01 Junho 2011
Depois de ler o livro – belo e intenso como um apaixonado exame de consciência – gostaria de entender por que Hilary Putnam (foto) – que por 60 anos escreveu sobre "fatos e valores" e de filosofia da ciência, com a autoridade que todos lhe reconhecem em nível internacional – decidiu se abrir às grandes interrogações religiosas e ao mistério que as rodeia.
A reportagem é de Antonio Gnoli, publicada no jornal La Repubblica, 31-05-2011. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Putnam, há pouco tempo, publicou Filosofia ebraica, una guida di vita (editado pela Carocci com um posfácio de Massimo Dell`Utri e Pierfrancesco Fiorato), e o título já deixa claro que não se trata de uma reconstrução neutra do pensamento de Rosenzweig, Buber, Lévinas e Wittgenstein, mas sim de uma verdadeira leitura, que implica em uma escolha de campo, em uma adoção e em uma solidariedade íntima com o pensamento judaico.
Putnam nasceu em Chicago, tem 85 anos e é considerado o maior filósofo analítico em circulação. Ele acaba de entregar para a Harvard University Press uma coleção de ensaios intitulada Philosophy in the Age of Science. De formação, é matemático e lógico e, no passado, se ocupou da filosofia da linguagem e da mente.
Eis a entrevista.
Professor Putnam, de onde nasce a necessidade de se envolver com os problemas da fé, abraçando, além disso, sua substância espiritual?
Foi Kierkegaard que falou sobre o salto da fé, que deve ocorrer só depois da reflexão. Acredito que ter uma vida espiritual própria é uma bênção, mas sem reflexão corre-se o risco de provocar aqueles distúrbios ou mal-estares que frequentemente acompanham as religiões.
Que mal-estares?
Kant elencou quatro: fanatismo, superstição, desilusão, bruxaria. São um grande perigo para qualquer pessoa que abrace uma religião.
O senhor utiliza alguns importantes pensadores judeus como antídoto para os perigos que uma religião pode representar. Mas o que Rosenzweig, Buber e Lévinas têm em comum?
São muito diferentes entre si, mas têm em comum o fato de filosofarem no sulco da tradição judaica e de serem todos os três filósofos existencialistas. Ou seja, todos os três estariam de acordo ao afirmar que filósofos e religiosos são o que são pelo seu modo de estar no mundo e não só pela sua capacidade de desenvolver uma teoria. Esse aspecto, que considero fundamental, é uma dívida sua para com Kierkegaard.
Mas é possível ser, como no seu caso, ateu e ao mesmo tempo crente? Não se corre o risco de confundir dois planos inconciliáveis?
De um lado, eu não acredito no sobrenatural, e, aos olhos de muita gente, isso me torna um ateu, embora eu prefira pessoalmente usar esse termo só para quem se opõe ativamente à religião. De outro lado, acredito que os ideais religiosos e morais têm alguma validade. Em outras palavras, penso que valores e ideais são construções humanas, mas as demandas que eles nos permitem satisfazer não foram inventadas por nós. Não brinco nem minto quando afirmo que pregar Deus – o que eu faço todos os dias – não é pregar um ser fictício. Para alguns, isso faz de mim um crente. Mas o que eu acredito quando digo "Creio em Deus" não é, de fato, aquilo que o ateu nega quando diz "Deus não existe". Entende-se assim por que o diálogo entre um ateu e um crente pode se tornar um diálogo de surdos.
Pode-se levar a distinção entre ateus e crentes a uma distinção mais geral entre fatos e valores?
Não penso que os valores não religiosos – morais, epistemológicos etc. – pressuponham a religião ou Deus. Eles nos dizem, simplesmente, que existem modos de viver, de raciocinar, de agir que são melhores ou piores do que outros. Não vejo o naturalismo na filosofia incompatível com a crença na realidade normativa. Quem é cético sobre a normatividade do mundo certamente o será também sobre a ideia de que o modo de vida religioso pode ter um valor objetivo.
Na sua visão filosófica, quem vem antes: o conhecimento científico ou o religioso?
Penso que a religião não deveria ser considerada uma forma de conhecimento. Quando alguns invocam a autoridade da religião para negar dados científicos (por exemplo, a evolução), bem, eles são simplesmente irracionais. Além disso, o conhecimento moral – isto é, o saber de que todos nós somos dignos de respeito e temos direitos – não depende da religião que professamos.
O senhor é considerado um filósofo realista. Imagino que seja uma definição que não lhe satisfaça mais.
Ao contrário, me satisfaz plenamente, como procurarei demonstrar com o novo livro que recém entreguei.
E a sua ideia de religião?
Um amigo meu e grande estudioso das religiões de todo o mundo repetia muitas vezes que nenhuma religião era inteiramente boa, e, para explicar a sua pequena provocação, ele acrescentava:" Eu poderia mostrar tantas diferenças entre os metodistas de Londres, de 1815, quantas se pressuponha que existam entre todas as outras religiões do mundo". Do meu ponto de vista, um modo de vida religioso satisfatório deve conduzir rumo ao florescimento, incluindo o florescimento da moral, do indivíduo e da comunidade. O que a religião não deve fazer é criar dogmas sobre argumentos científicos e morais.
O senhor escreveu páginas muito interessantes sobre Lévinas, que, como o senhor sabe, foi aluno de Heidegger. O que o senhor pensa sobre Heidegger?
Acredito que o pensamento de Heidegger foi profundamente permeado pela sua longa simpatia pelo nacional-socialismo. Já desde antes que Hitler tomasse o poder. Sei que essa interpretação é controversa. Mas é um fato que já em Ser e Tempo Heidegger estava convencido de que nós escolhemos o nosso destino escolhendo o nosso herói, e ele acrescenta que não se escolhe só para si mesmos, mas também para o seu próprio Volk. A autenticidade que ele defende não tem nada a ver com a individualidade. Ela nasce da veneração pelo Volk e pela sua suposta grandeza. Não nego que ele era um gênio. Do meu ponto de vista, considero, porém, que ele foi um gênio do mal.
O senhor afirma não acreditar em uma vida ultraterrena e não acreditar nos milagres ou em um Deus que nos salva dos desastres. Sobre o que o senhor baseia a sua fé?
Como Kant, considero que o gênero mais valioso de religiosidade não se encontra na expectativa de alguma recompensa. E, além disso, Kant tinha razão quando afirmava que muitas pessoas precisam acreditar na vida eterna e em uma recompensa após a morte. Eu não. Mas não posso desprezar aquilo que dá às pessoas a coragem de seguir em frente. Contanto que isso não leve à intolerância.
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Como se tornar um ateu crente - Instituto Humanitas Unisinos - IHU