26 Outubro 2011
Sempre que o Vaticano parece se inclinar em uma determinada direção, há uma tendência nos círculos católicos de se tornarem obcecados com a quantidade de autoridade eclesiástica que o gesto ou o texto em questão carrega. Em grande parte, é uma questão legítima. Quando Bento XVI usa genuflexórios durante a Comunhão, por exemplo, as pessoas têm boas razões para refletir se isso é um prenúncio de uma medida política ou simplesmente uma questão de gosto pessoal.
A análise é de John L. Allen Jr., publicada no sítio National Catholic Reporter, 25-10-2011. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Às vezes, porém, se alvoroçar sobre a autoridade por trás de alguma coisa faz com que se perca o quadro maior. A reação à nota de segunda-feira, 24, do Conselho Pontifício Justiça e Paz, intitulada Por uma reforma do sistema financeiro internacional na perspectiva de uma Autoridade pública com competência universal, exemplifica um caso clássico em questão.
Para recapitular, a nota expressa uma rejeição clara às políticas econômicas "neoliberais" (no jargão norte-americano, "neoconservadoras") e um endosso igualmente claro de uma "verdadeira autoridade política mundial" para regular uma economia globalizada, uma autoridade que não seja dominada por grandes potências como os Estados Unidos. Como um passo preliminar, o documento pede a criação de uma instituição, ou de várias instituições, que desempenhe o papel de um "banco central mundial". Ele também oferece um impulso ao "Tobin Tax" sobre transações financeiras, recapitalização pública de bancos e uma maior regulação dos "mercados-sombra" [não regulamentados].
"É preciso recuperar o primado do espiritual e da ética e, com eles, o primado da política – responsável pelo bem comum – sobre a economia e as finanças", diz a nota. "Não devemos ter medo de propor coisas novas, mesmo que possam desestabilizar equilíbrios de forças pré-existentes que dominam sobre os mais fracos".
Os críticos, espantados com o conteúdo da nota, muito previsivelmente, desafiaram a posição vaticana. George Weigel rejeitou-o como o produto de um "escritório bastante pequeno da Cúria Romana", enquanto Bill Donohue disse que ele contém "neologismos" não encontrados no pensamento do Papa Bento XVI. Na verdade, há mérito nesses pontos. A nota dificilmente pode ser considerada como uma definição dogmática e, sobre questões fora do Catecismo, o Vaticano raramente fala a uma só voz.
No entanto, focar-se em quantos músculos papais a nota pode flexionar corre o risco de ignorar o que é, pelo menos, uma questão igualmente reveladora: independentemente da opinião pessoal, a nota parece refletir correntes importante no pensamento social e político católico em algum lugar do mundo?
A resposta é sim, e isso acontece no lugar onde dois terços dos católicos do planeta vivem hoje: do hemisfério Sul, também conhecido como mundo em desenvolvimento.
É perceptível que a autoridade vaticana responsável pelo documento seja um africano, o cardeal Peter Turkson, de Gana, porque ele articula os elementos-chave daquilo que quase poderia se chamar de "consenso do Sul". Uma forma de dimensionar o significado da nota, portanto, é como uma indicação de que a transição demográfica em curso há muito tempo no catolicismo, com seu centro de gravidade deslocando-se do Norte ao Sul, está sendo sentida em Roma.
Há quase 750 milhões de católicos espalhados pela África, Ásia e América Latina, e generalizações sobre uma tal vastidão de pessoas sempre são perigosas. No entanto, em questões de moral sexual e das "guerras culturais", os católicos no Sul geralmente criticam os europeus e norte-americanos como extremamente conservadores – opostos ao casamento gay, antiaborto, dedicados à família tradicional. No entanto, quando a conversa muda para a política econômica e para a geopolítica, a opinião católica no mundo em desenvolvimento muitas vezes retrata o Ocidente como notavelmente progressista.
Para ser mais específico, os bispos, sacerdotes, religiosos e leigos do Sul muitas vezes são:
Alguns outros exemplos dão mais corpo a esse quadro.
Em uma edição de 2002 da revista Theological Studies, o falecido Dean Brackley e Thomas Schubeck delinearam um "consenso latino" na economia, expresso não apenas por teólogos vanguardistas da América Latina, mas também em documentos oficiais da Igreja. Eles o descreveram desta forma: "O mercado é um instrumento útil e até mesmo necessário para estimular a produção e para alocar recursos. No entanto, na "nova economia", o excesso de confiança no mercado agravou a desigualdade social, concentrou ainda mais a riqueza e a renda, e deixou milhões de pessoas atoladas na miséria".
Os líderes católicos de outras partes do Sul global têm opiniões semelhantes. Por exemplo, em um relatório de 127 páginas publicado em 2004, os bispos católicos da Ásia declararam que "a globalização econômica neoliberal" destrói famílias asiáticas e é a principal causa da pobreza no continente.
Em junho de 2005, um grupo de bispos católicos da Eritreia, Etiópia, Quênia, Malawi, Tanzânia, Sudão, Uganda, Zâmbia, Somália e Djibuti declararam: "Estamos particularmente horrorizados com a devastação do capitalismo desenfreado, que varreram e sufocaram a propriedade local das iniciativas econômicas e está levando a uma brecha perigosa entre os poucos ricos e a maioria pobre".
Agora, considere-se a linguagem da nota do Vaticano, que respira grande parte do mesmo ar: "Mas o que levou o mundo nessa direção extremamente problemática também para a paz? Acima de tudo, um liberalismo econômico sem regras e sem controles. [...] Uma ideologia econômica que estabeleça a priori as leis do funcionamento do mercado e do desenvolvimento econômico, sem se confrontar com a realidade, corre o risco de se tornar um instrumento subordinado aos interesses dos países que gozam, de fato, de uma posição de vantagem econômica e financeira".
Certamente, pode-se debater os méritos de tais percepções ou as medidas políticas que podem fluir a partir deles. No entanto, rejeitar tudo isso como nada mais do que percepções enganadoras de um departamento vaticano isolado é ignorar as realidades demográficas e culturais da Igreja no século XXI.
Esse não é o eco moribundo de um socialismo europeu requentado. Para melhor ou para pior, é a primeira agitação de uma onda que vem do Sul.
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Nota do Vaticano sobre a economia: a primeira agitação de uma onda que vem do Sul - Instituto Humanitas Unisinos - IHU