07 Agosto 2020
Em meio à recente controvérsia sobre o Vaticano II, um teólogo disse que os concílios ecumênicos têm uma história de provocar conflitos, mas sua expressão e explicação da fé católica são protegidas pelo Espírito Santo.
A reportagem é de J. D. Flynn, publicada por Catholic News Agency, 05-08-2020. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
“O Espírito Santo não pode ser incoerente consigo mesmo”, disse John Cavadini, teólogo da Universidade de Notre Dame, nos Estados Unidos, à CNA, mas, “mal interpretadas, as declarações de um concílio ecumênico podem ser incoerentes com os ensinamentos anteriores.”
Cavadini foi nomeado em 2009 pelo Papa Bento XVI para atuar na Comissão Teológica Internacional da Igreja e é especializado em história intelectual do cristianismo.
O teólogo disse que os documentos da Igreja às vezes precisam de algum esclarecimento, mas dizer isso não é o mesmo que afirmar, como alguns críticos recentes fizeram, que um concílio ecumênico pode ensinar ou conter erros sobre a fé católica.
O Concílio Vaticano II foi uma reunião de autoridade dos bispos da Igreja Católica, chamado de concílio ecumênico, realizado em Roma de 1962 a 1965. Houve 21 concílios ecumênicos na história da Igreja, nos quais, de acordo com o Catecismo da Igreja Católica, “o Colégio dos Bispos exerce de modo solene o poder sobre toda a Igreja no Concílio Ecumênico” [cân. 337].
O Vaticano II tem sido objeto de desacordo desde o seu início.
O Concílio foi convocado para articular os ensinamentos da fé católica de uma forma que pudessem ser entendidos na modernidade, para lidar com a relação da Igreja com o mundo secular e para abordar algumas questões teológicas e pastorais que haviam surgido nas décadas anteriores.
Desde a conclusão do Concílio Vaticano II, tornou-se um projeto teológico de décadas por parte dos bispos da Igreja interpretar e entender a plenitude da sua visão, de uma forma consistente com os ensinamentos doutrinais da Igreja. Esse projeto levou a inúmeras iniciativas teológicas e pastorais, e também a divisão.
Alguns católicos, incluindo alguns bispos que participaram do Concílio, acharam que tentativas de “modernizar” a linguagem ou a catequese da Igreja poderiam levar a equívocos sobre questões importantes ou a uma expressão menos precisa e direta da doutrina e do culto católicos.
Alguns críticos do Vaticano II disseram que os documentos produzidos pelo Concílio contêm erros; outros dizem que eles precisam de esclarecimentos; enquanto muitos outros criticaram a aplicação do Concílio nas décadas seguintes, enquanto defendiam os próprios documentos. Em alguns casos, esses debates levaram a rupturas oficiais na Igreja.
Nos últimos meses, o debate sobre o próprio Concílio se tornou mais público e mais agudo.
Em uma entrevista em junho e em outras cartas recentes, o arcebispo Carlo Viganò, ex-representante papal nos EUA, fez uma série de críticas contra o Concílio Vaticano II que atraíram uma considerável atenção de alguns estudiosos e católicos, principalmente por causa da sua fonte: uma ex-alta autoridade vaticana que havia sido nomeada para seus cargos pelo Papa São João Paulo II e pelo Papa Bento XVI, ambos apoiadores do Concílio Vaticano II.
Viganò afirmou que, no Concílio Vaticano II, “forças hostis” provocaram “a abdicação da Igreja Católica” através de um “engodo sensacional”.
“Os erros do período pós-conciliar estavam contidos nas Atas conciliares in nuce”, acrescentou o arcebispo, acusando o Concílio, e não apenas as suas consequências, de erros manifestos.
Viganò sugeriu que o Concílio Vaticano II catalisou um cisma massivo, mas invisível, na Igreja, inaugurando uma falsa Igreja ao lado da verdadeira Igreja.
No mês passado, alguns católicos, incluindo padres, personalidades midiáticas e alguns estudiosos, assinaram uma carta elogiando o envolvimento de Viganò no assunto e afirmando que, “se o Vaticano II pode ou não se reconciliar com a Tradição é a questão a ser debatida, não um premissa postulada às cegas a ser seguida, mesmo que contrária à razão. A continuidade do Vaticano II com a Tradição é uma hipótese a ser testada e debatida, não um fato incontestável”.
Em resposta a Viganò, Cavadini escreveu em julho que simpatiza com as frustrações católicas “em relação à evidente confusão na Igreja hoje, à atenuação da fé eucarística, à banalidade de grande parte daquela que parece ser a herança do Concílio em termos litúrgicos etc.”.
“No entanto, é justo culpar o Concílio rejeitando-o como um acontecimento repleto de erros? Mas isso não significaria que o Espírito Santo permitiu que a Igreja caísse em erros prodigiosos e ainda permitiu que cinco papas o ensinassem com entusiasmo ao longo de mais de 50 anos?”, perguntou Cavadini.
