03 Junho 2011
Arcebispo Vincent Nichols, de Westminster, junto aos três ex-bispos anglicanos ordenados sacerdotes católicos: Pe. John Broadhurst, Pe. Andrew Burnham e Pe. Keith Newton
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Não é por nada que a Congregação para a Doutrina da Fé, de Roma, ficou conhecida como a "Suprema". Sua especialidade não é a de se consultar com outros órgãos, quer dentro do Vaticano, quer em outros lugares. Essa mentalidade foi espetacularmente exibida com a abrupta revelação da nova estrutura supraterritorial da Igreja Católica Romana chamada de "Ordinariato Pessoal", com suas portas abertas a grupos de anglicanos descontentes de todo o mundo, que foram convidados a se mudar coletivamente para Roma, trazendo seu patrimônio anglicano consigo. Esse artefato explosivo havia sido depositado secretamente debaixo da superfície das relações anglicano-católicas romanas por um pequeno grupo de infiltrados da congregação doutrinal, incentivados pelo Papa Bento XVI. Nas coletivas de imprensa do dia 20 de outubro de 2009, ele foi detonado.
A análise é de John Wilkins, ex-editor da revista católica inglesa The Tablet. Ele mesmo era um anglicano antes de se tornar um católico há 45 anos. O artigo foi publicado no sítio National Catholic Reporter, 23-05-2011. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Os destroços da explosão estão agora se assentando. Na Inglaterra, o único país até agora onde o ordinariato está instalado e funcionando, quase mil ex-anglicanos, compostos por grupos de leigos junto a 64 de seus pastores, dos quais 54 pediram para se tornar padres católicos, chegaram ao longo da primeira onda. A ordenação do ex-clero anglicano está sendo acelerada para Pentecostes. A Congregação para a Doutrina da Fé está a cargo disso, pois os bispos católicos romanos local queriam que esses clérigos fossem submetidos a um ano de preparação.
Três ex-bispos anglicanos, todos casados, todos agora com o título de monsenhor, são os líderes. Um deles, Keith Newton (foto), foi nomeado como o ordinário, pode portar um báculo e usar uma mitra, e participa das reuniões da Conferência dos Bispos da Inglaterra e do País Gales com igualdade de voz. Em um eco da tradição sinodal anglicana, ele é obrigado a se consultar com um conselho de administração de padres e leigos, e os futuros titulares do seu ofício serão indicados a partir de uma lista de três candidatos estabelecida por esse conselho, não pelo núncio.
Um dos três, Mons. Andrew Burnham, um grande homem com uma grossa barba e um olhar interrogativo ou bem-humorado, lembrou-me como tudo isso aconteceu. Atualmente, ele e sua esposa ainda vivem na espaçosa residência episcopal em Dry Sandford, nos arredores de Oxford. Eles estão se preparando para sair, pois o ordinariato na Inglaterra não pode trazer consigo quaisquer igrejas ou edifícios anglicanos. Conversamos em seu escritório, onde há um altar, um genuflexório e velas acesas.
Assim como a maioria dos recém-chegados, Burnham é um ex-membro do Forward in Faith, o movimento majoritário para os anglo-católicos que temem que a Igreja da Inglaterra perdeu a sua influência sobre a ordem eclesial. À sua frente, estava Dom John Broadhurst, agora também um dos líderes do Ordinariato. O fator precipitante que levou esses anglicanos a chegar ao que quase foi um cisma interno foi a decisão de 1993 do Sínodo Geral da Igreja da Inglaterra de aprovar a ordenação de mulheres. Para o Forward in Faith, o iminente e inevitável movimento rumo à ordenação de bispas ameaça romper o vínculo com a sucessão apostólica que a Igreja da Inglaterra previamente reivindicava.
Um momento-chave em sua jornada, segundo Burnham, ocorreu em 2008. "Eu tinha 60 anos. Eu havia decidido que eu devia fazer um esforço supremo. Eu iria a Roma e tentaria visitar o Vaticano". Ao fazer algumas consultas, ele ficou surpreso ao descobrir que ele não só seria recebido no Pontifício Conselho para a Promoção da Unidade dos Cristãos, encarregada sob o cardeal Walter Kasper do ecumenismo anglicano, mas também na Congregação para a Doutrina da Fé, onde o prefeito, o cardeal William Levada, e sua equipe iriam estar presentes.
Ele contou a notícia para Keith Newton, que, como ele, era naquela época um "bispo voador", responsável pela supervisão das paróquias anglicanas que não aceitavam as mulheres padres. Newton pegou um avião para se juntar a ele.
