10 Dezembro 2016
Apesar de vender uma imagem de confiança na origem, a cadeia da carne no Brasil ainda é incapaz de garantir um bife sem débitos ambientais na mesa do brasileiro. A reportagem de ((o))eco foi até o município de São Félix do Xingu, Sul do Pará, detentor do maior rebanho bovino do Brasil, para conhecer os primeiros elos da cadeia, que continuam fora do controle.
A reportagem é de Juliana Tinoco, fotos e vídeo de Marcio Isensee e Sá, publicada por O Eco, 07-12-2016.
Na região, a taxa de desmatamento é alta, as leis valem pouco e a bagunça fundiária impera. Hoje, os pecuaristas que fazem a venda final aos grandes frigoríficos precisam provar que não desmataram, ou então ficam fora deste mercado. Mas o gado que eles engordaram para abate costuma vir de outras fazendas, em geral menores e sempre livres de monitoramento, que contornam restrições com o bom e velho jeitinho brasileiro. Atravessadores, troca-troca de documentação e a incompetência dos órgãos estaduais e federais permitem que gado de desmatamento chegue legalizado ao matadouro.
“Tem que matar em meu nome”, explica Neto, comerciante de boi na Tabocas, distrito de São Félix do Xingu. “Precisa estar em meu nome para poder receber o dinheiro”. Neto é o que se conhece na região como catireiro — que vem de catira, troca, negociação –, alcunha que os próprios não gostam. “O que a gente faz é comércio. É comprar e vender”, resume. O negociante atua na região dos assentamentos e pequenas vilas na Tabocas, zona rural do município de São Félix do Xingu. Ele dá mais detalhes sobre o dia a dia da profissão: “Por semana, a gente carrega geralmente de oito a dez caminhão, o que dá em torno de 160 a 200 cabeças de gado gordo. De bezerro, geralmente são dois caminhão por semana, o que dá 70 bezerros”.
Os bezerros, Neto vende para as fazendas da região. Quando o que vai no caminhão é gado gordo, ou seja, pronto para o abate, o destino é o frigorífico. No caso de Neto, além do Frigol, único abatedouro legal de São Félix, a venda se estende por municípios vizinhos como Tucumã, Água Azul, Xinguara e Redenção, atendidos por frigoríficos como JBS, Marfrig, Marfripar e Rio Maria. Para realizar a venda para qualquer um deles, Neto precisa apresentar documentos do gado. Como nem todos aqueles que lhe venderam boi cumprem os requisitos impostos pelo setor, Neto já está acostumado a abater em seu nome, ou seja, como se os bois viessem da sua propriedade.
A Guia de Transporte Animal (GTA) tem o papel de verificação sanitária e é a principal exigência. Nos últimos anos, outras surgiram. Em 2009, o Ministério Público do Pará determinou um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) com frigoríficos operando com carne da Amazônia. Conhecido como TAC da Carne, o acordo prevê as condições sob as quais frigoríficos podem comprar sua matéria-prima, o boi. A principal regra do jogo é a garantia de que o animal não pastou sobre área desmatada após julho de 2008.
Sem a licença de órgão oficial, derrubada de floresta após essa data é crime, diz a legislação florestal brasileira.
As exigências impostas pelos TAC da Carne recaem sobre as fazendas ou os comerciantes que vendem o boi gordo para os frigoríficos. Na aparência, tudo certo. Mas, para detectar os furos no sistema, é preciso voltar às etapas anteriores do caminho do boi até o matadouro.
Tudo começa com quem cria e vende bezerros, via de regra produtores de pequeno porte. As chamadas fazendas de cria vendem o animal para as de recria – que pegam o bezerro logo após o desmame. De lá, os animais seguem para as fazendas de engorda, que realizam a venda final para o abate. Há também os pequenos produtores que engordam o próprio boi para a venda, mas, por serem menores, naturalmente têm menos cabeças.
Como todo o ciclo depende de transporte para o animal – e em vastos territórios, como São Félix, as fazendas são longe e de difícil acesso – um frigorífico não costuma comprar pequenos volumes de várias propriedades, preferindo adquirir o produto em lotes maiores. Surge aí o catireiro, que se encarrega de coletar dos pequenos, reunir e vender de uma só vez ao frigorífico ou a um fazendeiro de maior porte.
