15 Abril 2021
"No Brasil, depois de recuar significativamente até meados da década passada, a fome voltou a crescer", escreve José Eustáquio Diniz Alves, demógrafo e pesquisador em meio ambiente, em artigo publicado por EcoDebate, 14-04-2021.
A água e a comida são dois bens essenciais para a vida de qualquer espécie viva da Terra. A história da humanidade é a história da luta pela sobrevivência e pela segurança alimentar. Desde os tempos bíblicos a fome assusta as diversas populações nacionais. Na Revolução Francesa o povo foi para as ruas dizer que não tinha pão para comer e a alienada rainha Maria Antonieta deu como alternativa comer brioche. Historicamente, a fome está sempre associada à revoltas e revoluções. Aumento da carestia é sempre um alerta.
O Índice de Preços de Alimentos da FAO (FFPI) é uma medida da variação mensal dos preços internacionais de uma cesta de commodities alimentares. Consiste na média de cinco índices de preços de grupos de commodities ponderados pelas participações médias de exportação de cada um dos grupos no período 2014-2016. Ele é um importante indicador da segurança alimentar no mundo.
O FFPI da FAO, em valor real, teve um curto pico acima de 120 pontos em meados da década de 1970, em decorrência do primeiro choque do petróleo, mas atingiu os valores mais baixos da série entre 1985 e 2005. Contudo, a perspectiva é de alta no século XXI. O preço dos alimentos caiu no início da pandemia da covid-19, mas voltou a subir a partir de maio de 2020. O FFPI teve média de 107,5 pontos em dezembro de 2020, valor bem superior aos 91,0 pontos de maio. Para o conjunto do ano de 2020 o valor foi de 97,9 pontos, bem acima dos 91,9 pontos de 2016, embora abaixo do recorde de 120 pontos (em termos reais) de 2011. O preocupante é que os preços voltaram para o patamar de 120 pontos.
A fome é uma constante na história humana e seria ilusão imaginar que o mundo estaria livre desta ameaça. O maior volume absoluto de óbitos provocados pela desnutrição aconteceu na década de 1870, quando 20,4 milhões de pessoas morreram por inanição no mundo. Foi nesta época que foi criado o hino “A Internacional” que foi composto em 1871, por Eugène Pottier (1816-1887), que havia sido um dos membros da Comuna de Paris. Os primeiros versos do hino diz: “De pé ó vítimas da fome; De pé famélicos da terra”. Estes versos refletiam a situação daquele momento. A carência de alimentos era uma realidade que ceifava milhões de vítimas.
Na década de 1880 o número de vítimas caiu para menos de 3 milhões, mas voltou a subir para quase 10 milhões na década de 1890. Surpreendentemente, o número de óbitos por fome diminuiu na década de 1910 – quando houve a Primeira Guerra Mundial – mesmo sendo o número de 2,6 milhões ainda muito elevado. Na década de 1920 a fome cresceu muito novamente, atingindo 16 milhões de vítimas fatais devido, principalmente, à situação da União Soviética e da China. Na década de 1940 – quando aconteceu a Segunda Guerra Mundial – a fome bateu todos os recordes do século XX, com 18,6 milhões de vítimas. Na década de 1960 a fome voltou a assustar, mas principalmente pela grande crise provocada pelos equívocos da política de “Um grande salto para frente” da China. Passado a grande tragédia na China na década de 1960, o número de vítimas da insegurança alimentar diminuiu muito no mundo nas décadas seguintes, sendo que o número de mortes atingiu o menor nível na década passada (2011-20).
Porém, as conquistas do último século podem não durar para sempre. O pandemônio econômico provocado pela covid-19 tem desarticulado a cadeia de produção de vários produtos e tem gerado aumento do preço global da comida, devido a 5 fatores: aumento dos custos de produção e transporte; desorganização da cadeia produtiva global (gerando gargalos na produção e distribuição); aumento do preço do petróleo; danos causados pela crise ambiental; e desvalorização cambial.