Burnham faz uma distinção entre as respostas dos dois dicastérios vaticanos. No conselho da unidade, Kasper disse que a política até então havia sido apenas do diálogo com Igrejas inteiras. Não era a competência do conselho lidar com grupos específicos. Mas Levada, na congregação doutrinal, disse que "qualquer um que busque aderir à fé católica e acredita no catecismo católico deve ser recebido na comunhão com a Igreja Católica. Essa é a nossa competência. Portanto, sim, estamos muito interessados".
Cruzando o rio Tibre
Esses não eram os únicos bispos anglicanos que pescavam em águas romanas. Houve outras dezenas de visitas clandestinas por parte de dioceses da Igreja da Inglaterra. Houve aproximações enérgicas por parte da separatista Comunhão Anglicana Tradicional, que afirmava já ser católica e que pedia para ser aceita como um todo.
Daí a invenção da congregação de doutrina, o Ordinariato Pessoal, lançado sem consulta com o conselho da unidade vaticano ou com os bispos de cada Igreja local, e com uma notícia com apenas duas semanas e meia de antecedência ao arcebispo anglicano Rowan Williams, de Canterbury, na Inglaterra. Alguns bispos perturbados devem estar se perguntando pela cortesia, pelo método ecumênico e pela observância à doutrina da colegialidade do Vaticano II entre o papa e o episcopado.
"Esse ecumenismo não é do tipo `você vem para o nosso time`?", questiono Newton, enquanto conversamos em seu atual escritório na cúria católica no centro de Londres. Ele está vestido precisamente como os clérigos católicos e usa uma grande cruz de prata peitoral. Eu continuo: "Eu pensava que a Igreja Católica, prevendo um longo percurso, já não via as coisas dessa forma".
"Bem", diz ele, "quanto a mim, eu estou impaciente".
Mas, ainda assim, eu pergunto: por que cruzar o rio Tibre em grupos? Afinal de contas, os recém-chegados ainda terão que fazer uma profissão individual antes de unir novamente aos seus companheiros. O que impede que esses requerentes façam o que John Henry Newman fez, isto é, buscar o discernimento, decidir-se, questionar um padre católico e, em 1845, pedir para ser recebido? Ele trouxe o seu patrimônio anglicano consigo (a consulta junto aos leigos, o desenvolvimento da doutrina, fontes patrísticas ao invés de escolásticas, a primazia da consciência) e causou problemas com isso. Ele não precisou de um ordinariato.
A entrada em grupo, acrescenta Newton, torna real o intercâmbio de dons. "Se você se torna católico individualmente, você assume uma nova história. Mas, com o ordinariato, você pega o que você é e do que é feito, e o traz para a Igreja Católica Romana consigo. Você está orgulhoso disso e se deleita com isso. Eu descobri minha vocação aos 15 anos e estou ordenado há 37 anos: não posso fingir que isso não aconteceu".
Essa afirmação do valor permanente do seu passado anglicano está em harmonia com a ênfase dada ao "patrimônio anglicano" na constituição e nas normas para o Ordinariato Pessoal, publicados sob o título Anglicanorum coetibus. Aqui está uma tentativa de dar vida aos ossos de uma promessa feita pela primeira vez aos anglicanos durante as Conversações de Malines, na Bélgica, na década de 1920, de que eles seriam "unidos, não absorvidos". A promessa foi reiterada pelo Papa Paulo VI em uma passagem acrescentada no último minuto pelo seu próprio punho ao texto da sua homilia para a canonização de 40 mártires ingleses e galeses em 1970. Ele falou sobre a Igreja Anglicana como uma "irmã sempre amada" com um "valioso patrimônio de piedade e de costumes", que deve ser preservado.
Mas em que consiste exatamente esse patrimônio? A resposta não é, de forma alguma, óbvia.
Quem assistiu a transmissão televisiva da oração vespertina na Abadia de Westminster, quando o papa visitou a Grã-Bretanha no ano passado – ou o recente casamento real na mesma abadia – deve ter ficado impressionado com a liturgia anglicana: a dignidade e o ritmo ordenados do cerimonial, a poesia das palavras, a expressão muito inglesa de emoção contida, os discursos bem torneados, os hinos que convidam a assembleia para a beleza e o desafio da doutrina e da vida cristãs e que – católicos, por favor, tomem nota – são cantados para chegar ao teto. "A maioria de nós", disse Burnham, "têm isso em nosso DNA".
