09 Novembro 2021
"Descobrimos então que estamos diante de um Deus que não vem modificar nossos desafios e problemas, nem os resolver; o que a oração mental pode e deve modificar é nossa atitude diante das vicissitudes e adversidades cotidianas", escreve Alfredo J. Gonçalves, cs, padre, vice-presidente do SPM – São Paulo.
O itinerário de uma espiritualidade sólida e robusta costuma passar pelo deserto e pela noite escura. Na imensidão das areias inóspitas, depara-se com oásis que pontilham as curvas e as ladeiras íngremes da travessia. Na escuridão noturna, vislumbra luzes fugidias, mas eternas que, vez por vez, iluminam as trevas que a vida nos reserva. São raros os momentos de longo e largo entusiasmo ou de sensações transbordantes. Menos ainda o contentamento festivo e eufórico, regado a lágrimas de emoção.
Em termos de trajetória mística, navegar nas ondas do sucesso tende, em contrapartida, a cair nos declives do fracasso. Emoções, sentimentalismos e lágrimas rapidamente se extinguem, deixando um gosto amargo de vazio e tédio. O fogo de artifício sobe e explode em cores e desenhos vivos e vibrantes, mas logo se apaga, se reduz a cinzas, e retorna ao solo com a rapidez com que se levantou. Para quem surfa nas ondas aparentemente alegres do entusiasmo, cedo ou tarde, será fatal encalhar na areia movediça da tristeza e da angústia, do desespero e da depressão.
Pavimentar a estrada da espiritualidade, definitivamente, nada tem a ver com a fácil ideia da “varinha mágica”. Esta tornou-se uma espécie de “abre-te sésamo” não somente no universo fictício de Harry Potter, mas também nos shoppings centers do mundo moderno e pós-moderno. Um ícone da sociedade rumorosa, apelativa e estridente. Hoje, tudo e todos parecem ao alcance da mão e do desejo insaciável. A tecnologia de ponta, o progresso crescente e multicolorido, a realidade virtual e a noção de liberdade sem freios – tudo isso combinado confere um poder ilusório e sem limites onde nada é interditado.
Num percurso espiritual sério e profundo, acabamos “tropeçando” com um mistério divino ao mesmo tempo oculto e desconhecido. A “varinha mágica” deixa de funcionar. Um rosto incógnito e invisível não há como manipular, nem dispor a seu bel prazer. Descobrimos então que estamos diante de um Deus que não vem modificar nossos desafios e problemas, nem os resolver; o que a oração mental pode e deve modificar é nossa atitude diante das vicissitudes e adversidades cotidianas.
Também não é um Deus que venha em nosso socorro, pronto a arrancar-nos do fundo do poço nas situações-limite da existência. Quando muito, sua luz e oásis nos ajudam a enxergar o entorno em que nos movemos, para verificar que podemos, sim, contar com alguém que nos estenda a mão. Tampouco se trata de um poder divino que estende um tapete por onde caminhamos para evitar eventuais quedas e feridas. O dom de liberdade que d’Ele recebemos permite-nos decidir, por conta própria, pela salvação ou pela condenação, pelo sim à vida ou à morte.
O percurso da intimidade com Deus é lento e laborioso: em lugar de uma “varinha mágica” e do mérito pessoal, o que nos guia é a fé e a confiança incondicionais. O tempo também é outro: não o do relógio e da pressa, mas o do coração sereno, sábio e esperançoso. Minutos, horas e dias de deserto podem nos revelar, num vislumbre de um segundo, um oásis aconchegante para o repouso que revigora. Noites e noites de trevas tendem a acender, com a instantaneidade de um relâmpago, uma pequena e tênue chama, mas de um esplendor incomensuráveis. Calor que ilumina sem queimar.
De poço em poço, de luz em luz, pavimenta-se a estrada que nos leva à nascente de água viva. Melhor conhecer o caminho da fonte que receber um ocasional copo de água. Tais jardins apenas entrevistos em meio às areias do deserto, bem como esses raios fugazes, mas de uma luminosidade incomparável, conservam viva e cálida a memória. Mesmo quando ausentes, conferem luz e energia para seguir a via. Apesar das nuvens, o sol brilha acima delas. Basta pensar no “século de ouro” do misticismo espanhol, com Inácio de Loyola (1491-1556), Teresa d’Ávila (1515-1582) e João da Cruz (1542-1591).
Nisso consiste uma real espiritualidade. Contempla não a falsa euforia ou fogo o fátuo, de palha, nem o espetáculo cheio de luz e cor, porém, a encruzilhada áspera, mas que esconde um abrigo seguro contra tormentas e tempestades. Contempla não apenas dias permanentemente ensolarados, mas sobretudo trevas densas e sombrias, em meio às quais, entretanto, quanto maior a escuridão, tanto mais forte será o brilho da face oculta e resplandecente de Deus. Na noite escura ou deserto, a presença de Alguém se torna bálsamo e sustento em meio às intempéries da travessia.
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Espiritualidade sem fogo de artifício - Instituto Humanitas Unisinos - IHU