O fato é que está cada vez mais difícil produzir alimentos de forma sustentável. O relatório “Climate Change and Land”, do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC) da ONU (08/08/2019) – que trata da conexão entre o uso da terra e seus efeitos sobre a mudança climática – mostra que existe um efeito perverso de retroalimentação entre as duas coisas, pois a produção de alimentos aumenta o aquecimento global, enquanto as mudanças climáticas decorrentes ameaçam a produção de alimentos.
O relatório do IPCC mostra, de forma inquestionável, que o crescimento da população mundial e o aumento do consumo per capita de alimentos (ração, fibra, madeira e energia) têm causado taxas sem precedentes de uso de terra e água doce, com a agricultura atualmente respondendo por cerca de 70% do uso global de água doce. Adicionalmente, o aumento da produção e consumo de alimentos contribuíram para o aumento das emissões líquidas de gases de efeito estufa (GEE), perda de ecossistemas naturais e diminuição da biodiversidade. O sistema alimentar responde por cerca de 30% de todas as emissões de gases de efeito estufa (GEE) e 80% do desmatamento global.
Trabalho acadêmico publicado na prestigiosa revista Nature Sustainability (Gerten et. al, 2020) mostra que o sistema alimentar mundial atual pode alimentar apenas 3,4 bilhões de pessoas sem transgredir os principais limites planetários, de acordo com uma análise do sistema agrícola global. Todavia, a reorganização da produção de alimentos – alterando a forma de cultivar e modificando a dieta cotidiana predominante – possibilitaria alimentar até 10 bilhões de pessoas de forma sustentável.
Os autores dizem categoricamente que “Não devemos continuar na direção de produzir mais alimentos às custas do meio ambiente”. Utilizando o arcabouço teórico das Fronteiras Planetárias, a equipe de Gerten analisou os quatro limites que são relevantes para a agricultura: não usar muito nitrogênio, o que causa zonas mortas em lagos e oceanos; não tirar muita água doce dos rios; não derrubar muita floresta; e manutenção da biodiversidade.
A conclusão da equipe é que metade da produção de alimentos hoje viola esses limites. No entanto, essa análise também é a primeira a fornecer informações sobre onde, geograficamente, esses limites estão sendo transgredidos.
No Brasil, depois de recuar significativamente até meados da década passada, a fome voltou a crescer. O Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil, desenvolvido pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar (Rede Penssan) mostra que houve um retrocesso acentuado nos dois últimos anos, pois, de 2013 a 2018, a insegurança alimentar teve aumento de 8% ao ano, mas de 2018 a 2020, esse crescimento acelerou, sobretudo na modalidade severa, e o total de pessoas com fome saltou de 10,3 milhões para 19,1 milhões, conforme mostra o gráfico abaixo.
O relatório FAO-WFP Hunger Hotspots faz uma análise antecipada e prospectiva de países e situações, chamados de hotspots, onde a insegurança alimentar aguda deve piorar nos próximos meses. Esses pontos são identificados por meio de uma análise baseada em consenso dos principais fatores de insegurança alimentar e sua provável combinação e evolução entre países e regiões. Olhando para o período de março a julho de 2021, há 20 países e situações onde há uma probabilidade de maior deterioração da insegurança alimentar aguda, devido a múltiplas causas da fome que estão interligados ou se reforçam mutuamente. Estes são principalmente conflitos dinâmicos, choques econômicos, impactos socioeconômicos da covid-19, extremos climáticos e a difusão de pragas vegetais e doenças em animais. Um grupo específico de pontos críticos – destacados na figura abaixo, são particularmente preocupantes devido à escala, gravidade e tendências das crises alimentares existentes. Em alguns áreas desses países, partes da população estão experimentando uma situação crítica de fome, com esgotamento extremo dos meios de subsistência, consumo insuficiente de alimentos e desnutrição aguda elevada.