Além de intermediar a questão logística, o comerciante cuida também de outra pendenga comum: a de produzir a documentação do gado. Como muitas propriedades não têm os papéis em dia, não é raro que os intermediários façam vista grossa a essa exigência, emitindo eles mesmos a papelada necessária para seguir em frente com a venda. Para todos é obrigatório portar Guia de Transporte Animal (GTA). Para ter direito a emitir uma GTA, o produtor precisa estar inscrito no sistema de controle sanitário do seu estado. No caso do Pará, a Agência Estadual de Defesa Agropecuária do Estado do Pará (ADEPARÁ) faz o controle.
São Félix do Xingu (PA) lidera entre os 10 municípios com maior área desmatada na Amazônia.
“Nós temos hoje 5.419 produtores cadastrados na ADEPARÁ de São Félix”, diz Paulo Henrique Silva Miranda, responsável pelo órgão no município. O número é cerca da metade das “dez mil pequenas propriedades e mil e poucas grandes e médias” na região, no cálculo de Wanderlei Silva Coelho, Secretário de Agricultura de São Félix. A divergência entre os dois números sugere que há problemas também na fiscalização sanitária, pois o comerciante que emite GTA em nome de produtores informais não vai exigir que esse gado tenha sido vacinado contra febre aftosa.
Para além do GTA, há também as barreiras impostas pelos frigoríficos que assinaram o TAC da Carne. Estes fecham as portas para produtores que têm áreas embargadas ou constam da lista de desmatamento do governo. São Félix é o município com maior área desmatada na Amazônia, com 17.885 km2, seguido de longe por Porto Velho (RO), em 2o lugar, com 9.147 km2.
Os detalhes de como o negócio da carne prospera na Amazônia a despeito da aparente garantia de rastreabilidade são conhecidos pelo setor. Seus atores falam abertamente do problema dos “indiretos”, como são chamados os produtores de cria e recria.
Durante um congresso sobre pecuária sustentável, em outubro, no Canadá, um executivo da Marfrig, 2o maior frigorífico brasileiro, apresentou números mostrando que 50,8% do gado abatido pela empresa em 2015 veio de fornecedores indiretos, os quais, hoje, não são monitorados.
Criado em área desmatada/embargada ou não, o destino do boi é o abate, mesmo que isso exija documentos falsos ou frigoríficos que não obedecem a lei. Foto: Marcio Isensee e Sá
São Félix do Xingu já foi uma vila à beira do rio onde índios, pescadores e ribeirinhos conviviam. Até finais de 1970, sustentava-se da pequena agricultura. A pecuária praticamente inexistia. A chegada da mineração e da extração de mogno, ainda naquela década, deu o pontapé no tradicional ciclo econômico de desenvolvimento de cidades na Amazônia, que inclui a abertura desenfreada da floresta e a especulação de terras – atividade que costuma vir acompanhada de boi.
O município tem 84 mil km2, duas vezes o tamanho do estado do Rio de Janeiro. Em 1974, segundo o IBGE, São Félix tinha cerca de 3 mil habitantes e 200 cabeças de gado. Hoje, são 120 mil pessoas e 2,2 milhões de bois — o maior rebanho do Brasil. A população cresceu 40 vezes, enquanto o rebanho aumentou 11 mil vezes, chegando a curiosa marca de 18 cabeças de gado por habitante.
São Félix do Xingu é o município com o maior rebanho do Brasil. Em 1974, a pecuária era incipiente, hoje são 2,2 milhões de cabeças de gado.
“Boi não morre de velho no pasto”, diz o ditado, popular entre pecuaristas. Todo animal em São Félix vai encontrar um abate, seja por vias legais ou clandestinas.
Mauro Lúcio Costa é pecuarista dono de terras em São Félix, além de já ter sido presidente do Sindicato dos Produtores Rurais no município de Paragominas. Ele conta que sempre ouviu de seu pai, que veio do Sul, que tudo de melhor em São Félix começava com a letra C: “chuva, calor e crédito”. O clima confere à região o solo fértil e bons ingredientes para a formação de pastos. O crédito ficou por conta de incentivos do governo como os do Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (PRONAF), que começou a financiar projetos de pequenos agricultores e assentados a partir do final da década de 1990.