“Além disso, será que o Concílio Vaticano II não produziu realmente nada que valha a pena mencionar? Viganò não menciona nada. É verdade que suas reformas litúrgicas foram comandadas pela banalidade nos Estados Unidos. Por exemplo, há a introdução de hinos sem nenhum mérito estético, mas que contêm erros doutrinários, especialmente em relação à Eucaristia, hinos que descatequizam os próprios católicos que participam fielmente da missa dominical”, escreveu ele, observando que ele havia experimentado belas liturgias em nações africanas que eram fruto do Concílio Vaticano II.
Falando de uma dessas missas na Nigéria, Cavadini escreveu que, “após a Comunhão, quando toda a assembleia recitava em uníssono três vezes: ‘Graças e louvores sejam dados a todo o momento ao Santíssimo e Diviníssimo Sacramento’, parecia que o Espírito Santo estava fazendo o apelo mais profundo possível aos nossos corações, alcançando as nossas almas, ajudando-nos a ‘rezar como devemos’”.
O teólogo também elogiou o chamado universal à santidade contido na Lumen gentium, o documento do Vaticano II sobre a Igreja. O Concílio enfatizou que a santidade, ou seja, a proximidade a Deus, não é apenas um âmbito de padres e religiosos, mas de todas as pessoas.
“Foi algo que me pareceu tão sublime quando eu o li pela primeira vez aos 19 anos de idade que o desejo de vivê-lo nunca se esgotou até agora”, escreveu ele.
Cavadini catalogou outros aspectos do Vaticano II, que, segundo ele, foram importantes pronunciamentos teológicos ou pastorais. Ele afirmou que as alegações de que os documentos do Vaticano II plantaram as “sementes” do erro teológico não resistem a um exame mais acurado.
“O Vaticano II é uma semente ruim? Ou será que a semente em questão é a escolha desigual dos teólogos para desenvolver uma linha de ensino conciliar às custas de outras? Sem falar dos pastores que priorizaram tanto o verdadeiro bem de tornar o ensino cristão acessível e inteligível para as pessoas modernas que minimizaram a sua singularidade por ser embaraçosamente ultrapassada”, comentou.
Em comentários à CNA, Cavadini enfatizou que outros concílios foram mal interpretados e controversos. Seu artigo observou que, depois de alguns concílios, como o de Calcedônia, as controvérsias continuaram durante séculos.
“O fato de uma declaração precisar de uma interpretação mais aprofundada não é uma característica exclusiva desse Concílio”, disse Cavadini.
O teólogo levantou um exemplo do Concílio de Niceia, que ocorreu no verão de 325. O concílio, em uma discussão sobre a Trindade, declarou que o Filho é consubstancial, ou homoousios, com o Pai.
“Houve uma reação generalizada contra essa palavra”, disse Cavadini à CNA, por parte de bispos e teólogos que a compararam com a heresia do sabelianismo, do século III, que havia sido condenada pelo magistério da Igreja.
“Somente quando o uso da palavra hupostasis ou persona foi esclarecido e distinguido de ousia ou ‘substância’ é que a ambiguidade foi esclarecida. Mas – para enfatizar – esse não foi um erro no ensino em si, longe disso! No entanto, o próprio ato de fazer uma declaração cria uma nova situação, que muitas vezes requer mais interpretação.”
Quando Niceia usou a palavra homoousios, “ele estava pegando uma palavra contaminada”, disse o teólogo.
“Nossos críticos do Vaticano II não teriam gritado contra a falta? E contra o erro? Eles simplesmente não se lembram de que mesmo esse concílio, um dos mais famosos, foi ousado o bastante a ponto de correr o risco de usar uma palavra contaminada em um novo sentido com uma nova intenção.”
Ele acrescentou que, em meio aos esforços para interpretar um documento, o esclarecimento oficial de uma linguagem pouco clara às vezes é importante.
Sobre as questões de fé, “um concílio ecumênico está preservado do erro”, acrescentou, “mas isso não significa que tudo foi expressado da melhor maneira possível, pois o Espírito Santo não garante isso, mas garante simplesmente que a Igreja, em seu ensino de autoridade, está preservada de afirmações definitivas de erro”.
Cavadini instou os católicos, e especialmente as lideranças da Igreja, a lerem seriamente os documentos do Vaticano II e a trabalharem para incorporá-los em seu entendimento da Igreja.
A recente controvérsia, escreveu ele, e a carta de Viganò, “pelo menos, tiveram a virtude de me forçar a sair da complacência ao aceitar meias medidas na recepção do Concílio. Talvez outros se encontrem comigo nesse mesmo barco também”.
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Vaticano II não é o único concílio controverso, diz teólogo católico - Instituto Humanitas Unisinos - IHU