documento do Vaticano, segundo o qual a economia europeia estaria em risco de inflação mais que de deflação, foi posto sob suspeita no dia 1 de novembro pela decisão do novo governador do Banco Central Europeu, Mario Draghi, que rebaixou a taxa de desconto do euro, mais que elevá-lo, como sempre se faz quando a inflação se torna um perigo real.
Quanto ao objetivo principal do documento, nada menos que um governo único mundial da política e da economia, saiu do G-20 de Cannes literalmente destroçado. Não apenas porque ninguém falou de semelhante utopia, nem sequer vagamente, mas porque o pouco que se decidiu em concreto foi na direção contrária. A desordem mundial é hoje maior que antes e tem seu déficit mais grave na maior incapacidade dos governos europeus de garantir uma "governança" do continente.
É de pouco consolo para o documento do Vaticano ter sido aproximado aos pontos de vista dos indignados do Ocupe Wall Street. Ou de ter encontrado eco em um artigo de barricada do primado anglicano Rowan Williams, publicado no dia 02 de novembro no Financial Times, a favor da "Taxa Robin Hood".
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Mas mais que estes péssimos votos, o que mais irritou muitos estimáveis leitores do documento do Pontifício Conselho Justiça e Paz é que está em clamorosa contradição com a Encíclica Caritas in Veritate, de Bento XVI.
Na Encíclica, de nenhuma maneira o papa Joseph Ratzinger invoca uma "autoridade pública com competência universal" na política e na economia, uma espécie de grande Leviatã que não se sabe como deve ser entronizado nem por quem, o que é desejado pelo documento de 24 de outubro.
Na Caritas in Veritate o Papa fala mais propriamente de "governança" (ou seja, de regulamentação, em latim "moderamen") da globalização, através de instituições subsidiárias e estratificadas. Isto não tem na nada a ver com um governo monocrático do mundo.
Quando depois se desce na análise e nas propostas específicas, surpreendeu também a forte brecha entre o que diz o documento do Pontifício Conselho Justiça e Paz e o que se defende há algum tempo no L’Osservatore Romano, nos editoriais de seu comentarista econômico, Ettore Gotti Tedeschi, presidente do Instituto para as Obras de Religião, o banco do Vaticano, e também querido neste cargo pelo cardeal Bertone.
Por exemplo, não há uma única linha, no documento, que atribua a crise mundial da economia e das finanças ao colapso da natalidade e ao conseguinte cada vez mais custoso envelhecimento da população.
Era fácil prever que Gotti Tedeschi não permaneceria em silêncio. Com efeito, no dia 04 de novembro –mesmo dia da reunião convocada por Bertone na Secretaria de Estado – se publicou no L’Osservatore Romano um editorial de sua autoria que soa como um repúdio total do documento do Pontifício Conselho Justiça e Paz.
O texto está na sequência. Ao lê-lo, surge a suspeita de que sua primeira redação talvez tenha sido ainda mais virulenta...
Diante das perspectivas de deflação, um novo modelo de liderança
Por Ettore Gotti Tedeschi
Os erros de interpretação e a subavaliação da atual crise econômica foram graves e persistem.
Suas verdadeiras origens, isto é, o colapso da natalidade e as consequências que levaram ao aumento das taxas sobre o PIB para absorver os custos do envelhecimento da população, foram mal interpretados. Foram subestimados os efeitos das decisões tomadas para compensar estes fenômenos, sobretudo com a deslocalização produtiva e com os consumos com dívidas.
Também não foram levados em justa consideração a urgência de intervir e os critérios a serem seguidos para deflacionar a dívida produzida. Portanto, não foi previsto o colapso da confiança que levou ao redimensionamento dos valores das Bolsas e à crise da dívida.
Neste ponto, as soluções já não são mais muitas.
Para reduzir a dívida total – pública, dos bancos, das empresas e das famílias – e reconduzi-la novamente para os níveis anteriores à crise, isto é, a cerca de 40% a menos, é concebível, mas não recomendável, cancelar uma parte da dívida com uma espécie de "pacto preventivo", com base no qual os credores sejam pagos em 60%.
É pensável, mas trata-se de uma hipótese sem perspectivas, inventar alguma nova bolha para compensar a dívida com um crescimento de valores mobiliários ou imobiliários.
É desejável – mas esperamos que seja apenas uma tentação – uma taxação da riqueza das famílias, mas sacrificando um recurso necessário para o desenvolvimento e produzindo ao mesmo tempo uma injustiça.
Também não se pode buscar um caminho de desenvolvimento rápido, graças a um crescimento da competitividade, mas que na crise global não é fácil gerar. Não existem capitais para investir, os bancos são frágeis, o problema demográfico penaliza a demanda e os investimentos. Neste contexto, além disso, os consumos baseados na dívida nem sequer são imagináveis.
Os países do ocidente são custosos e para torná-los econômicos em pouco tempo se deveria intervir sobre o custo do trabalho. Mas intervenções de tipo protecionista para manter as empresas não competitivas produziriam desvantagens para os consumidores e reduziriam os consumos já em declínio.
Poder-se-ia desvalorizar a moeda única, mas esta iniciativa levaria ao aumento dos preços de bens importados.
Há quem, para desinflar a dívida, pensa também na inflação. Mas a inflação não se acende se o crescimento econômico for igual a zero, se os salários estiverem estacionados, se a sombra do desemprego se alastrar e se até os preços das matérias-primas diminuírem.
Poder-se-á afirmar que a espiral inflacionária não dispara enquanto não houver desconfiança na própria moeda. A questão é que hoje não se pode confiar em nenhuma divisa: todas, inclusive o euro e o dólar, são frágeis.
A inflação não dispara até porque a liquidez não circula, mas sobretudo porque aquela que foi criada pelos bancos centrais substituiu aquela produzida pelos sistemas bancários para sustentar o crescimento da dívida.
O maior problema hoje não é, portanto, a inflação, mas a deflação. Os mercados, de fato, estão privilegiando a liquidez. Isso porque, sob o regime de deflação, o valor da moeda cresce, enquanto decresce durante a inflação.
Fazer a economia progredir sem aumentar a dívida pública significa correlacionar as taxas de juro com o PIB. Nos países com uma dívida superior a 100% do PIB, é evidente que, para obter um crescimento de 1% sem aumentar a dívida, é preciso ter taxas não superiores a 1%, penalizando desse modo as poupanças.
A solução está nas mãos dos governos e dos bancos centrais que devem realizar uma ação estratégica coordenada de reindustrialização, de reforço das instituições de crédito e de apoio ao emprego.
Isso leva tempo, um tempo de "austeridade" no qual se reconstituirão os fundamentos do crescimento econômico.
Mas, acima de tudo, os Governos devem devolver a confiança aos cidadãos e aos mercados através de uma governabilidade adaptada aos tempos, que, além de garantir adequação técnica, também seja um modelo de liderança, isto é, um instrumento para alcançar o objetivo do bem comum.
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Muita confusão. Bertone blinda cúria romana - Instituto Humanitas Unisinos - IHU