Viviane Pereira de Oliveira, presidente da Federação dos Trabalhadores na Agricultura Familiar (FETRAF) de Marabá, município vizinho, critica a forma como o programa foi implementado na região: “O PRONAF, desde sua origem, sempre privilegiou impulsionar a pecuária de corte em São Félix”, conta Viviane. “Sai mais barato para a assistência técnica, porque para o boi você não precisa de nada, só jogar o capim e fazer uma cerca”. Como resultado, na zona rural do município poucos investem em agricultura, nem mesmo de subsistência, comprando de fora o alimento que consomem. Enquanto isso, a pecuária de baixa produtividade – que chega a alocar apenas um boi para cada três hectares – tornou-se a principal atividade de muitos.
A divisão territorial de São Félix foi determinada em 2005. O município é constituído de cinco distritos: São Félix do Xingu, Taboca, Vila Ladeira Vermelha, Vila Lindoeste e Vila Nereu. Ao todo, há dezenove projetos de assentamentos criados pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) na região. Entre eles está o Pombal. Criado em 2006 no distrito de Tabocas, tem 90 mil hectares e abrigaria, em tese, 540 famílias. O que se encontra por lá, no entanto, é uma mistura de assentados – os chamados “colonos” – com pequenos produtores e até mesmo fazendas maiores.
A zona rural de São Félix abriga uma boa mistura de sotaques e maneiras de falar o português, fruto da intensa migração de diversas partes do país. Há, no entanto, uma terminologia técnica que todos dominam e se destaca no vocabulário mais rústico. Para um leigo em matéria de controle de desmatamento na Amazônia, ouvir que uma área “tem Prodes” não faz sentido algum. Mas, em São Félix, mesmo quem não sabe ler e escrever sabe o que isso significa. Ou, pelo menos, o que acarreta. “Embargo” é outra palavra bem conhecida.
Prodes é a sigla de Programa de Monitoramento da Amazônia por Satélites, sistema comandado pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE) que realiza a vigilância por satélites da Amazônia e dá o alerta quando a floresta é desmatada. Ser “pego” pelo Prodes pode levar um proprietário a receber a temida visita do Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e Recursos Naturais (IBAMA) ou da secretaria de meio ambiente. Quem cai na fiscalização tem a área embargada e recebe multa. O embargo serve, por conceito, para garantir que a área fique impedida para produção. O objetivo é de, um dia, voltar-se a ver ali a floresta que foi derrubada.
Os produtores, no entanto, não encaram dessa forma. Para eles, a luta passa a ser para desembargar a área e voltar a ter o direito de usar aquela terra. Muitos argumentam que foram injustamente multados por desmatamentos antigos – o que pode ser verdade. Há quem diga que, ao adquirir o terreno, não sabia do embargo, herança deixada pelo proprietário anterior. No contexto da região, o argumento faz sentido, pois a comercialização de terras entre famílias é frequente e não envolve qualquer tipo de documentação. O número de propriedades com títulos formais é próximo de zero.
O desembargo é viável, através de processos administrativos na Secretaria de Meio Ambiente ou até mesmo em instâncias judiciais. Quem consegue, em geral, é quem pode arcar com os custos de bons advogados e técnicos para justificar o uso consolidado da terra. Sem assistência, é improvável que os pequenos produtores consigam vencer a burocracia do processo. “Você tenta por meios legais, você corre atrás, mas sempre depende de alguma outra coisa, sempre tem um novo problema”, diz Branco, produtor e comerciante de gado no distrito das Tabocas. “O IBAMA só aparece para multar. A pessoa tem que correr atrás de todo o resto”
Branco desabafa: “eu fui multado em 2009 e nunca consegui desembargar a minha área. A gente não consegue nem pagar a multa. É um valor excessivo, maior que o da terra que é multada. Eles falam que existe um desconto de até 90%, mas a gente tenta correr atrás disso e nunca consegue”. Ele foi multado em 302 mil reais pela derrubada de 90 hectares de floresta.