No Brasil, em 2020, o preço do arroz e do feijão – produtos essenciais na mesa da maioria dos brasileiros subiu bem acima da inflação, assim como os hortifrutis e o preço das carnes e dos ovos. A situação é mais grave pois o auxílio emergencial tem valor baixo e não cobre todas as pessoas necessitadas. Existem 32 milhões de pessoas desempregadas ou desalentadas (subutilizadas). Existe um barril de pólvora no país.
Segundo Relatório do NECSI (New England Complex Systems Institute) publicado em 28/09/2012, há uma correlação importante entre o aumento do preço dos alimentos, calculados pela FAO e a ocorrência de protestos em todo o mundo, conforme mostra o gráfico abaixo. Sempre que o índice da FAO sobe, ocorrem manifestações. Pior é quando se conjuga crise econômica, crise ambiental e crise social em numa situação de enorme desigualdade de renda e bem-estar. Por exemplo, o gatilho que detonou a Primavera Árabe foi o aumento do preço da comida. Na Tunísia, o início das manifestações começou após a imolação do jovem Mohamed Bouazizi, de 26 anos, vendedor ambulante de frutas e verduras, em Sidi Bouzid. Entre dezembro de 2010 e janeiro de 2011, a revolução na Tunísia provocou a saída do presidente da República, Zine el-Abidine Ben Ali, que controlava o poder desde 1987.
Como mostraram Martine e Alves (Rebep, 2015) o debate sobre população, fome e meio ambiente é antigo e, em 2013, houve um debate durante a XXVII Conferência da IUSSP – International Union for the Scientific Study of Population, onde foi organizada uma plenária para debater a seguinte afirmação: “Para os países em desenvolvimento, o desenvolvimento econômico precisa ser uma prioridade maior do que a proteção do ambiente e a conservação dos recursos naturais”. O demógrafo David Lam defendeu a ideia de que é possível conciliar o desenvolvimento com o meio ambiente e que o preço dos alimentos iria diminuir. Já o demógrafo Stan Becker defendeu as posições opostas. Eles fizeram uma aposta, com Lam defendendo que o preço dos alimentos iria diminuir e Becker defendendo a ideia de que o preço dos alimentos continuaria alto, assim como a insegurança alimentar. No dia 09/04/2021 a IUSSP e a PAA organizaram o “Webinar on Population, Food and the Environment” onde ficou claro que a perspectiva de Stan Becker venceu, pois o preço dos alimentos continua alto e subindo.
O mundo inteiro está passando por um repique da insegurança alimentar. Com o agravamento da 2ª onda da pandemia no Brasil nos primeiros meses de 2021 e com o rescaldo da maior recessão econômica em um século, os brasileiros vão viver uma situação amarga. A possibilidade de revoltas é enorme. O clima no país está conturbado. O ministro Luís Roberto Barroso, do STF, determinou que o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, tome uma atitude e instaure a CPI, proposta pelo senador Randolfe Rodrigues que investigará os crimes de Bolsonaro durante a pandemia. Na segunda-feira, o senador Jorge Kajuru (Cidadania-GO) divulgou um novo trecho do áudio de uma conversa com o presidente Jair Bolsonaro sobre a CPI da Pandemia, onde Bolsonaro xinga o senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP) e ameaça agredi-lo.
Pressionado, o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (DEM-MG), oficializou nesta terça-feira (13/04) a criação da CPI da Covid. O Congresso brasileiro tem um histórico de abertura de CPIs. Duas delas levaram a impeachment de presidentes: a do PC, em 1992, e a da Petrobras, em 2015. Collor foi derrubado pelo esquema PC Farias. Dilma caiu por problemas no Orçamento. O governo Bolsonaro está entre a cruz e a caldeirinha.
A CPI da Covid pode ser o início do julgamento de Nuremberg do Bolsonarismo. O povo brasileiro está com fome de comida e fome de justiça.
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O preço dos alimentos bate recordes e aumenta a fome. Artigo de José Eustáquio Diniz Alves - Instituto Humanitas Unisinos - IHU