Mas até que ponto os recém-chegados terão isso também em sua consciência? Em 2009, quando Levada foi chamado ao Palácio de Lambeth para comunicar Williams sobre a inovação romana que estava indo em sua direção, o bispo anglicano ecumenista, Christopher Hill, de Guildford, Inglaterra, foi chamado a se juntar a eles. O cardeal começou a louvar as riquezas do patrimônio litúrgico anglicano.
Hill se sentiu impelido a formular uma reserva. O grupo de clérigos que podia levar em consideração a opção pelo ordinariato, ele objetou, era composto precisamente por aqueles que, durante muitos anos, haviam usado o Missal Romano e o Ofício Divino Romano. "Eu podia até ver o embaraço do cardeal", contou-me o bispo.
O rito a ser preparado para o ordinariato em conjunto com a Congregação para a Doutrina da Fé e a Congregação para o Culto Divino se baseará no Livro do Culto Divino, aprovado por nove paróquias de "uso anglicano" dos Estados Unidos desde 1980. Hill vê nisso pouco que seja autenticamente anglicano. Ele espera que a versão para a Inglaterra, que deve estar pronta em breve, seja mais imaginativa.
Clero casado
Outro aspecto fundamental do patrimônio anglicano é o clero casado. Os ex-anglicanos, com suas esposas e famílias, são agora uma característica familiar do sacerdócio católico da Grã-Bretanha. Agora, haverá mais. Mas as normas para o ordinariato antecipam que a presente disposição para esse clero será eliminada. É verdade, diz Newton, mas o ordinário poderá pedir exceções a Roma com base em cada caso.
Aonde é que tudo isso leva o instrumento ecumênico dominante anterior entre as duas Comunhões, a Comissão Internacional Anglicana-Católica Romana? Um recente editorial do jornal da diocese católica de Lancaster opinou que somente o ordinariato até agora ofereceu uma forma viável de reencontro.
No entanto, a comissão, sob a égide do que era então a Secretaria do Vaticano para a Promoção da Unidade dos Cristãos, agora o conselho da unidade, alcançou progressos incríveis em primeiro lugar. Foi crucial o seu método, conforme estabelecidos pelo Papa Paulo VI e o arcebispo de Canterbury Michael Ramsey, e confirmado posteriormente pelo Papa João Paulo II: buscar cruzar a linha de formulações doutrinais opostas para analisar até onde a realidade cristã subjacentes a elas era, na verdade, compartilhada. Ao tomar esse caminho, a comissão alegou ter chegado a um acordo sobre o ministério e os sacramentos, e a um acordo considerável sobre a autoridade. Mas então veio a divergência. A Igreja de Inglaterra colocou a ordenação das mulheres acima do ecumenismo e, depois de deixar os anglicanos esperando por 10 anos por uma resposta, Roma apareceu para repudiar todo o método da comissão.
Os novos líderes do ordinariato esperam que os infiltrados da congregação de doutrina já tenham aberto um caminho através do subsequente bloqueio ecumênico. A congregação está introduzindo um novo modelo ecumênico, disse Burnham, com base no parecer favorável ao Catecismo da Igreja Católica como a expressão de autoridade da fé católica.
Mas, embora o catecismo contenha afirmações dogmáticas, ele não é propriamente dogma. Alguns teólogos católicos romanos, como o professor Nicholas Lash, da Universidade de Cambridge, Inglaterra, têm profundas reservas acerca da abordagem da congregação. O catecismo não é uma profissão de fé, protesta Lash, e não deve ser tratado como tal.
Ninguém sabe o que o futuro reserva. As pessoas estão esperando para ver como o ordinariato da Inglaterra progride e o que a Igreja da Inglaterra vai fazer a seguir. Mas o que permanece para mim é o alívio e o comprometimento alegres desses recém-chegados. Pelo menos, eles sentem que são compreendidos e queridos.
Apesar de ainda serem tentados a olhar para trás, para as facções na Igreja que eles abandonaram, eles não têm necessidade de se preocupar mais com isso. Eles se sentem livres agora para missionar para todos, no estilo anglicano. Eles estão determinados a fazer o trabalho da experiência: eles sabem que têm que se misturar, enquanto trazem seus dons particulares. Eles vêm com humildade, dizem, e enfatizam a sua gratidão pelo calor da sua acolhida.
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Com milhares de anglicanos convertidos, ordinariato começa a funcionar - Instituto Humanitas Unisinos - IHU