Neste cenário, a ilegalidade graça. “Quem tem área embargada fica sem ter como comercializar. Aí tem que pegar a documentação de outra propriedade e passar a comercializar com ela”, conta Branco. Ele diz que já tentou de tudo para se regularizar. Adquiriu, inclusive, uma área de floresta que ele preserva, compensação aceita pela legislação. Enquanto não resolve, segue com seu negócio na base do jeitinho. “Eu tenho área em nome da minha esposa, né? É através disso que nós consegue matar o gado que está na outra área embargada”, conta.
“Teve um ano em que o secretário de meio ambiente veio com o IBAMA, falou que não era para derrubar nem mais uma árvore aqui no Pombal, que iam mandar três tratores para gradear tudo que fosse pasto velho, para não mexer mais na mata”, relembra Marcos, pequeno produtor no Pombal. “Aí, nesse ano, o pessoal ficou parado, teve gente que quase passou fome, esperou, esperou, mas o maquinário nunca apareceu aqui. Aí, no ano seguinte, o povo voltou a derrubar para fazer roça e formar pasto, porque, senão, como é que vai sobreviver?”, diz Marcos, que também revela ter área embargada em sua propriedade.
A desordem fundiária é citada como a raiz que alimenta o processo. O caso do Pombal é exemplar. Prestes a completar dez anos de criação, só agora seus assentados passaram a ter direito à titularidade das terras, segundas as regras do INCRA. De lá para cá, foi feito um Cadastro Ambiental Rural (CAR) de toda a extensão do assentamento, mas não há CAR de cada propriedade separadamente. Os assentados do projeto dividem espaço com outros proprietários que chegaram ao longo dos últimos anos em busca de terra para desmatar.
“O melhor tipo de fiscalização que existe é a documentação”, defende Mauro Lúcio. Ele usa a metáfora do carro. “Imagina se, de uma hora pra outra, ninguém tivesse mais documento do carro. Quanto acidentes e infrações não iriam acontecer? Quem não é dono da terra, não se sente legalmente responsável por ela”.
Até pouco tempo, Pombal carecia de estradas e pontes, tornando árduo o acesso. Para se chegar até lá ainda é necessário atravessar duas vezes o rio de balsa e encarar bastante estrada de terra, que em época de chuva pode se tornar intransitável. E nessa toada Pombal segue em expansão. A mais recente conquista da comunidade foi a eletricidade. Apelidada de “Gato para Todos”, uma referência ao programa do governo “Luz para Todos”. A iniciativa de erguer postes e passar fios de energia coube aos moradores, que fizeram uma vaquinha para conseguir ter luz. “Aqui o governo não aparece para nada”, ressente-se Marcos.
“Desde 2008, em São Félix, foram derrubados ilegalmente 250 mil hectares de floresta”, diz Mauro Lúcio. “Como nas áreas recém abertas, com pasto novo, é possível colocar até duas cabeças de gado por hectare, é provável que abriguem ¼ do rebanho do município”. Por esse cálculo, mais de 500 mil cabeças de gado da região são ilegais, bois de desmatamento.
João Franco da Silveira Bueno, dono da Marfripar, um dos maiores frigoríficos do Sul do Pará, critica o funcionamento das regras do setor: “Um dos grandes problemas nossos é esse TAC que nós assinamos com o Ministério Público”, diz. “Todos os frigoríficos de médio e grande porte cumprem o combinado. Todo boi que compramos é checado se não tem restrição nenhuma. O problema é que os frigoríficos de menor porte não obedecem esses critérios, não assinaram o TAC. Quem está na ilegalidade vai vender para esses frigoríficos. Então, o TAC, de uma maneira geral, não está funcionando”, afirma João Bueno.
Para Mauro Lúcio, o aumento das restrições impostas ao mercado, sem a fiscalização adequada e os incentivos econômicos certos, levou ao crescimento da ilegalidade da cadeia como um todo. “A indústria clandestina de carne aumentou absurdamente nos últimos dois anos”, diz. “Quem está legalizado enfrenta uma competição covarde”. Bem ao lado do único frigorífico legal de São Félix, o Frigol, fica uma construção sem placas na porta. Ali, revelam os funcionários da própria Frigol, funciona um abatedouro clandestino, posicionado estrategicamente ao lado do concorrente para aproveitar os trabalhadores que saem de seus turnos e querem fazer um dinheiro extra.
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Boi clandestino não morre de velho - Instituto Humanitas Unisinos - IHU