10 Março 2011
Uma ironia mordaz sobre o papado de Bento XVI é que, enquanto o Vaticano que ele preside se apresenta às vezes como desajeitado em termos de relações públicas, o próprio Papa é quase universalmente reconhecido como um comunicador talentoso.
A análise é de John L. Allen Jr., publicada no sítio National Catholic Reporter, 10-03-2011. A tradução é de Moisés Sbardelotto e revisada pela IHU On-Line.
Teólogo e professor veterano, Bento XVI pode expressar ideias teológicas complexas em frases cristalinas que não exigem um Ph.D. para serem compreendidas, e ele tem um talento especial para formular a mensagem cristã em termos positivos – o que eu tenho chamado como sua "ortodoxia afirmativa".
Nos velhos tempos, quando um Papa dissesse ou fizesse algo controverso, em seguida, seus assessores acalmariam as coisas. Mais recentemente, na verdade, tem sido o Papa que tem trazido o Vaticano de volta "para a mensagem", depois de alguém trocar os pés pelas mãos. (Isso, aliás, não deve ser tomado como uma crítica ao porta-voz oficial de Bento XVI, o padre jesuíta Federico Lombardi, que faz um trabalho heroico, dadas as circunstâncias.)
Tivemos um outro exemplo dessa dinâmica nos últimos dias, com o lançamento do segundo volume do livro Jesus de Nazaré, de Bento XVI (publicado nos Estados Unidos pela Ignatius Press).
Trechos divulgados na semana passada deram a Bento XVI um novo colorido devido ao seu reconhecimento de que "os judeus" não são responsáveis pela morte de Cristo. A partir de hoje, o texto integral de Jesus de Nazaré: A Semana Santa está disponível, e é provável que irá solidificar a impressão de que Bento XVI é o seu melhor porta-voz.
Em termos de valor midiático, talvez o maior destaque é outro ramo de oliveira papal ao judaísmo: não apenas que os cristãos não devem culpar os judeus pela morte de Jesus, diz Bento XVI, mas também que os cristãos não devem tentar convertê-los.
O livro está atraindo resenhas positivas não apenas de católicos, mas também de protestantes e judeus.
Em uma teleconferência com jornalistas organizada pela Ignatius Press, o estudioso bíblico protestante Craig Evans chamou o segundo volume de Jesus de Nazaré de "uma realização notável" e de "o melhor livro sobre Jesus que eu li em muitos anos".
O rabino Jacob Neusner, um prolífico escritor judeu que está envolvido no intercâmbio acadêmico com o Papa há mais de um quarto de século, disse que Bento XVI "fez algo que ninguém mais fez no moderno estudo da escritura" – demonstrar como os resultados do estudo histórico e científico podem ser mesclados com a fé profunda.
Nesse sentido, disse Neusner, o método subjacente de Jesus de Nazaré pode ser útil para judeus e muçulmanos na forma como abordam as suas próprias escrituras e figuras sagradas, como Moisés e Maomé, "transcendendo os limites que os modernos estudos históricos colocam sobre a afirmação teológica".
Os estudiosos da Bíblia terão que analisar sintaticamente os pontos finos da exegese de Bento XVI, e, sem dúvida, haverá algum debate. Benjamin Witherington, do Asbury Theological Seminary, por exemplo, já salientou que as referências de Bento XVI tendem a ser um pouco datadas – ele utiliza escritores da primeira metade do século XX mais do que dos últimos 30 anos. (Embora, como Witherington disse, "eu percebo que ele esteve um pouco ocupado nos últimos 30 anos".)
Além de comentários do Papa sobre o judaísmo, o que se segue representa uma amostra de outros pontos interessantes de Jesus de Nazaré: A Semana Santa.
Ecumenismo
Comentando sobre a oração de Jesus no Evangelho de João para que "todos sejam um", Bento XVI insiste em continuar a busca da "unidade visível" entre os ramos divididos da família cristã.
"A luta pela unidade visível dos discípulos de Jesus Cristo continua sendo uma tarefa urgente para os cristãos de todos os tempos e lugares", escreve Bento XVI.
"A união invisível da `comunidade` não é suficiente", afirma. "A unidade deve ser visível, deve ser reconhecível como algo que não existe no resto do mundo, como algo que é inexplicável com base nos próprios esforços da humanidade e que, portanto, torna visível o funcionamento de um poder mais alto".
Há pelo menos duas formas de ler essas frases, uma das quais poderia ser vista como um desafio aos outros cristãos, e a outra como um apelo para não perder a esperança ecumênica.
A ênfase Bento XVI no caráter essencialmente "visível" da unidade cristã pode ser vista como uma repreensão indireta a algumas compreensões protestantes da Igreja, que tendem a minimizar as instituições – talvez especialmente as estruturas hierárquicas associadas ao catolicismo romano.
O padre jesuíta Joseph Fessio, ex-aluno de Bento XVI e diretor da Ignatius Press, disse que é assim que ele lê o texto, indicando que Bento XVI está "usando um bisturi muito pontudo" na forma como ele sutilmente sugere que as estruturas e as instituições são essenciais.
Por outro lado, as palavras de Bento XVI também podem ser lida de forma mais simples, como um convite para não jogar a toalha da superação dos vários cismas e rupturas que marcaram a história cristã. Em uma época a que muitos se referem como um "inverno" ecumênico, em que as esperanças de unidade estrutural parecem ter diminuído, esse tipo de ferverino [pequeno sermão] papal tem valor.
