Eric Porfírio da Silva ainda não tinha nascido quando o governo decidiu que era hora de construir uma hidrelétrica nas águas do Xingu, rio denso que corta o Mato Grosso e avança país acima, até encontrar o Amazonas. Ontem,
Silva falava do assunto como especialista. E crítico. "Sinceramente, eu sou contra essa usina, por mim não faziam não, mas já que agora essa obra vai sair, tomara que pelo menos façam alguma coisa para melhorar a vida da gente", diz.
A reportagem é de
André Borges e publicada pelo jornal
Valor, 02-06-2011.
Com 30 anos de idade, pai de dois filhos e dono da "
Relojoaria e Variedade Zé do Ouro",
Silva diz que está ansioso por um futuro melhor para seu negócio, hoje uma lojinha cravada nas palafitas do igarapé Altamira, um imenso labirinto de casas suspensas por estacas de madeira, colado ao centro da cidade. "Soube da licença quando estava na rua. Está o maior zunzunzum. Agora que liberaram o negócio de vez, quero ver se vai mudar alguma coisa para nós."
A apreensão desse vendedor de relógios é a mesma que tomou conta de cerca de 15 mil pessoas que hoje vivem nos barracos amontoados entre os igarapés de Altamira, sem qualquer tipo de segurança ou saneamento básico. Em até três anos, todos terão de sair das casas e seguir para reassentamentos organizados pelo
Consórcio Norte Energia, responsável pela construção da usina.
Ao todo, a remoção deverá atingir pelo menos 19,2 mil habitantes, dos quais 16,4 mil estão no centro. Mais 2,8 mil estão espalhados pelo interior do município.
Boa parte de
Altamira, que ostenta a faixa de ser o maior município do mundo, vai ficar debaixo d`água. Os cálculos feitos pelo governo preveem que será preciso remover 4.362 famílias que ocupam 4.747 imóveis no município. Esse número, no entanto, poderá aumentar muito, admite o superintendente de obras de compensação da Norte Energia,
José Menezes Biagioni. "Não são números oficiais, mas particularmente acredito que teremos de reassentar cerca de 7 mil famílias", comentou.
As áreas inundadas de
Altamira e região serão usadas para abrigar tudo o que está relacionado à construção da usina, das ações de engenharia e infraestrutura da construção aos reservatórios da barragem da usina. A água também vai engolir regiões onde hoje funcionam 350 comércios e outras 85 pequenas indústrias - a maior parte delas ligadas à fabricação de tijolos. Essas pequenas empresas, onde trabalham pelo menos 1,1 mil pessoas, terão que mudar de endereço. A inundação vai chegar, inclusive, a cobrir parte da rodovia
Transamazônica, que corta a cidade. Alguns bairros, que hoje vizinhos, serão isolados pela água.
Segundo a
Norte Energia, mais da metade do reservatório de Belo Monte, que atingirá 516 Km2 - equivalente a 516 campos de futebol - está concentrada em
Altamira. Com a inundação, a cidade vai perder 267 Km2, 52% do total. Os demais 48% estão no município vizinho,
Vitória do Xingu. "É preciso lembrar que boa parte dessas áreas já ficaram inundadas em época de cheia. Não estamos inventando nada novo", diz
Biagioni.
São palavras difíceis aos ouvidos do aposentado
Benedito Barbosa da Trindade, de 63 anos de idade, conhecido no igarapé de Altamira como o mais velho das palafitas.
Trindade, que vive na beira do igarapé há mais de 20 anos, passa boa parte de seu tempo consertando as estacas da passarela improvisada que liga os barracos. "A vida aqui é difícil, mas você se acostuma e passa a gostar. Por mim, eu não saia. Agora, não sei nem onde vão por a gente, até agora ninguém apareceu aqui para explicar essa história."
As condições extremamente precárias da vida de boa parte dos habitantes é resultado do crescimento desordenada que nos últimos 40 anos tomou conta da região. Sem qualquer tipo de planejamento, bairros imensos foram brotando ao longo das margens dos igarapés do Xingu. Hoje
Altamira tem 105 mil habitantes.
De maneira geral, o cenário é desolador. Não há rede de esgoto e 18% das casas não têm instalações sanitárias. A coleta de lixo chega a atender pouco mais da metade das casas do município. Para ter acesso à água, mais de 70% dos habitantes recorrem a poços artesianos, os quais têm grande risco de contaminação, uma vez que o esgoto não é tratado e segue direto para o solo, em fossas improvisadas.
Ironicamente, a cidade que será a sede da maior usina 100% nacional do país também sofre com abastecimento de energia. Apesar da
Companhia Elétrica do Pará (Celpe) alimentar a região com energia desde há algumas décadas, os apagões são frequentes. No quesito desmatamento, a região já está escolada, vítima de intensa ação de grilagem de terras e devastação ilegal. Os dados mais recentes do governo apontam que pelo menos 30% do território dos principais municípios que serão afetados diretamente pela usina - Altamira, Anapu, Brasil Novo, Vitória do Xingu e Senador José Porfírio - já foram totalmente devastados.
Agora que tem a licença de instalação nas mãos, a
Norte Energia promete entregar as obras obrigatórias que assumiu ao vencer o leilão da usina, mas sem pressa. O Ministério Público Federal sempre bateu insistentemente na tecla de que muitas obras condicionantes para liberação da usina não estavam prontas. O consórcio, hoje, admite isso. A previsão é que todas as promessas feitas durante a fase de planejamento da hidrelétrica sejam entregues em até cinco anos, ou seja, só em 2016, quando a empresa pretende ligar a primeira turbina da usina.
Ademais, a empresa alega que há outras tantas obras a fazer, como a construção de 500 casas em Altamira e 2,5 mil casas em Vitória do Xingu, todas elas para abrigar seus funcionários. O local onde essas casas serão erguidas ainda é desconhecido, assim como a região que será usada para o reassentamento de quase 20 mil pessoas.
A cidade se prepara para uma revolução. No pico da obra, serão 18 mil empregados em Belo Monte. Ao longo das obras, 96 mil pessoas devem se mudar para a região do Xingu.
Apesar da comemoração em Brasília pelo licenciamento, a hidrelétrica está longe de ser unanimidade. Pelas ruas de
Altamira, é possível ver pichações em muros, com o protesto de que a cidade será vítima de um "belo monte de mentiras". Mas os críticos não estão sós. Em uma esquina ou outra, faixas espalhadas pelo consórcio
Norte Energia, amarradas a postes, convidam a população para um "show imperdível" da banda Calipso. De quebra, informam que haverá o sorteio de onze motos zero quilômetro.
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Futuro em Altamira continua incerto - Instituto Humanitas Unisinos - IHU