Além disso, alguns protestantes dizem que o agudo interesse do Papa pela Bíblia e a maneira como ele se aproxima dela, por si sós, representam uma promissora abertura ecumênica.
"Fiquei espantado com a forma como ele soa protestante e evangélico", disse Evans. "Eu não hesitaria em dar esse livro aos meus alunos, e, se não dissesse `Papa Bento XVI` na capa, eles poderiam nem saber que não é um livro protestante".
Para muitos, para todos
Poucas questões de tradução litúrgica têm sido tão controversas nos últimos anos como a melhor forma de traduzir a frase em latim pro multis, nas palavras da consagração durante a missa Ela surge quando o sacerdote consagra o vinho, e, na atual tradução inglesa, está traduzida como: "Será derramado por vós e por todos para a remissão dos pecados".
Os críticos têm insistido não só que multis em latim significa claramente "muitos" – não "todos" –, mas também que traduzi-lo como "muitos" é teologicamente impreciso, dando a impressão de que todos são salvos, independentemente de sua relação com Cristo e com a Igreja . Os defensores insistem que traduzir o termo para "muitos" ao invés de "todos" trunca artificialmente o escopo da missão de Cristo, que é universal.
Como os críticos tendem a ser teologicamente conservadores, e os defensores, mais liberais, a controvérsia sobre o pro multis facilmente é engolida pelas tensões esquerda/direita mais amplas na Igreja. (Não ajuda o fato de que a autoridade padrão em defesa da posição "todos" era um estudioso luterano, Joachim Jeremias.)
A nova tradução inglesa do Missal usa "por muitos", de acordo com uma diretiva do Vaticano de 2006.
Em seu livro, Bento XVI esboça brevemente a história desse debate durante o século XX, que muitas vezes girava em torno do significado da palavra "muitos" no Antigo Testamento, especialmente no profeta Isaías. Ele conclui que, de um ponto de vista puramente linguístico, a palavra moderna "muitos" é a tradução correta.
No entanto, Bento XVI também sugere que a decisão tem que ser diferenciada do significado teológico que os cristãos atribuem à morte de Jesus na Cruz.
"Se Isaías usou a palavra `muitos` para se referir essencialmente à totalidade de Israel", escreve, "então, assim como a Igreja responde com fé ao novo uso da palavra por Jesus, torna-se cada vez mais claro que ele realmente morreu por todos".
Em outras palavras, Bento XVI efetivamente oferece uma solução "e/e" para o antigo debate sobre o "pro multis" – "muitos" é a tradução correta, mas "todos" é uma interpretação teológica legítima.
Igreja e Estado
Embora o catolicismo tenha mantido por muito tempo uma forte união entre trono e altar, o Concílio Vaticano II (1962-1965) quebrou esse molde em sua declaração sobre a liberdade religiosa. Bento XVI tornou-se um grande apóstolo do que ele chama de "secularismo saudável", tomando o termo emprestado do presidente francês Nicolas Sarkozy, ou seja, uma forma de separação Igreja-Estado que implica em liberdade para, e não liberdade da, religião.
Indiretamente, Bento XVI retorna a esse tema em Jesus de Nazaré, argumentando que a "essência" do novo caminho proposto por Jesus era "uma separação entre o religioso e o político".
Essa ideia, disse o Papa, "mudou o mundo".
"Em seu ensinamento e em todo o seu ministério, Jesus inaugurou um reino messiânico não político e começou a separar essas duas realidades até então inseparáveis uma da outra". Parte do núcleo da mensagem de Jesus, escreve Bento XVI, era a separação entre "a política e a fé, o povo de Deus e a política".
Embora esses princípios gerais obviamente deixem uma margem enorme para consubstanciar a justa relação entre Igreja e Estado, eles, pelo menos, confirmam que o amplo apoio de Bento XVI ao "secularismo saudável" permanece intacto. É um ponto especialmente crítico para os católicos do Oriente Médio de hoje, que estão tentando ajudar seus vizinhos muçulmanos a ver que um Estado civil pode ser democrático e respeitoso perante a religião.
Mulheres na Igreja
Bento XVI faz uma distinção no final do livro entre duas maneiras diferentes no Novo Testamento de falar sobre a ressurreição de Jesus e de seu significado, o que ele chama de "tradição confessional" e "tradição narrativa". A primeira se refere à fórmula curta do credo, tais como aquelas encontradas nas cartas de Paulo, enquanto a última se expressa nas histórias pós-ressurreição dos evangelhos sinóticos.
Uma diferença interessante entre as duas, observa Bento XVI, é que todas as testemunhas citadas na tradição confessional são homens, mas, nos relatos narrativos, as mulheres prevalecem.
A título de explicação, Bento XVI diz que os relatos narrativos não se sentem vinculados à "estrutura jurídica" da tradição judaica, na qual só os homens podiam testemunhar no tribunal, mas, ao contrário, "comunicam toda a amplitude da experiência da ressurreição".
O Papa aplica essa distinção à Igreja de hoje.
"A estrutura jurídica da Igreja é fundada sobre Pedro e os 11", escreve, "mas, na vida cotidiana da Igreja, são as mulheres que constantemente abrem as portas ao Senhor e acompanham-no até a Cruz, e por isso são elas que vêm experimentar o Ressuscitado".
A tradução prática dessa questão na política da Igreja provavelmente significa o seguinte: não há alteração na ordenação, mas sim um compromisso para promover as mulheres em todos os papéis dentro do catolicismo que não requeiram um colarinho romano.
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Novo livro confirma: Bento XVI é o seu melhor porta-voz - Instituto Humanitas Unisinos - IHU